quarta-feira, 26 de novembro de 2014

A Europa precisa de quem lhe fale!

Na sua edição de hoje, dia 25 de novembro, na minissecção “SIM/NÃO, o Público, fazendo alusão à visita do Papa Francisco, em Estraburgo, ao Conselho da Europa e ao Parlamento Europeu, considera que, antes de qualquer discurso, o gesto constitui uma mensagem para a Europa e o colunista escreve: “A Europa precisa de quem lhe fale”. Porém, os discursos não se fizeram esperar na mescla da simpatia e afabilidade com o vigor e nudez das verdades.
Passo à síntese da alocução papal à Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa em torno da paz e dos seus pressupostos.
***

Àquele magno órgão, em que está presente quase toda a Europa, “com os seus povos, as suas línguas, as suas expressões culturais e religiosas, que constituem a riqueza deste Continente”, Francisco enaltece “o empenhamento profuso e a contribuição prestada à paz na Europa através da promoção da democracia, dos direitos humanos e do estado de direito”. Contra ímpetos particularistas provenientes de vontades hegemónicas diversas, os pais fundadores do Conselho da Europa quiseram, há 65 anos, “reconstruir a Europa num espírito de mútuo serviço”, que, num mundo mais dado a reivindicar que a servir, constitui o fecho da abóbada da missão contínua do Conselho pela paz, liberdade e dignidade humana.
Se, por um lado, é o tempo que governa os espaços, iluminando-os e transformando-os em cadeia de crescimento contínuo que não regride, por outro, “a construção da paz exige privilegiar as ações” geradoras de novos dinamismos na sociedade que impliquem pessoas e grupos que os desenvolvam até frutificarem em importantes acontecimentos históricos. Mas a paz a construir será uma “paz amada, livre e fraterna”, resultante de processos consequentes, “com convicções claras e tenacidade” e de aposta empenhada na educação para este bem.
Para tanto, não se podendo ignorar as situações de conflito, há que impedir que elas bloqueiem a perspetiva de futuro, o sentido da unidade. E o Papa aponta pertinentemente o dedo:
A paz é ferida ainda muitas vezes. Isto é verdade em muitas partes do mundo, onde enfurecem conflitos de diverso género. É verdade também aqui na Europa, onde não cessam as tensões. Quanto sofrimento e quantos mortos há ainda neste Continente, que anseia pela paz e contudo volta facilmente a cair nas tentações de outrora! Por isso, é importante e encorajador o trabalho do Conselho da Europa na busca de uma solução política para as crises em ato.

Mas outras formas de conflito interligadas põem a paz à prova: o terrorismo religioso e internacional (alimentado pelo tráfico de armas), “que nutre profundo desprezo pela vida humana e ceifa” indiscriminadamente vítimas inocentes; a corrida aos armamentos, terrível flagelo para a humanidade, que “prejudica os pobres de forma intolerável”; e o tráfico de seres humanos, escravatura do nosso tempo, que transforma as vítimas em mercadoria de troca, privando-as de toda a dignidade.
E Francisco não se furta a mostrar a ótica cristã da paz: dom de Deus e fruto da ação livre e racional do homem, que se propõe perseguir o bem comum na verdade e no amor – ordem racional e moral que “assenta na decisão da consciência dos seres humanos de buscar a harmonia nas suas relações recíprocas sobre a base do respeito da justiça para todos”. Porém, a via para sua consecução passa pela promoção dos direitos humanos e pelo desenvolvimento da democracia e do estado de direito, “com notáveis implicações éticas e sociais”, de cujo reto entendimento depende o desenvolvimento das sociedades, a convivência pacífica e o futuro. Por outro lado, há que atentar na importância da contribuição e responsabilidade europeias para o desenvolvimento cultural da humanidade. Neste sentido, o Papa faz um parêntesis discursivo sobre o devir da Europa, parafraseando Clemente Rebora, poeta italiano do século XX:
Ao longo da sua história, sempre se ergueu para o alto, para metas novas e ambiciosas, animada por um desejo insaciável de conhecimento, desenvolvimento, progresso, paz e unidade. Mas a elevação do pensamento, da cultura, das descobertas científicas só é possível graças à solidez do tronco e à profundidade das raízes que o alimentam. Se se perdem as raízes, o tronco lentamente se esvai e morre, e os ramos – antes vigorosos e direitos – dobram-se para a terra e caem. Aqui está talvez um dos paradoxos mais incompreensíveis para uma mentalidade científica isolada: para caminhar para o futuro serve o passado, são necessárias raízes profundas e serve também a coragem de não se esconder face ao presente e seus desafios. Servem memória, coragem e utopia sadia e humana.

Continuando a seguir Rebora, sustenta que “o tronco penetra onde é mais verdadeiro” e “as raízes nutrem-se da verdade, que constitui o alimento, a seiva vital de toda e qualquer sociedade que queira ser verdadeiramente livre, humana e solidária”. E, se a verdade faz apelo à consciência, irredutível aos condicionamentos e capaz de conhecer a sua própria dignidade e de se abrir ao absoluto, torna-se fonte das opções fundamentais guiadas pela busca do bem para os outros e para si mesma e lugar de liberdade responsável. Isto contradiz a mera afirmação subjetivista dos direitos, indutora da substituição da noção de direito humano, que per se tem valência universal, pelo direito individualista, de que resulta o descuido pelos outros e o favorecimento da globalização da indiferença, nascida do egoísmo e duma conceção do homem incapaz de acolher a verdade e viver a autêntica dimensão social. Deste indiferente individualismo culturalmente empobrecedor nasce o culto da opulência, a que corresponde a avassaladora cultura do descarte e consumismo, impeditiva da construção de relações humanas autênticas, caraterizadas pela verdade e pelo respeito mútuo.
Por isso, a Europa sente-se ferida pelas provações do passado e pelas crises do presente, que parece incapaz de enfrentar com a vitalidade e energia de outrora, um pouco cansada, pessimista e “assediada pelas novidades provenientes dos outros Continentes”. Tal sentido de incapacidade deve induzir a Europa a refletir se o seu imenso património humano, artístico, técnico, social, político, económico e religioso é um simples legado de museu ou se ainda é capaz de inspirar a cultura e descerrar os seus tesouros à humanidade.
Salientando o papel do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, enquanto “consciência» da Europa no atinente aos direitos humanos, o Pontífice espera a maturação crescente desta consciência entre as partes, não por mero consenso, mas como fruto da tensão para aquelas raízes profundas que constituem os alicerces da Europa contemporânea. Para lá das raízes, constitutivas do seu património genético – a procurar, encontrar e manter vivas com o exercício diário da memória – há que enfrentar os atuais desafios (sobretudo o da multipolaridade e o da transversalidade) que a obrigam a uma criatividade contínua, para que estas raízes sejam fecundas no presente e se projetem para as utopias do futuro.
Ao contrário duma visão bipolar ou no máximo tripolar da Europa (Roma-Bizâncio-Moscovo), que a história parece oferecer por via de reducionismos geopolíticos hegemónicos, hoje podemos falar duma Europa multipolar, que deve “globalizar” de forma original a sua polaridade. As tensões, tanto as construtivas como as desagregadoras, verificam-se entre múltiplos polos culturais, religiosos e políticos. As culturas não correspondem necessariamente aos países: alguns têm várias culturas, e algumas culturas exprimem-se em vários países – o que sucede também com “as expressões políticas, religiosas e associativas”.
No atinente à transversalidade, o Bispo de Roma, anotando que os políticos jovens encaram a realidade duma perspetiva diferente da dos colegas mais idosos (facto recorrente nos diversos partidos), aponta a necessidade do diálogo, nomeadamente intergeracional. Depois, entende que uma Europa dialogante faz com que “a transversalidade de opiniões e reflexões esteja ao serviço dos povos harmoniosamente unidos”. Porém, para enveredar por esta via de comunicação transversal, é necessária não só a “empatia geracional”, mas também a “metodologia histórica de crescimento”. Resultando “estéril o diálogo circunscrito apenas aos organismos (políticos, religiosos, culturais) a que se pertence”, a história pede a capacidade de sair para o encontro a partir das estruturas que “contêm” a própria identidade com vista a torná-la “mais forte e mais fecunda no confronto fraterno da transversalidade”.
Assim, torna-se plausível o investimento do Conselho da Europa no diálogo intercultural, incluindo a dimensão religiosa, através dos Encontros sobre a dimensão religiosa do diálogo intercultural, que exprimem a polaridade multicultural do Continente e que responde às solicitações dos outros povos que olham com esperança para a Europa. É “uma ocasião profícua para um intercâmbio aberto, respeitoso e enriquecedor entre pessoas e grupos de diferente origem, tradição étnica, linguística e religiosa”. Neste contexto se entende o contributo singular do cristianismo para o desenvolvimento cultural e social europeu no quadro da correta relação entre religião e sociedade. Razão e fé, religião e sociedade são, na ótica cristã, chamadas a iluminar-se reciprocamente, apoiando-se e purificando-se mutuamente dos extremismos ideológicos em que podem incorrer. Neste aspeto, tão maléfico se torna o fundamentalismo religioso, inimigo de Deus, como uma razão exclusivista, “que não honra o homem”.
***
Entretanto, o Papa propõe, em concreto, o estreitamento da cooperação entre a Igreja Católica, especialmente através do Conselho das Conferências Episcopais da Europa (CCEE) e o Conselho da Europa, sobretudo no campo da reflexão ética sobre os direitos humanos.
Desde já, o pontífice dá como exemplos: a proteção da vida humana, a submeter a exame cuidadoso que tenha em conta “a verdade do ser humano integral, sem se limitar a específicos âmbitos médicos, científicos ou jurídicos”; o acolhimento dos imigrantes, “que precisam primariamente do essencial para viver, mas sobretudo de que lhes seja reconhecida a sua dignidade de pessoas”; e o complexo e “grave problema do trabalho em toda a sua amplitude, especialmente pelos altos níveis de desemprego juvenil que se registam em muitos países – uma real hipoteca que grava sobre o futuro – mas também pela questão da dignidade do trabalho”.
Por fim, Francisco deseja a instauração duma nova cooperação social e económica, livre de condicionalismos ideológicos, que encare o mundo globalizado e mantenha vivo o sentimento de solidariedade e caridade mútua, seja através da atividade empresarial seja com obras de educação, de assistência e de promoção humana. E lembra, em relação a estas duas últimas dimensões, os numerosos pobres que vivem na Europa: “E há tantos nas nossas estradas! Pedem não só o pão para se sustentarem, que é o mais elementar dos direitos, mas também para se redescobrir o valor da sua vida, que a pobreza tende a fazer esquecer, e reencontrar a dignidade conferida pelo trabalho”.
Em paralelo, destaca, como premente tema de reflexão e colaboração, a defesa do meio ambiente, “desta nossa amada Terra, o grande recurso que Deus nos deu e está à nossa disposição, não para ser deturpado, explorado e vilipendiado, mas para que, gozando da sua beleza imensa, possamos viver com dignidade”.
***

É nesta nova ágora que a Igreja Católica, “perita em humanidade”, nas palavras de Paulo VI, quer que se façam ouvir as vozes de verdade e os esforços em prol do bem comum, na perspetiva da cultura do encontro, que faz com que as diferenças sirvam de enriquecimento e encaminhem os homens para a unidade essencial – a dignidade da pessoa humana expressão do rosto de Deus.

Sem comentários:

Enviar um comentário