A primeira interrogativa das lançadas
em epígrafe encima uma local de Alexandra Carita, na secção “Livros Edições”,
do caderno ATUAL, do semanário Expresso, de 22 de novembro.
O texto dá-nos conta de
informação especial de João Alves Dias sobre a Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, a obra-prima quinhentista da
literatura de viagens produzida em Portugal e que exemplifica todo o perfil
picaresco do português enquanto herói de aventuras.
O estudioso traz ao público
leitor uma novidade: a primeira impressão da obra de Fernão “apresenta um texto
diferente relativamente à segunda impressão”, a que até hoje é considerada a
autêntica. As incoerências são evidentes logo na identificação que o autor faz
de si mesmo, pois ora se diz nascido em Montemor-o-Velho, ora se afirma filho
de nobres e natural de Almada.
O itinerário da obra, que se
desenrola ao longo de 226 capítulos, pode arrumar-se em 9 unidades estruturais,
para lá da introdução (que ocupa a 1.ª parte do cap. 1) e da conclusão (que
preenche a 2.ª parte do último capítulo). Assim, a introdução tece
considerações sobre “os muitos e grandes infortúnios” que levaram o herói e
autor à “peregrinação”; a 1.ª unidade, que se estende desde a 2.ª parte do cap.
1 até ao 38, relata as peripécias por que passou “por terras de Portugal,
Índia, reino dos Batas e reino do Pão”; a 2.ª, que abrange os caps. 39 a 79,
relata as peripécias passadas “pelos reinos de Sião, Liampó, ilha de Calamplui,
em companhia de António de Faria”; a 3.ª, que vai do cap. 80 ao 137, fala-nos
do trecho peregrinacional “pelas terras da China, Tartária e Sião”; a 4.ª, que
parte do final do cap. 137 e vai até ao 143, relata as andanças “pelas ilhas de
Tanixumá e dos Léquios”; a 5.ª, abrangendo os caps. 144 a 171, descreve o
périplo “por terras de Matarvão e de Calaminhã em companhia do rei dos Bramas”;
a 6.ª, nos caps. 172 a 179, refere o que passou “pelas terras de Sonda”; por
sua vez, a 7.ª, ocupando os caps. 180 a 199, relata o passado “pelas terras de
Sião e da Birmânia”; a 8.ª, que se estende pelos caps. 200 a 218, relata o
sucedido “por terras de Malaca e do Japão em Companhia de Francisco Xavier”; a
9.ª, do cap. 219 ao 226 (1.ª parte), descreve as peripécias ocorridas “pelo
reino de Bungo e pelos mares da China em companhia do sucessor de Francisco
Xavier, padre Belchior”; e a conclusão tem por objeto o “regresso a Portugal e
considerações finais” (cf J. Guerra e J. Vieira, Textos de literatura portuguesa, 10.º
ano – área D, vol 2.º: Porto editora,1987).
Esta súmula de conteúdo mostra a
diversidade de peripécias, tempos e lugares que emolduram o cenário de
peripécias de pirataria, comércio, roubos, morticínios e outros crimes, além de
conversões forçadas. Mas também o pícaro português que, segundo alguns,
desdobrado em António de Faria, relata o que sofreu (açoites, naufrágios e
vendas como escravo), os inúmeros contactos, o conhecimento de outras culturas
e civilizações do mais exótico que ao tempo se podia imaginar e o testemunho
que oferece da cultura e civilização ocidentais, bem como da idiossincrasia das
terras da Cristandade.
Teófilo Braga, em História da literatura II (edições
Europa-América, LB 442, pgs 383ss), denomina a obra como Peregrinações em que dá conta de muito estranhas coisas que viu e ouviu
– e não sem razão, dada a multiplicidade e diversidade de lugares e culturas
encontradas, embora sob o signo unitário do Oriente. E considera o seu autor
como “o mais extraordinário pela coragem das suas remotas investigações em
regiões desconhecidas, pela resistência a incessantes contrariedades e
sofrimentos, tudo observando e tudo conservando por uma assombrosa retentiva”.
Por outro lado, Braga faz a referência ao notável contributo de Pinto para as
relações Ocidente-Oriente, ao anotar que foi o primeiro europeu a entrar no
Japão, a cujo meio social se adaptou e ao qual forneceu conhecimentos da
civilização ocidental; servindo a pátria, alcançou para o comércio português a
rendosa posição de intermediário no tráfico da seda e da prata entre a China e
o Japão; e, em relação à causa missionária, auxiliou os trabalhos de introdução
do cristianismo no império nipónico cooperando com o insigne apóstolo do Oriente
Francisco Xavier.
Ao longo da obra, este narrador
autobiográfico sofre alterações de estatuto. Ora emerge como narrador
autodiegético (na qualidade de personagem principal), por exemplo nos primeiros
oitenta capítulos; ora assume a presença de narrador homodiegético (na
qualidade de personagem secundária), como acompanhante dos agentes principais
da ação, sejam eles singulares (António de Faria, rei dos Bramas, Francisco
Xavier), sejam eles coletivos (o “nós”: grupo de portugueses ou grupos em que
se integram os portugueses, como, por exemplo, exércitos, frotas…); ora assume
a presença heterodiegética (narrador de 3.ª pessoa) e com uma focalização
omnisciente.
No entanto, o livro não constitui
uma autobiografia no sentido atual, por omitir grande fração da vida de Pinto e
por o discurso, embora predominantemente de 1.ª pessoa, não se centrar exclusiva
ou principalmente no autor. M. Almira Soares, em Vamos Ler! (10.º ano – área D:Texto editora, 1985), citando Neves Águas, assume
que a Peregrinação é uma obra de arte
“atraente, viva, patética” e, seguindo Rodrigues Lapa, afirma: “Se mentiu, mentiu
por amor à arte, e nisso está a sua melhor justificação como escritor”.
Por outro lado, o livro não se limita
ao relato e/ou ao encómio. A perspetiva crítica do humanista está bem presente
no valor do esforço e na lucidez. O primeiro perpassa a obra toda. A segunda
vê-se em alguns trechos. Menciono apenas e por amostra algo do que se passa no
cap. 55. António de Faria aprisionara uma embarcação aborígene. Quando soube
que o menino que encontrara era filho do armador que o aprisionamento
desgraçara e se pôs a tranquilizá-lo, afiançando-lhe que o trataria como filho,
o menino lançou-lhe em rosto a sua incoerência.
Ao ver-se repreendido, respondeu:
-
Sabeis porque vo-lo digo? Porque vos vi louvar a Deus com os beiços untados
como homens a quem parece basta arreganhar os dentes ao céu sem satisfazer o
que têm roubado; pois entendei que o Senhor da mão poderosa não nos obriga
tanto a bulir com os beiços, quanto nos proíbe de tomar o alheio quanto mais roubar
e matar, que são dois pecados tão graves quanto depois de mortos conhecereis no
rigoroso castigo da sua divina justiça.
Tendo recusado fazer-se cristão,
insatisfeito com a explicação de Faria, rezou choroso:
-
Bendita seja, Senhor, a tua paciência, que sofre haver na terra gente que fale
tão bem de ti e use tão pouco da tua lei, como estes miseráveis e cegos que
cuidam que furtar e pregar te pode satisfazer como aos príncipes e tiranos quer
reinam na terra.
Uma bela tirada discursiva que em
nada fica atrás dos comentários críticos de Camões na sua ilustre epopeia!
***
Se atentarmos no frontispício de
qualquer edição fac-similada de Peregrinação,
obviamente a partir da segunda impressão, salta à vista que o seu licenciamento
para publicação resulta de três entidades censórias: o Santo Ofício, o
Ordinário e o Paço. Por outro lado, o ano de edição é o de 1614. O
autor-narrador não chegou a ver publicada a obra, que foi escrita na segunda
metade do século XVI. Fernão Mendes faleceu em 1583, trinta e um anos antes da
primeira edição. E o livro deu entrada para aprovação de publicação em 1603, em
pleno domínio filipino. Nesse ano, a Inquisição ou Santo Ofício e o Ordinário
(a autoridade eclesiástica de Lisboa) deram o aval positivo, dado que a obra
nada tinha contra a fé católica nem contra a prática religiosa e contra a
moral. Porém, o livro esteve retido no Desembargo do Paço durante 10 anos: era
necessário garantir que não contivesse nada que pusesse em causa a imagem do
reino tão cuidada no tempo de D. Manuel I (a censura política), o que passava
por avaliar as referências incómodas, como a pirataria, incêndios, provocação
de naufrágios, conversões forçadas, complacência com costumes pagãos, ressabiamento
contra a monarquia filipina, etc.
Ao certo, ninguém sabe o que os
censores do Paço terão alterado. Teófilo Braga (op cit) diz que o livro fora retocado
por Francisco de Andrade, talvez para mitigar os desdéns que a fama de
mentiroso, criada e difundida pela Europa, rodeava o nome desta personalidade
juntando proverbialmente ao nome “Mentes” e “Minto” como parónimos de “Mendes
Pinto”, no esquema de pergunta-resposta (Fernão, mentes? Minto.).
Apesar do contributo de Pinto
para o conhecimento do Império Nipónico e do crescente interesse pela sua
história e pela sua etnografia, terá havido uma intenção premeditada de riscar
o seu nome dos anais da historiografia. Teófilo aduz dois factos concretos:
apesar da cooperação estreita entre o herói e Xavier, o nome de Fernão não
consta das cartas de Xavier à Companhia de Jesus; e, por outro lado, o Padre
João de Lucena plagiara a obra de Pinto para elaborar a biografia de S.
Francisco Xavier.
Parece que, segundo Cristóvão
Aires, a má vontade contra Pinto (que, apesar de ter integrado ativamente a Companhia
de Jesus, tendo-lhe mesmo doado os bens, terá sido dela expulso ou instado a
sair) se deve à convicção formulada de que, por força da sua origem de marrano,
o tornado cristão-novo terá incorrido, mais tarde, na quebra da disciplina
imposta pelo voto de obediência. Daqui deduzem alguns a razão da sua miséria
desde 1558, em que regressou a Portugal, até ao ano em que faleceu, sepultado
na indigência e no descrédito, apesar de várias vezes ter solicitado uma tença
pelos serviços prestados (obviamente sempre recusada). Não sei mesmo se aquele
prenúncio de fim da pátria a que nos últimos anos se referia com sentimento de
indignação não terá acrescentado às autoridades acorrentadas à dominação
espanhola uma desconfiança ao já propalado sentido de mentira em relação à
veracidade dos factos narrados na obra.
***
A mencionada Alexandra Carita
confessa que fica por esclarecer o que é verdade e o que é mentira em Fernão
Mendes Pinto, como fica por descobrir quem alterou o texto da primeira impressão
da primeira edição (de que restam três exemplares) para a segunda impressão.
Já, quanto à existência de exemplares que dão Fernão Mendes Pinto como nascido
em Montemor-o-Velho e outros em Almada, esse facto já era conhecido ao menos
desde 1996, como o refere o paleógrafo João Alves Dias, no seu Livro Craesbeeck: uma dinastia de impressores em
Portugal. Mas o que não se conhecia era que as diferenças entre a primeira
e a segunda impressão da primeira edição eram tantas e tão significativas. Não
tinha ainda havido um confronto tão minucioso. Também, segundo o mencionado
paleógrafo, não se sabia que nos primeiros anos Peregrinação era vendida com um texto que “entrava em contradição
logo nas primeiras folhas da apresentação do autor com o que ele próprio
escrevera no texto”. Tais situações e outras do género terão dado azo a que
alguns tenham concluído, com alguma legitimidade, que, “se o autor mente a seu
respeito, mente em relação a tudo”. E pode ter-se dado o caso de se pensar que
ele fantasiava quando de facto estava a falar a verdade.
Alexandra Carita termina o seu
texto com a revelação de que “toda esta informação vem agora a público e pode
ser vista a olho nu, até 31 de janeiro de 2015, na Biblioteca Nacional de
Portugal na mostra O Primeiro Século de
Edições da Peregrinação, onde está exposto o único exemplar português da
primeira edição”.
Penso cumprir também da minha
parte o dever cultural de chamar a atenção para este portentoso homem de
Quinhentos, raro espécime do herói pícaro português, mas bem ajustado à
idiossincrasia do homem luso, que sempre e de todos os modos soube experimentar
a aventura, ora por vontade própria, ora por necessidade. Ademais, Pinto é o
pioneiro que abriu caminho à literatura de viagens, hoje tanto em voga, e para
a internacionalização de rotas comerciais lá no leste do mundo, mas ao serviço
da grande e inusitada globalização. Por outro lado, é o homem cujos serviços a
pátria não quis reconhecer, refugiando-se no acolhimento da mentira e da
calúnia perpetrada sobre os mais generosos dos seus servidores.
Não obstante, “ditosa pátria que
tais filhos tem”!
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