Na sua edição de hoje, dia 25 de
novembro, na minissecção “SIM/NÃO, o Público,
fazendo alusão à visita do Papa Francisco, em Estraburgo, ao Conselho da Europa
e ao Parlamento Europeu, considera que, antes de qualquer discurso, o gesto
constitui uma mensagem para a Europa e o colunista escreve: “A Europa precisa
de quem lhe fale”. Porém, os discursos não se fizeram esperar na mescla da
simpatia e afabilidade com o vigor e nudez das verdades.
Passo à síntese da alocução papal
à Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa em torno da paz e dos seus
pressupostos.
***
Àquele magno órgão, em que está
presente quase toda a Europa, “com os seus povos, as
suas línguas, as suas expressões culturais e religiosas, que constituem a
riqueza deste Continente”, Francisco enaltece “o empenhamento profuso e a
contribuição prestada à paz na Europa através da promoção da democracia, dos
direitos humanos e do estado de direito”. Contra ímpetos particularistas
provenientes de vontades hegemónicas diversas, os pais fundadores do Conselho da
Europa quiseram, há 65 anos, “reconstruir a Europa num espírito de mútuo
serviço”, que, num mundo mais dado a reivindicar que a servir, constitui o
fecho da abóbada da missão contínua do Conselho pela paz, liberdade e dignidade
humana.
Se, por um lado, é o tempo que governa os espaços, iluminando-os e
transformando-os em cadeia de crescimento contínuo que não regride, por outro, “a
construção da paz exige privilegiar as ações” geradoras de novos dinamismos na sociedade
que impliquem pessoas e grupos que os desenvolvam até frutificarem em
importantes acontecimentos históricos. Mas a paz a construir será uma “paz amada,
livre e fraterna”, resultante de processos consequentes, “com convicções claras
e tenacidade” e de aposta empenhada na educação para este bem.
Para
tanto, não se podendo ignorar as situações de conflito, há que impedir que elas
bloqueiem a perspetiva de futuro, o sentido da unidade. E o Papa aponta pertinentemente
o dedo:
A paz é ferida ainda muitas vezes. Isto é
verdade em muitas partes do mundo, onde enfurecem conflitos de diverso género.
É verdade também aqui na Europa, onde não cessam as tensões. Quanto sofrimento
e quantos mortos há ainda neste Continente, que anseia pela paz e contudo volta
facilmente a cair nas tentações de outrora! Por isso, é importante e
encorajador o trabalho do Conselho da Europa na busca de uma solução política
para as crises em ato.
Mas
outras formas de conflito interligadas põem a paz à prova: o terrorismo
religioso e internacional (alimentado pelo tráfico de armas), “que nutre
profundo desprezo pela vida humana e ceifa” indiscriminadamente vítimas
inocentes; a corrida aos armamentos, terrível flagelo para a humanidade, que
“prejudica os pobres de forma intolerável”; e o tráfico de seres humanos,
escravatura do nosso tempo, que transforma as vítimas em mercadoria de troca,
privando-as de toda a dignidade.
E
Francisco não se furta a mostrar a ótica cristã da paz: dom de Deus e fruto da ação
livre e racional do homem, que se propõe perseguir o bem comum na verdade e no
amor – ordem racional e moral que “assenta na decisão da consciência dos seres
humanos de buscar a harmonia nas suas relações recíprocas sobre a base do
respeito da justiça para todos”. Porém, a via para sua consecução passa pela promoção
dos direitos humanos e pelo desenvolvimento da democracia e do estado de
direito, “com notáveis implicações éticas e sociais”, de cujo reto entendimento
depende o desenvolvimento das sociedades, a convivência pacífica e o futuro. Por
outro lado, há que atentar na importância da contribuição e responsabilidade
europeias para o desenvolvimento cultural da humanidade. Neste sentido, o Papa
faz um parêntesis discursivo sobre o devir da Europa, parafraseando Clemente
Rebora, poeta italiano do século XX:
Ao longo da sua história, sempre se ergueu
para o alto, para metas novas e ambiciosas, animada por um desejo insaciável de
conhecimento, desenvolvimento, progresso, paz e unidade. Mas a elevação do
pensamento, da cultura, das descobertas científicas só é possível graças à
solidez do tronco e à profundidade das raízes que o alimentam. Se se perdem as
raízes, o tronco lentamente se esvai e morre, e os ramos – antes vigorosos e
direitos – dobram-se para a terra e caem. Aqui está talvez um dos paradoxos
mais incompreensíveis para uma mentalidade científica isolada: para caminhar
para o futuro serve o passado, são necessárias raízes profundas e serve também
a coragem de não se esconder face ao presente e seus desafios. Servem memória,
coragem e utopia sadia e humana.
Continuando
a seguir Rebora, sustenta que “o tronco penetra onde é mais verdadeiro” e “as
raízes nutrem-se da verdade, que constitui o alimento, a seiva vital de toda e qualquer sociedade que
queira ser verdadeiramente livre, humana e solidária”. E, se a verdade faz apelo à
consciência, irredutível aos condicionamentos e capaz de conhecer a sua
própria dignidade e de se abrir ao absoluto, torna-se fonte das opções fundamentais
guiadas pela busca do bem para os outros e para si mesma e lugar de liberdade responsável. Isto
contradiz a mera afirmação subjetivista dos direitos, indutora da substituição da
noção de direito humano, que per se
tem valência universal, pelo direito individualista, de que resulta o descuido
pelos outros e o favorecimento da globalização
da indiferença, nascida do egoísmo e duma conceção do homem incapaz de
acolher a verdade e viver a autêntica dimensão social. Deste indiferente individualismo
culturalmente empobrecedor nasce o culto da opulência,
a que corresponde a avassaladora cultura do descarte e consumismo, impeditiva
da construção de relações humanas autênticas, caraterizadas pela verdade e pelo
respeito mútuo.
Por
isso, a Europa sente-se ferida pelas provações do passado e pelas crises do
presente, que parece incapaz de enfrentar com a vitalidade e energia de
outrora, um pouco cansada, pessimista e “assediada pelas novidades provenientes
dos outros Continentes”. Tal sentido de incapacidade deve induzir a Europa a refletir
se o seu imenso património humano, artístico, técnico, social, político,
económico e religioso é um simples legado de museu ou se ainda é capaz de
inspirar a cultura e descerrar os seus tesouros à humanidade.
Salientando
o papel do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, enquanto “consciência»
da Europa no atinente aos direitos humanos, o Pontífice espera a maturação
crescente desta consciência entre as partes, não por mero consenso, mas como
fruto da tensão para aquelas raízes profundas que constituem os alicerces da
Europa contemporânea. Para lá das raízes, constitutivas do seu património genético
– a procurar, encontrar e manter vivas com o exercício diário da memória – há
que enfrentar os atuais desafios (sobretudo o da multipolaridade e o da transversalidade) que a obrigam
a uma criatividade contínua, para que estas raízes sejam fecundas no presente e
se projetem para as utopias do futuro.
Ao
contrário duma visão bipolar ou no máximo tripolar da Europa
(Roma-Bizâncio-Moscovo), que a história parece oferecer por via de reducionismos
geopolíticos hegemónicos, hoje podemos falar duma Europa multipolar, que deve “globalizar”
de forma original a sua polaridade. As tensões, tanto as construtivas como as
desagregadoras, verificam-se entre múltiplos polos culturais, religiosos e
políticos. As culturas não correspondem necessariamente aos países: alguns têm
várias culturas, e algumas culturas exprimem-se em vários países – o que sucede
também com “as expressões políticas, religiosas e associativas”.
No
atinente à transversalidade, o Bispo de Roma, anotando que os
políticos jovens encaram a realidade duma perspetiva diferente da dos colegas
mais idosos (facto recorrente nos diversos partidos), aponta a necessidade do diálogo,
nomeadamente intergeracional.
Depois, entende que uma Europa dialogante faz com que “a transversalidade de
opiniões e reflexões esteja ao serviço dos povos harmoniosamente unidos”. Porém,
para enveredar por esta via de comunicação transversal, é necessária não só a “empatia
geracional”, mas também a “metodologia histórica de crescimento”. Resultando “estéril
o diálogo circunscrito apenas aos organismos (políticos, religiosos, culturais)
a que se pertence”, a história pede a capacidade de sair para o encontro a
partir das estruturas que “contêm” a própria identidade com vista a torná-la
“mais forte e mais fecunda no confronto fraterno da transversalidade”.
Assim,
torna-se plausível o investimento do Conselho da Europa no diálogo
intercultural, incluindo a dimensão religiosa, através dos Encontros sobre a dimensão
religiosa do diálogo intercultural,
que exprimem a polaridade multicultural do Continente e que responde às
solicitações dos outros povos que olham com esperança para a Europa. É “uma
ocasião profícua para um intercâmbio aberto, respeitoso e enriquecedor entre
pessoas e grupos de diferente origem, tradição étnica, linguística e religiosa”.
Neste contexto se entende o contributo singular do cristianismo para o desenvolvimento cultural e
social europeu no quadro da correta relação entre religião e sociedade. Razão e
fé, religião e sociedade são, na ótica cristã, chamadas a iluminar-se
reciprocamente, apoiando-se e purificando-se mutuamente dos extremismos
ideológicos em que podem incorrer. Neste aspeto, tão maléfico se torna o
fundamentalismo religioso, inimigo de Deus, como uma razão exclusivista, “que
não honra o homem”.
***
Entretanto,
o Papa propõe, em concreto, o estreitamento da cooperação entre a Igreja
Católica, especialmente através do Conselho das Conferências Episcopais da
Europa (CCEE) e o Conselho da Europa, sobretudo no campo da reflexão ética
sobre os direitos humanos.
Desde
já, o pontífice dá como exemplos: a proteção da vida humana, a submeter a exame
cuidadoso que tenha em conta “a verdade do ser humano integral, sem se limitar
a específicos âmbitos médicos, científicos ou jurídicos”; o acolhimento dos
imigrantes, “que precisam primariamente do essencial para viver, mas sobretudo de
que lhes seja reconhecida a sua dignidade de pessoas”; e o complexo e “grave
problema do trabalho em toda a sua amplitude, especialmente pelos altos níveis
de desemprego juvenil que se registam em muitos países – uma real hipoteca que
grava sobre o futuro – mas também pela questão da dignidade do trabalho”.
Por
fim, Francisco deseja a instauração duma nova cooperação social e económica,
livre de condicionalismos ideológicos, que encare o mundo globalizado e
mantenha vivo o sentimento de solidariedade e caridade mútua, seja através da atividade
empresarial seja com obras de educação, de assistência e de promoção humana. E lembra,
em relação a estas duas últimas dimensões, os numerosos pobres que vivem na
Europa: “E há tantos nas nossas estradas! Pedem não só o pão para se
sustentarem, que é o mais elementar dos direitos, mas também para se
redescobrir o valor da sua vida, que a pobreza tende a fazer esquecer, e
reencontrar a dignidade conferida pelo trabalho”.
Em
paralelo, destaca, como premente tema de reflexão e colaboração, a defesa do
meio ambiente, “desta nossa amada Terra, o grande recurso que Deus nos deu e
está à nossa disposição, não para ser deturpado, explorado e vilipendiado, mas
para que, gozando da sua beleza imensa, possamos viver com dignidade”.
***
É
nesta nova ágora que a Igreja Católica,
“perita em humanidade”, nas palavras de Paulo VI, quer que se façam ouvir as
vozes de verdade e os esforços em prol do bem comum, na perspetiva da cultura
do encontro, que faz com que as diferenças sirvam de enriquecimento e encaminhem
os homens para a unidade essencial – a dignidade da pessoa humana expressão do rosto
de Deus.
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