O Papa Francisco procedeu a uma viagem apostólica à
Turquia entre os dias 28 e 30 de novembro. É óbvio que, para lá da vertente
apostólica, ela reveste também uma natureza política no sentido que o dado
político tem de mais interessante: a relação entre Estados e o esforço para
minorar as tensões provocadas pelas lutas hegemónicas e de interesses.
Mesmo que a visita papal, no aspeto político, se
resumisse à cerimónia de boas-vindas no palácio presidencial e à visita de
cortesia ao Presidente da República, tal facto já por si marcaria a perspetiva
de Igreja em saída em que aposta o Bispo de Roma. Todavia, o pequeno e breve
périplo decorre num país maioritariamente muçulmano, mas que professa oficialmente
a laicidade, a qual, se for entendida corretamente e obstaculizar fechamentos
culturais e fundamentalismos de qualquer espécie, facilita o diálogo entre
etnias, povos, culturas e religiões.
Porém, não se pode passar em silêncio o facto de a
Turquia estar próxima da Síria, fustigada por um demolidor conflito interno, do
Iraque, assolado pelas inusitadas investidas do recentemente denominado Estado
Islâmico, e da Arábia Saudita, com mostras de repulsa alastrante de pessoas e
práticas cristãs e yazidis. Demais, a Turquia recebe, como outros países do aro
médio-oriental, um surto de refugiados que se escaparam em condições de
fragilização e precariedade das zonas de conflito originárias. Por isso, a
presença e a palavra do Papa não deixa de ser um apelo ao acolhimento e ao
esforço pela resolução dos conflitos de exclusão e de guerra.
Assim, no encontro com as autoridades, a 28 de
novembro, o Pontífice, evocando as belezas naturais e a história do território,
acentuou o interesse que os cristãos nutrem por estas paragens:
Esta terra é amada por todo o cristão por ser o berço
de São Paulo, que fundou aqui diversas comunidades cristãs; por ter acolhido os
primeiros sete Concílios da Igreja e pela presença, perto de Éfeso, daquela que
uma veneranda tradição considera a “casa de Maria”, o lugar onde a Mãe de Jesus
viveu durante alguns anos, meta da devoção de muitos peregrinos vindos de todos
os cantos do mundo, não só cristãos, mas também muçulmanos.
Entretanto,
aludindo aos esforços de diálogo dos seus predecessores, salienta as
virtualidades do presente desta grande nação. Por outro lado, acentua a
necessidade do diálogo que valorize “as inúmeras coisas que temos em comum” e
considere “com ânimo sábio e sereno as diferenças”, que podem ajudar a aprender.
Depois, é preciso continuar “o compromisso de construir uma paz sólida”, no
respeito pelos “direitos fundamentais e deveres ligados com a dignidade do homem”,
superando “os preconceitos e falsos temores” e abrindo espaço “à estima, ao
encontro, ao desenvolvimento das melhores energias em proveito de todos”.
Para tanto,
torna-se fundamental o diálogo inter-religioso tanto nas disposições legais,
como na sua efetiva atuação, em igualdade de direitos e de deveres. Assim, “irmãos
e companheiros de viagem”, com “liberdade religiosa” e “liberdade de expressão”,
eficazmente garantidas a todos, darão os homens um sinal eloquente de amizade e
de paz – sinal ansiosamente aguardado pelo Médio Oriente (há demasiado tempo,
teatro de guerras fratricidas), pela Europa, pelo mundo.
Os povos e
Estados do Médio Oriente – para inverterem a tendência dominante e lograr um
processo de pacificação bem-sucedido, pela rejeição da guerra e da violência e pela
busca do diálogo, do direito, da justiça – têm necessidade de que “ao fanatismo
e ao fundamentalismo, às fobias irracionais que incentivam incompreensões e
discriminações”, se contraponha a “solidariedade de todos os crentes”. Esta
solidariedade “tem como pilares o respeito pela vida humana, pela liberdade
religiosa” – que é liberdade do culto e liberdade de viver segundo a ética
religiosa – e “o esforço por garantir a todos o necessário para uma vida digna
e o cuidado do meio ambiente”.
É também preciso
– assegura Francisco – um forte compromisso comum baseado na confiança, que
possibilite a paz duradoura e permita destinar os recursos, não aos armamentos,
mas às verdadeiras lutas dignas do homem: contra a fome e doenças, pelo
desenvolvimento sustentável e pela defesa da criação, em socorro de tantas
formas de pobreza e marginalização.
À Turquia,
pela sua história, posição geográfica e importância regional, cabe peculiar responsabilidade:
suas decisões e seu exemplo possuem uma valia especial e podem constituir ajuda
significativa no favorecimento de um encontro de civilização e na identificação
das vias praticáveis de paz e de autêntico progresso.
Já, na visita
ao Presidente dos Assuntos Religiosos no Diyanet,
o Pontífice salientou as boas relações e a cooperação entre o Diyanet e o Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-religioso. E, ao retomar
o essencial dos temas aflorados no encontro com as autoridades, acentuou a
perspetiva religiosa que dá uma mais-valia de razão aos esforços de debelação e
resolução das situações de penúria e conflito, abjurando a violência em nome de
Deus. Adverte o Papa, que lança o apelo a todos os homens e mulheres de boa
vontade:
Como
chefes religiosos, temos a obrigação de denunciar todas as violações da
dignidade e dos direitos humanos. A vida humana, dom de Deus Criador, possui um
caráter sagrado. Por isso, a violência que busca uma justificação religiosa
merece a mais forte condenação, porque o Omnipotente é Deus da vida e da paz. O
mundo espera, de todos aqueles que afirmam adorá-Lo, que sejam homens e
mulheres de paz, capazes de viver como irmãos e irmãs, apesar das diferenças étnicas,
religiosas, culturais ou ideológicas.
A
denúncia deve ser acompanhada pelo trabalho comum para se encontrarem soluções
adequadas. Isto requer a colaboração de todas as partes: governos, líderes
políticos e religiosos, representantes da sociedade civil e todos os homens e
mulheres de boa vontade.
***
Mas Francisco veio com duas outras intenções: dar
ânimo à pequena comunidade católica que ali vive e testemunha o empenho humano
e apostólico em união plena com a Igreja de Roma; e contribuir para o reforço da
aproximação ecuménica entre católicos e ortodoxos.
Para e com os católicos celebrou a Santa Missa
na Catedral Católica do Espírito Santo, em Istambul, no dia 29. Na homilia
que proferiu perante católicos de outros ritos, de autoridades do cristianismo ortodoxo
e protestante, salientou o Espírito como dom de Deus, força e harmonia na
Igreja e na comunidade. Depois, advertiu:
As nossas defesas podem
manifestar-se com a excessiva fixação nas nossas ideias, nas nossas forças –
mas assim resvalamos no pelagianismo – ou então com uma atitude de ambição e
vaidade. Estes mecanismos defensivos impedem-nos de compreender verdadeiramente
os outros e abrir-nos a um diálogo sincero com eles.
E, contrapondo, explicou a aliança entre Espírito e a
Igreja, que torna eficaz a ação desta:
Mas a Igreja, nascida do
Pentecostes, recebe em herança o fogo do Espírito Santo, que não enche tanto a
mente de ideias, como sobretudo faz arder o coração; é investida pelo vento do
Espírito, que não transmite um poder, mas habilita para um serviço de amor, uma
linguagem que cada um é capaz de compreender. Em nosso caminho de fé e de vida
fraterna, quanto mais nos deixarmos guiar humildemente pelo Espírito do Senhor,
tanto mais superaremos as incompreensões, as divisões e as controvérsias,
tornando-nos sinal credível de unidade e de paz; sinal credível de que o Senhor
nosso ressuscitou, está vivo.
***
Porém, o ápice da jornada, para cujo êxito, em audiência
geral na Praça de São Pedro, no passado dia 26, Francisco solicitara oração
para que a viagem “produza frutos de paz, de diálogo sincero entre as religiões
e de concórdia na Nação turca”, é constituído pelos momentos de encontro como o
Patriarca Ecuménico Bartolomeu I.
O primeiro momento
ocorre no âmbito da Oração Ecuménica
na Igreja Patriarcal de São Jorge em torno da festa de Santo André,
apóstolo fundador da Igreja de Istambul e irmão de Pedro. Fora André o primeiro
a ser vocacionado ao apostolado e a dizer ao seu irmão que vira o Senhor. Foi ele
quem topou que havia um rapaz com cinco pães e dois peixes, o que deu azo ao
milagre da multiplicação para saciar a fome da multidão de milhares de pessoas,
após a catequese recebida de Cristo. Foi ele quem intercedeu, a instâncias de Filipe,
para que o Mestre recebesse um grupo de estrangeiros. E, por fim, depois de intensa
missionação apostólica, teve sorte parecida (o martírio na cruz) com a de
Pedro, o fundador da Igreja de Roma.
Também Francisco, o romano Pedro do tempo atual, dirigindo-se ao irmão
bem-amado irmão André constantinoplitano, que dá pelo nome de Bartolomeu, disserta:
Pelas palavras do profeta Zacarias, o Senhor deu-nos,
nesta oração vespertina, o fundamento que está na base da nossa tensão entre um
hoje e um amanhã, a rocha firme sobre a qual movemos juntos os nossos passos
com alegria e esperança; este alicerce rochoso é a promessa do Senhor: Eis que eu salvo o meu povo do Oriente e do
Ocidente (...) na fidelidade e justiça (Zc 8,7.8).
Crendo mais
no poder de Deus, mas não desprezando a necessidade do esforço humano de aproximação,
o Papa esclarece onde está a fonte da nossa alegria:
Está mais além, não está em nós, não está no nosso
compromisso e nos nossos esforços – que existem, como de dever –, mas na comum
entrega à fidelidade de Deus, que lança as bases para a reconstrução do seu
templo que é a Igreja (cf. Zc 8,9). «Está aqui a semente da paz» (Zc 8,12); está aqui a semente da alegria.
Aquela paz e aquela alegria que o mundo não pode dar, mas que o Senhor Jesus
prometeu aos seus discípulos e lha deu como Ressuscitado, no poder do Espírito.
E o gesto
marcante desta jornada foi o pedido de Francisco a Bartolomeu para que o abençoasse
a si e à Igreja de Roma, a que o Patriarca Ecuménico correspondeu com um visível
ósculo na cabeça do pontífice romano.
Já no dia 30,
no quadro da Divina Liturgia de São João Crisóstomo na Igreja
patriarcal de São Jorge, o Papa Francisco entende que encontrarem-se os dois
irmãos face a face, trocarem o abraço da paz e rezarem um pelo outro
“são dimensões essenciais do caminho para o restabelecimento da plena comunhão
para a qual tendemos”. Estas, entretanto, precedem e acompanham constantemente
a outra dimensão essencial daquele caminho, o do “diálogo teológico”, que não é
“apenas um confronto de ideias”, mas sempre “um encontro entre pessoas com um
nome, um rosto, uma história”.
Francisco acredita
que foi à semelhança das cumplicidades entre André e Pedro que “o caminho de
reconciliação e de paz entre católicos e ortodoxos” fora “inaugurado por um
encontro, por um abraço” entre o Patriarca Ecuménico Atenágoras e o Papa Paulo
VI, há cinquenta anos, em Jerusalém – evento comemorado recentemente com um
encontro entre estes dois chefes, na atualidade, de Igrejas Irmãs “na cidade
onde o Senhor Jesus Cristo morreu e ressuscitou”.
Aludindo ao
decreto conciliar Unitatis
redintegratio, sobre
a busca da unidade de todos os cristãos – “documento fundamental com
que foi aberta uma nova estrada para o encontro entre os católicos e os irmãos
de outras Igrejas e Comunidades eclesiais” – recorda que a Igreja católica passou
a reconhecer que as Igrejas ortodoxas “têm verdadeiros sacramentos e
principalmente, em virtude da sucessão apostólica, o sacerdócio e a Eucaristia,
por meio dos quais permanecem ainda unidas connosco por vínculos muito íntimos
(UR n.º 15).
E Francisco
enuncia o escopo a que pretende chegar, e não mais:
A Igreja católica não tenciona impor qualquer
exigência, exceto a da profissão da fé comum, e que estamos prontos a buscar
juntos, à luz do ensinamento da Escritura e da experiência do primeiro milénio,
as modalidades pelas quais se garanta a necessária unidade da Igreja nas
circunstâncias atuais: a única coisa que a Igreja católica deseja e que eu
procuro como Bispo de Roma, “a Igreja que preside na caridade”, é a comunhão
com as Igrejas ortodoxas. Esta comunhão será sempre fruto do amor “que foi
derramado nos nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5, 5), amor fraterno que dá expressão
ao vínculo espiritual e transcendente que nos une como discípulos do Senhor.
Depois, o
Papa faz o levantamento das vozes que importa escutar e que apelam “às nossas
Igrejas que vivam plenamente como discípulos do Senhor Jesus Cristo”. A primeira
é a voz dos pobres, a das mulheres e homens que sofrem por desnutrição grave,
pelo desemprego crescente, pela alta percentagem de jovens sem trabalho e pelo
aumento da exclusão social, indutor de atividades criminosas e recrutamento de
terroristas. A segunda é a voz das vítimas dos conflitos em muitas partes do
mundo. Ora, esta voz das vítimas dos conflitos impele-nos a avançar
pressurosamente no caminho de reconciliação e comunhão entre católicos e
ortodoxos. Aliás, teremos dificuldade em anunciar o Evangelho de paz que vem de
Cristo, se entre nós continuarem a existir rivalidades e contendas (cf. Paulo VI, Ex. ap. Evangelium nuntiandi, 77).
Mas uma
terceira voz nos interpela: a dos jovens, a dos jovens que “vivem sem
esperança, dominados pelo desânimo e pela resignação” ou “influenciados pela
cultura dominante”, muitos dos quais “buscam a alegria apenas na posse de bens
materiais e na satisfação das emoções do momento”.
São precisamente os jovens – multidões de jovens
ortodoxos, católicos e protestantes se reúnem nos encontros internacionais
organizados pela comunidade de Taizé – são eles que hoje nos pedem para avançar
rumo à plena comunhão. E isto, não porque eles ignorem o significado das
diferenças que ainda nos separam, mas porque sabem ver mais além, são capazes
de captar o essencial que já nos une.
E o Papa,
reconhecendo que estamos a caminho para a plena comunhão, confia que os apóstolos
irmãos, Pedro e André, apoiem a prossecução sustentável desta caminhada
conjunta.
***
Finalmente, o Papa
Francisco I e o Patriarca Ecuménico Bartolomeu I procederam à Bênção Ecuménica e Assinatura da Declaração Comum. Nela, se revigora o desejo de continuarem “a caminhar juntos a
fim de superarmos, com amor e confiança, os obstáculos que nos dividem”. Nela, os
insignes declarantes reafirmam as intenções e preocupações comuns, expressam a “intenção
sincera e firme de, em obediência à vontade de nosso Senhor Jesus Cristo”,
intensificarem os “esforços pela promoção da unidade plena entre todos os
cristãos, e sobretudo entre católicos e ortodoxos” e apoiam o diálogo teológico
promovido pela Comissão Mista Internacional – instituída, há trinta e cinco
anos, pelo Patriarca Ecuménico Dimitrios e o Papa João Paulo II, no Fanar –, a
qual se encontra a tratar das questões mais difíceis que marcaram a história da
divisão e que postulam um estudo cuidadoso e profundo.
E terminam exprimindo a comum preocupação pela
situação no Iraque, na Síria e em todo o Médio Oriente, bem como a união no
desejo de paz e estabilidade e na vontade de promover a resolução dos conflitos
através do diálogo e da reconciliação e a atenção a todos os problemas que
afligem a humanidade.
São fortes propósitos, preocupações e desejos a que
juntam a súplica de intercessão aos apóstolos, a ação de graças ao Senhor da História
pelos progressos efetuados e a inabalável confiança n’ Aquele que rezou “que todos
sejam um só, como tu, ó Pai, o és em mim, e eu em ti; que também
eles sejam um em nós, para que o
mundo creia que Tu me enviaste” (Jo 17,21).
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