Não
tenho pessoal ou politicamente nada contra a figura de Durão Barroso, a não ser
meia dúzia de ideias diferentes e outra meia dúzia de formas de ver a
realidade. Talvez ele tenha mais razão do que eu por ter estudado mais e/ou por
ter viajado mais, a menos que os plúrimos contactos que o alto cargo europeu
que lhe foi dado desempenhar o tenham guindado a uma estatura que lhe permita
dizer tudo ou quase tudo o que lhe venha à mente.
Dá-me
a impressão de que o ex-Primeiro-Ministro de Portugal (dois anos) e
ex-Presidente da Comissão Europeia (dez anos) está a escrever as suas memórias
aos pedacinhos, alguns bem disformes. Vou ater-me somente a alguns, para não
sobrecarregar o espírito.
Era
lá possível imaginar que o hoje, dia 3 de novembro, condecorado pelo Presidente
da República viesse agora justificar-se em relação ao seu abandono do governo
para ir chefiar a Comissão Europeia e, nesse sentido, viesse a considerar que
fora correta a decisão tomada por si em 2004, estribando a sua justificação
exatamente no facto de Portugal estar a prestar-lhe “o reconhecimento” público
através da condecoração entregue pelo Chefe do estado?
Esquece-se
o ex-eurocrata de que, ao conhecer os resultados das eleições europeias de
junho de 2004, de pesada derrota para o seu governo de coligação, prometeu
publicamente que o Governo iria ler e interpretar os sinais que o povo tinha
dado à governação. Se a sua decisão de ir para Bruxelas foi a melhor forma
selecionada de ler os resultados e ver neles os sinais do povo, confesso que
foi uma leitura bem estranha que a escola portuguesa não legitima.
Ora,
todos nós sabemos dos contextos e das razões que determinam as condecorações.
Algumas delas decorrem não do mérito, mas do uso, da tradição ou do mero
exercício dos altos cargos. Algumas figuras públicas são homenageadas na pior
ocasião. Recordo a entrega recente do galardão do município da Covilhã ao
ex-Primeiro-Ministro José Sócrates ou o doutoramento “honoris causa” conferido
ao ex-Presidente da PT pela Universidade da Beira Interior. O primeiro foi
governante durante seis anos, mas agora ainda não perfez a sua travessia no
deserto; o segundo foi determinante no lançamento do empreendimento PT na
Covilhã, mas a PT e o seu ex-Presidente não estão na melhor forma. E não serão esses
atos de reconhecimento público que reabilitam as mencionadas personalidades nem
a PT. Não sei mesmo se, a continuar assim, o melhor galardão não será o peito
limpo de qualquer honraria.
Concordo
com Barroso quando ele diz que “nenhuma distinção
podia dar-me maior satisfação do que esta que o senhor Presidente da República
acaba de me atribuir”. Mas não aplaudo as restantes palavras que emolduram
aquele enunciado. Por certo, a receção do Grande Colar da Ordem do Infante Dom
Henrique, dá azo a que o homenageado tenha afirmado – com alguma razão, é certo
– que, enquanto Presidente da Comissão Europeia, executou também “um programa
português”, mas também combateu “algum soberanismo” que eivou alguns setores da
opinião pública portuguesa. Gostava de saber o que entende o homenageado por “soberanismo”.
Quando o político José Manuel refere que “esteve sempre em mim ao
longo destes dez anos a convicção de que estava também a executar um programa
português, porque não vejo, aliás, contradição entre aquilo que é o interesse
português e o interesse geral europeu”, está claramente a distanciar-se do
pensar e do sentir da maioria dos portugueses, que se considera insultada e
injustiçada pela Europa do presidente tão genuinamente português. Acusados de
viverem acima das suas possibilidades, tiveram os portugueses que pagar bem
cara a fatura da venda de ilusões que redundou em crédito excessivo,
dificuldade de entrar no mercado de arrendamento, engorda inútil dos lucros
bancários e seu esmiframento ou desaparecimento até ao descalabro total. Os
juros da dívida decorrente do programa de ajustamento foram altíssimos até que
o BCE decidiu outro rumo para a satisfação dos compromissos externos dos países
dos estados-membros com programas de assistência financeira. Mas era preciso
salvar a Grécia, seguir o exemplo da Irlanda, suster a crise italiana, impedir
a francesa, mascarar a crise espanhola (aí a assistência veio a título da crise
da banca; em Portugal, onde o problema era similar, veio a título do Estado que
era preciso castigar à boa maneira nortenha). Cá, sob a excelente, assídua e
meticulosa supervisão, registaram-se os casos do BPN, do BPP e agora o
descalabro do BES/GES – para não falar do BCP (Quem não se lembra de Berardo?),
do Banif ou sua questão familiar e das brincadeiras da CGD. Mas o Zé, o Povo,
paga quer bufe quer não bufe! E em seu nome distribuem-se comendas, colares e
grã-cruzes.
Há uma coisa que “aprendi” com o Zé, que não é povo, que o povo
escolheu para governar Portugal e que optou por ir alargar a Europa (Em 2004,
éramos 15; agora somos 28! – gaba-se Durão Barroso): “ser-se presidente da
Comissão é uma função que temporariamente se exerce, ser-se português é uma
condição que existencialmente permanece”. Porém, permito-me ensinar-lhe uma
pequena coisa: “ser-se europeu é uma condição mais longeva que ser-se português
e ser-se governante pode durar meia dúzia de dias (ex: Palma Carlos) ou
quarenta anos (ex: Oliveira Salazar); e ser-se presidente da Comissão dura
cinco anos ou dez”. Teve sorte o rico.
***
É, pois, com sentido de
enorme gratidão que vejo este portentoso estadista (com acesso ao G8 e ao G20) fazer
o seu autoelogio, aquele que eu não sou capaz de lhe fazer e não sei se outros também
serão capazes. São deveras emocionantes os itens da sua folha de serviço que
ele respigou:
– Procurou defender
sempre o interesse de Portugal, em que não via
contradição com a defesa do interesse europeu. E Portugal está mais pobre!
– Este duplo papel ficou
patente na defesa da coesão e de maior ambição em termos de solidariedade, por
exemplo, no que diz respeito aos programas estruturais, de fundos estruturais
2007-2014 e 2014-2020, ou na defesa de condições mais solidárias na aplicação
de programas de ajustamento, programas que pudessem garantir que os países como
o nosso viessem a sair deles sem precisar de mais condições. Temos maior zona
marítima, mas sem equipamentos marinhos!
– Procurou ter uma “visão
da lusofonia” (Que visão?), dando-lhe “maior relevância no plano
internacional”. Os lusófonos não podem falar português nas aulas no Luxemburgo
e 8 altos funcionários foram expulsos de Dili, num horizonte de 42 que não
agradam. É a lusofonia consolidada!
– Chefiou a Comissão numa
década de “desafios excecionais para a União Europeia”, com a
crise das dívidas soberanas e o alargamento de 15 para 29 estados-membros. Não se
não será um saco de gatos, agora!
– Conseguiu, no seu
mandato, a aprovação da “legislação para o setor financeiro”,
que julga das mais completas do mundo. Mas o setor financeiro está a dar cabo
do poder político, da economia e está em autofagia!
– Junta-se a Cavaco Silva
no “ensinamento” de que “não se
pode pedir à Europa que resolva todos os problemas, que competem crucialmente aos governos
dos estados-membros”. Parece que é melhor a crise deixar cada um à sua sorte!
– Espera que os governos
nacionais e a União Europeia prestem “atenção à questão essencial do
investimento”, tanto privado como público, de que a Europa precisa “para responder
ao problema do desemprego”. Agora, de carteiras vazias?!
***
Como é que Durão Barroso
vem agora falar da vivência de 48 anos em regime autoritário e com reflexos
nacionalistas? Já lá vão quarenta anos de instauração do regime democrático em
Portugal. E não é este o país onde as ideias eurocéticas, xenófobas e
obstinadamente nacionalistas campeiam. Ou será necessário encontrar razões para
mascarar a sua inépcia de líder europeu tal como sente, talvez para o mesmo
efeito, a necessidade de se desfazer em declarações e mais declarações sobre a
sua prestação?
Nesse périplo de
declarações, não se inibe de revelar alegados factos que um estadista em maré
de despedida deveria omitir ou deixar para ulterior momento.
Não percebo qual a
vantagem de referir, por exemplo, que pressionou os líderes do PSD e do CDS
para aceitarem comprometer-se com o programa de ajustamento ou de
explicitamente alinhar com a narrativa de que o país estava à beira da
bancarrota, que não tinha dinheiro para salários e pensões. Não percebo, a não
ser por ressabiamento a deselegante utilidade de declarar que apoiou
incondicionalmente Sócrates até ao fim, mesmo quando a maior parte não lhe
atendia o telefone. Sem me preocupar com qualquer tentativa de regenerar a
imagem de Pinto de Sousa, gostava de saber qual o rumo que o país teria
seguido, se aquele que declarou que o país estava de tanga se tivesse mantido
no seu posto em 2004.
Já não me refiro às
contradições por si mal interiorizadas: a Europa resistiu às crises mais graves
do que qualquer uma das anteriores, mas foi tão sacudida que ia perdendo os
países do Sul; o presidente tinha muito poder, mas não lhe cabia condicionar o
Conselho; Merkel foi dura e compreensiva, forte e autoritária, mas tinha
condicionantes como o parceiro de coligação e o Tribunal Constitucional alemão;
a Europa é de todos, mas não se pode evitar a relevância do eixo franco-alemão.
E chega o equidistante eurófilo a assentir numa afirmação do fenómeno
“Mercosy”.
Estas contradições e
alguns dos dislates, mesmo que apenas de oportunidade só se compreendem no
jeito do autoencómio provinciano, na necessidade de autojustificar o
injustificável, na procura da boa “pose” fotográfica na despedida ou na
marcação da agenda política a médio prazo.
E o resultado é a
antecipação da escrita das memórias – a que tem direito, mas não agora, que é
demasiado cedo – num sistema de memorial em pedaços repartido, assim como a
terceira guerra mundial aos pedaços!
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