Em
reflexão anterior já dava conta do acontecimento: o Papa Falou ao Parlamento
Europeu – instituição fundamental da vida da União Europeia – onde apontou o
dedo ao drama da “solidão” e denunciou o “tecnicismo” das instituições
comunitárias, mas também deixou uma mensagem de esperança e encorajamento.
Evocando
a visita de João Paulo II há mais de 25 anos, o Pontífice assinalou a mudança
substantiva da Europa, que deixou de estar repartida por dois blocos políticos
e económicos contrapostos e que agora se encontra num contexto duma União
Europeia institucionalmente mais ampla inserida num “mundo mais complexo e em
intensa movimentação”. É um mundo crescentemente mais “interligado e global” e
“menos eurocêntrico” e em que a “uma União mais alargada, mais influente,” se
justapõe a “imagem duma Europa um pouco envelhecida e empachada”, talvez menos
protagonista num mundo que a “olha com indiferença, desconfiança” e até com
suspeita.
Ora,
a dimensão de esperança da aludida mensagem radica na confiança de que as
dificuldades se tornem promotoras de unidade e de superação dos medos que a
Europa enfrenta e na confiança que depositamos “no Senhor que transforma o mal
em bem e a morte em vida”. Já a dimensão do encorajamento leva à convicção da
capacidade do trabalho conjunto para “superar as divisões e promover a paz e
comunhão entre todos os povos do Continente”. Para tanto, precisa-se dum “ambicioso
projeto político”, assente na “confiança no homem” – mais do que cidadão ou
sujeito económico – como “pessoa dotada duma dignidade
transcendente”.
O
Papa assume a “dignidade” como palavra-chave que, caraterizando a recuperação do
pós-guerra, marca a “inegável centralidade” da dignidade humana “contra as
múltiplas violências e discriminações”, que não faltaram ao longo dos séculos, mesmo
na Europa. Nesta perspetiva, surge, como resultado de longo caminho, a
percepção da importância dos direitos humanos, que levou a formar a “consciência
da preciosidade, unicidade e irrepetibilidade de cada pessoa”.
E
é à luz do critério da dignidade que Francisco se interroga face ao tratamento
dos homens como objetos, que se descartam quando se tornam frágeis, doentes ou
velhos; perante o cerceamento da expressão livre do pensamento ou da fé
religiosa; ante a inexistência dum “quadro jurídico claro, que limite o domínio
da força e faça prevalecer a lei sobre a tirania do poder”; em face da
coisificação e discriminação do homem e da mulher; ou perante a privação do
alimento e do mínimo necessário para viver e do acesso ao trabalho
dignificante.
Também
neste areópago, o Bispo de Roma apela ao justo entendimento do conceito de
direitos humanos, contra o pendor meramente reivindicativo e individualista,
olvidando quem está ao lado e que detém exatamente os mesmo direitos, ao abrigo
duma conceção de pessoa “separada de todo o contexto social e antropológico,
quase como uma ‘mónada’ (μονάς) cada vez mais insensível às outras
‘mónadas’ ao seu redor”. Ao conceito de direito – lamenta – já não se associa a
noção também essencial e complementar de dever, afirmando-se os direitos do indivíduo
sem ter em conta que o ser humano está unido ao contexto social, onde os seus
direitos e deveres estão ligados aos dos outros e ao bem comum da sociedade. Pelo
que é cada vez mais necessário “aprofundar uma cultura dos direitos humanos”
que articule a dimensão pessoal com a do bem
comum, numa perspetiva holística, mas na atenção a cada um, de modo que o
direito de cada um não venha a tornar-se fonte de conflitos e violências.
Por
ouro lado, enunciar a dignidade
transcendente do homem implica
assumir a sua natureza e a capacidade inata de distinguir o bem do mal, aquela
“bússola” gravada por Deus nos corações; e significa olhar o homem como um ser relacional – vertente
negada por uma das doenças mais difusa na Europa – a solidão – típica de
quem está privado de vínculos. Esta marca emerge particularmente nos idosos,
tantas vezes abandonados à sua sorte; nos jovens privados de pontos de
referência e de oportunidades para o futuro; nos numerosos pobres que povoam as
nossas cidades; e no olhar perdido dos imigrantes que vieram à procura dum
futuro melhor.
Esta
solidão ficou agravada pela crise económica, de consequências dramáticas do
ponto de vista social; e, apesar do alargamento da União, fez crescer a
desconfiança dos cidadãos nas instituições consideradas distantes, ocupadas a
estabelecer regras ao arrepio da sensibilidade dos povos. De vários lados – diz
o Papa – se colhe uma impressão geral de cansaço e de envelhecimento, duma Europa-avó,
não fecunda nem vivaz, em que os grandes ideais parecem ter perdido força de atracão,
em favor do tecnicismo burocrático das instituições.
***
A
prevalência da absolutização da técnica gera a confusão entre fins e meios, de
que resultam estilos de vida egoístas, caraterizados por uma opulência
insustentável e indiferente ao mundo circundante, sobretudo o dos mais pobres.
E, ao centrar o debate político nas questões técnicas e económicas, em
detrimento duma autêntica orientação antropológica, o ser humano corre o risco
de se ver reduzido a mera engrenagem dum mecanismo que o trata como se fosse um
bem de consumo, objeto de descarte, quando deixa de ser funcional e útil, como
é o caso dos doentes, sobretudo terminais, dos idosos abandonados e sem
cuidados, ou das crianças mortas antes de nascer. É a viciosa «cultura do
descarte» e o estilo do «consumismo exacerbado». Ao invés, valorizar
a dignidade da pessoa significa reconhecer a preciosidade da vida humana, que
nos é dada gratuitamente não podendo, por conseguinte, ser objecto de troca
mercantil.
Assegura
o Papa Francisco que, na sua vocação de parlamentares, os eurodeputados são
missionados a “cuidar da fragilidade, da fragilidade dos povos e das pessoas” –
o que significa “assumir o presente na sua situação mais marginal e angustiante
e ser capaz de ungi-lo de dignidade”. Nestes termos, os eurocratas são
confrontados com a seguinte questão:
Mas, então, como fazer para se devolver
esperança ao futuro, de modo que, a partir das jovens gerações, se reencontre a
confiança para perseguir o grande ideal de uma Europa unida e em paz, criativa
e empreendedora, respeitadora dos direitos e consciente dos próprios deveres?
Para
a reposta, o sumo orador socorre-se do afresco de Rafael Escola de Atenas,
em cujo centro se vê Platão apontando para o alto e Aristóteles a estender a
mão para a frente, para a terra. O céu indica a abertura ao transcendente, a
Deus, que sempre caraterizou o europeu; e a terra representa a sua capacidade
prática e concreta de enfrentar situações e problemas. Ora, segundo Bergoglio,
o futuro da Europa depende da redescoberta do nexo vital e inseparável entre
estes dois elementos. E é a partir da necessidade da abertura ao transcendente
que se afirma a centralidade da pessoa; caso contrário, fica à mercê das modas
e dos poderes momentâneos. Neste aspeto, é fundamental o património que o
cristianismo deixou no passado para a formação sociocultural do Continente e
sobretudo a contribuição que pretende dar hoje e no futuro para o seu
crescimento – contribuição que, longe de constituir perigo para a laicidade dos
Estados e independência das instituições, significa um enriquecimento, uma
mais-valia. Neste contexto se inserem os ideais que a formam desde o início: a
paz, a subsidiariedade e a solidariedade mútua, um humanismo centrado no
respeito pela dignidade da pessoa.
Ao
serviço daquele enriquecimento, o Pontífice renova a disponibilidade da Santa
Sé e da Igreja Católica, através da Comissão das Conferências Episcopais da
Europa (COMECE), para o diálogo profícuo, aberto e transparente com as
instituições da União Europeia.
E
o campo deste diálogo é imenso. Destacam-se, aqui, as numerosas injustiças e
perseguições às minorias religiosas: “comunidades e pessoas são objeto de
bárbaras violências, expulsas de casas e pátrias; vendidas como escravas;
mortas, decapitadas, crucificadas e queimadas vivas, sob o silêncio vergonhoso
e cúmplice de muitos”. Por outro lado, sob o digno do lema da União Europeia, Unidade na diversidade, a
Europa é uma família de povos, que sentirão próximas as instituições se estas souberem
conjugar o ideal da unidade, por que se anseia, com a diversidade própria de
cada um, valorizando as tradições individuais, tomando consciência da sua
história e das suas raízes e libertando-se de quaisquer manipulações e fobias.
É
também preciso ter sempre em mente a arquitetura da União Europeia, assente
sobre os princípios de solidariedade e subsidiariedade, de tal modo que
prevaleça a ajuda recíproca e seja possível caminhar nas vias da mútua
confiança. É, pois, na dinâmica de unidade-particularidade que se coloca ante
os eurodeputados a exigência do cuidado de manter viva a democracia dos povos
da Europa. Mas esta exigência implica que se evitem as “maneiras globalizantes”
de diluição da realidade: “purismos, totalitarismos do relativo,
fundamentalismos a-históricos, eticismos sem bondade, intelectualismos sem
sabedoria”; e que se faça cessar a preeminência do poderio financeiro ao “serviço
de impérios desconhecidos”, provocados pela pressão de interesses das empresas multinacionais
avessos ao interesse universal.
Além
do reconhecimento da centralidade da pessoa humana, a esperança da Europa passa
por investir nela e nos âmbitos onde os seus talentos são formados e dão fruto.
O primeiro âmbito é indubitavelmente o da educação, a começar pela família (que
se quer cada vez mais sólida), célula fundamental e elemento precioso de toda a
sociedade, seguindo-se as instituições educativas: escolas e universidades.
Porém, a educação não se limita a fornecer um conjunto de conhecimentos
técnicos, mas favorece o processo mais complexo do crescimento integral da
pessoa. São inúmeras as potencialidades criativas da Europa em vários campos da
pesquisa científica, alguns dos quais não estão totalmente explorados, entre os
quais se conta o das fontes alternativas de energia, cujo desenvolvimento muito
beneficiaria a defesa do meio ambiente. De facto, esta nossa terra tem
necessidade de cuidados e atenções contínuos e é responsabilidade de cada um
preservar a criação, dom precioso que Deus colocou nas mãos dos homens, de que
não somos senhores, mas guardiões. Pelo que, em vez de nos deixarmos levar pela
soberba do domínio, da posse, da manipulação e da exploração, devemos amá-la e
respeitá-la para bem e fruição de todos. Por exemplo, falando do setor
agrícola, chamado a dar apoio e alimento ao homem, não se pode tolerar que
milhões de pessoas no mundo morram de fome, enquanto toneladas de produtos
alimentares são descartadas diariamente das nossas mesas. Além disso, respeitar
a natureza faz-nos pensar que o homem é sua parte fundamental. Por isso, a par
da ecologia ambiental, há que fomentar a ecologia humana e a economia ecológica,
feitas do respeito pela pessoa entendido no sentido mais genuíno.
Outro
âmbito em que florescem os talentos da pessoa é o trabalho. É, por isso, tempo
de promover as políticas de emprego estável, para devolver dignidade ao
trabalho e garantir as condições adequadas para a sua realização. De forma
similar, é necessário enfrentar juntos a questão migratória, não se podendo “tolerar
que o Mar Mediterrâneo se torne um grande cemitério”.
Depois,
a consciência da identidade europeia é necessária para dialogar de forma
propositiva com os Estados que se candidataram à adesão à União Europeia no
futuro, por exemplo, os da área balcânica, aos quais a entrada na União
Europeia poderá dar resposta ao ideal de paz numa região que tem sofrido
enormemente por causa dos conflitos do passado. E essa consciência é
indispensável também nas relações com os outros países vizinhos,
particularmente os que assomam ao Mediterrâneo, sobretudo os que sofrem em
virtude dos conflitos internos e da “pressão do fundamentalismo religioso e do
terrorismo internacional”.
Aos
eurodeputados enquanto legisladores cabe a tarefa de preservar e fazer crescer
a identidade europeia, para que os cidadãos recuperem a confiança nas
instituições e no projeto de paz e amizade.
O
Papa estriba a posição da Igreja ante estes problemas geopolíticos citando a
carta a Diagoneto, de um epistológrafo anónimo do século II, que ensina que “os
cristãos são no mundo o que a alma é para o corpo”. Ora, como tarefa da alma é
sustentar o corpo, ser a sua consciência e memória histórica, também uma
história já bimilenária liga a Europa e o cristianismo, não sem conflitos e
erros ou mesmo pecados, mas sempre marcada pelo desejo de construir o bem. Trata-se
de uma história espelhada “na beleza das nossas cidades e, mais ainda, na
beleza das múltiplas obras de caridade e de construção humana comum que
constelam o Continente” e que “ainda está, em grande parte, por escrever”, já
que “ela é o nosso presente e também o nosso futuro”.
***
Finalmente,
o Servo dos Servos de Deus deixa aos
Queridos Eurodeputados o repto explícito:
“Chegou a
hora de construir juntos a Europa que gira, não em torno da economia, mas da
sacralidade da pessoa humana, dos valores inalienáveis; a Europa que abraça com
coragem o seu passado e olha com confiança o seu futuro, para viver plenamente
e com esperança o seu presente.
“Chegou o
momento de abandonar a ideia de uma Europa temerosa e fechada sobre si mesma
para suscitar e promover a Europa protagonista, portadora de ciência, de arte,
de música, de valores humanos e também de fé. A Europa que contempla o céu e
persegue ideais; a Europa que assiste, defende e tutela o homem; a Europa que
caminha na terra segura e firme, precioso ponto de referência para toda a
humanidade!”
Afinal,
o Papa falou à Europa, por mais que associações como a Associação República e
Laicidade quisessem coarctar tal evento, num desviado e ultraconservador
sentido da laicidade e num exclusivista significado de democracia. Falou às duas
grandes assembleias da Europa. E os discursos, semelhantes, são pertinentes,
uma vez que puxam pela identidade, pelas raízes, pelo ideal construído no
passado, mas para almejar um futuro de paz, progresso e solidariedade,
libertando o Continente do cansaço, da estagnação e da desconfiança e propondo
o culto dos valores.
Se
precisa de quem lhe fale, a Europa deve escutar quem lhe fala!
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