O
Presidente da República concedeu ao Expresso
uma entrevista que vem publicada na edição de 8 de novembro. Segundo os entrevistadores,
a entrevista “foi curta e limitada a dois temas: a data das eleições
legislativas e cultura de compromisso entre partidos”.
Sobre
a data das próximas eleições, o Presidente foi claro, embora um tanto crispado
e contraditório.
Diz,
com segurança, que o Presidente da República tem de respeitar a lei eleitoral. Tem
razão. Porém, deve ler-se o que diz a lei eleitoral para a Assembleia da
República. E esta, quanto a datas e prazos, só exibe os artigos 19.º e 20.º,
que estabelecem o seguinte:
Artigo
19.º
Marcação das
eleições
1 – O Presidente
da República marca a data das eleições dos deputados à Assembleia da República com
a antecedência mínima de 60 dias ou, em caso de dissolução, com a antecedência
mínima de 55 dias.
2 – No caso de
eleições para nova legislatura, essas realizam-se entre o dia 14 de setembro e
o dia 14 de outubro do ano correspondente ao termo da legislatura.
Artigo
20.º
Dia das eleições
O dia das
eleições é o mesmo em todos os círculos eleitorais, devendo recair em domingo
ou feriado nacional.
Sobre
o art.º 20.º não há nada a discutir, dada a sua clareza. Já em relação ao art.º
19.º, há que dizer que é o Presidente da República quem marca a data das eleições,
que deve fazê-lo com a antecedência mínima de 60 dias (deduz-se que esta antecedência
mínima se aplica aos casos em que a legislatura tem a duração normal de quatro
anos) e que, em caso de dissolução, a antecedência mínima é reduzida para 55
dias. Por outro lado, o mesmo art.º 19.º, no seu n.º 2, estabelece, no caso de eleições
para nova legislatura, um determinado intervalo de datas – 14 de setembro e 14
de outubro – devendo, por força do art.º 20.º, as eleições ocorrer em domingo
ou feriado nacional (agora, com a supressão/suspensão do feriado comemorativo da
implantação da República, deverão ocorrer ao domingo).
Questionado
o Presidente sobre o motivo por que prometeu antecipar eleições para o passado mês
de junho, caso os partidos alinhassem num compromisso de salvação nacional em julho
de 2013, além de outras coisas que afirmou, assegurou que então aquelas as
eleições, a realizarem-se, não seriam para nova legislatura. Ora, salvo melhor
opinião, Sua Excelência, está bastante equivocado. Segundo a nossa Constituição
(CRP), “no caso de dissolução, a Assembleia então eleita inicia nova
legislatura cuja duração será inicialmente acrescida do tempo necessário para
se completar o período correspondente à sessão legislativa em curso à data da
eleição (vd
CRP, art.º 171.º/2.);
e a legislatura tem a duração de quatro sessões legislativas (vd
CRP, art.º 171.º/1.).
O que aquelas eleições poderiam não inaugurar era nova sessão legislativa (que
dura um ano e se inicia a 15 de setembro e vai at´15 de junho seguinte, de
acordo com o n.º 1 do art.º 174.º). De resto, eleições intercalares (e não
antecipadas), destinadas a completar legislatura em curso estavam previstas apenas
no texto originário da CRP de 1976, em relação à 1.ª legislatura, o que valeu somente
para as eleições de 1979, de que saiu vitoriosa a AD de Sá Carneiro.
O
facto de o Presidente da República ter de respeitar a lei eleitoral não o pode
dispensar de cumprir a Constituição e/ou de usar os poderes que a Constituição
lhe confere, desde que os motivos o justifiquem, a critério do próprio Presidente.
Aliás, segundo a hierarquia das leis, vêm, em primeiro lugar, as leis
constitucionais; a seguir, as leis orgânicas; a seguir, as leis de valor
reforçado; depois, as leis a sujeição das quais se produzirão outras; e, finalmente,
as restantes leis.
É
óbvio que o poder de dissolução é conferido ao Presidente da República pela alínea
e) do art.º 133.º, ouvidos os partidos representados na Assembleia da república
e o Conselho de Estado, com as limitações temporais estatuídas no art.º 172.º
A
CRP não especifica os motivos que levam à dissolução, nem a obrigação de ouvir
os partidos e o Conselho de Estado condicionam a decisão do Chefe de Estado. É certo
que o bom senso do Presidente lhe permitirá aferir das condições que recomendam
ou não a solução, o que é consensual, sendo, como dizem alguns, aquela uma
decisão solitária do Presidente.
No
entanto, o Presidente, na entrevista concedida ao aludido semanário, entra em
clamorosa contradição. Em julho de 2013, o país estava em crise política
profunda. Então, segundo manda o senso comum, deveria ter dissolvido a
Assembleia da República e marcar eleições e não prometer antecipá-las dali a um
ano. As eleições e a dissolução não se negoceiam. Depois, a crise existiu –
parece – somente porque Paulo Portas abandonou o Governo por decisão
irrevogável, mas dissipou-se apenas porque, por milagre de Portas, a decisão
passou de irrevogável a revogável e ele subiu a Vice-Primeiro-Ministro. O Chefe
de Estado não pode fazer raciocínios destes.
Quanto
à sua asserção de que agora não há qualquer crise política que justifique a
dissolução do órgão legislativo, é de refletir um pouco mais. Jorge Sampaio
provavelmente não tinha tantas razões para lançar a “bomba atómica” sobre o
Parlamento que apoiava o governo de Santana Lopes como as agora emergentes: a crise
de julho do ano passado não foi resolvida; a troika foi embora e não foi; as
contradições na coligação, as ocultações os dislates são fenómenos extranormais;
os dados do desemprego são mascarados; as relações com Timor estão ao rubro; as
instâncias internacionais não acreditam nas previsões orçamentais; o BES/GES
deixa o sistema político e o de controlo do sistema financeiro na lama; os
aviões e navios russos visitam-nos de forma inusitada; o Ministro os Negócios
Estrangeiros baralha-se no discurso sobre as questões atinentes a portugueses
que estão no estrangeiro e sobre estrangeiros que estão em Portugal; a catástrofe
organizativa na Justiça e na Educação tornou-se irrefutável; o Ministro da Economia
tem feito intervenções vergonhosas em termos irónicos e de achincalhamento dos
poderes, nomeadamente do poder local; a revista Análise Social foi apreendida por causa de um grafitti que representava Passos e Portas manipulados pela senhora
Merkel (pensava-se que a censura política tinha acabado em Portugal); e o
compromisso interpartidário tão desejado por muitos e tão fomentado pelo
Presidente está fora do horizonte da legislatura corrente. Que mais fatores o Presidente
pretenderia encontrar a sério para utilizar a prerrogativa da dissolução parlamentar?
***
Alega
Sua Excelência que em 2011 utilizou a prerrogativa da dissolução porque o Primeiro-
Ministro José Sócrates apresentou o seu pedido de demissão e os partidos com
assento parlamentar não conseguiram gerar nova solução governativa. A circunstância
é verdadeira. Todavia, não podemos esquecer fatores relevantes que a envolveram,
de que se destacam: o discurso da noite eleitoral com que o Presidente
assinalou a vitória da sua reeleição, cheio de azedume; o discurso de posse do
Presidente reeleito na Assembleia da República, a omitir o caráter sistémico da
crise, a sua dimensão europeia e mundial e a apelar ao sobressalto democrático,
à beira da manifestação de 12 de março; a rejeição do PEC 4 (não obstante a sua
similitude com o futuro programa da troika); a conjugação da banca para a
rejeição dos projetos do TGV e do novo aeroporto e para a pressão para o “inevitável”
pedido da intervenção externa. Efetivamente, em 2011, havia crise, mas hoje
também ela existe: por mais que digam o contrário, as pessoas estão pior e o
país também; a classe média está fragilizada; os pobres são em maior número; os
portugueses qualificados emigraram em grande número; a saúde e a educação públicas
estão à beira do colapso por esvaimento de recursos; a ciência, as artes e a
cultura estão em recessão severa; a economia não cresce; e as agências de rating continuavam a classificar Portugal
com as notações de lixo.
O
Presidente tem razão quando acha que não será necessário ajustar as datas eleitorais
aos calendários europeus, desde já porque a maior parte dos países europeus
também não tem calendários ajustados a essa calendarização e quando entende que
não vem mal ao país por as negociações rumo a coligações ou a compromissos de governação
e/ou de regime, até porque, se não houver orçamento aprovado, continua em vigor
o orçamento do ano anterior a gerir segundo o regime de duodécimos. Nesse caso,
o Presidente terá feito mal em não sujeitar os orçamentos dos últimos três anos
anteriores à fiscalização prévia do Tribunal Constitucional, a não ser que a
sua decisão de não sujeição tenha sido deliberada a pensar na relativização da
eficácia de algumas declarações de inconstitucionalidade, remetida para anos
seguintes em relação ao ano económico então em curso (2012), ou sem efeito
retroativo, como aconteceu neste ano de 2014.
Depois,
o Presidente diz que não se pode usar o instrumento da dissolução para
favorecer este ou aquele partido (Em 2011 também pensava isso?) e tem razão. Também
diz que o Parlamento, se tem uma composição e um entendimento diferentes de
1999, pode alterar a lei eleitoral, o que ele aceitaria. Assim, manterá os
prazos da lei eleitoral e meio agastado acrescenta “e ponto final”. E acrescenta,
a meu ver com a malícia de vedor, que a alteração à lei eleitoral em 1999 foi
proposta pelo PS (o atual líder do PS, António Costa, era Ministro dos Assuntos
Parlamentares de Guterres), aprovada com os votos favoráveis de PS, PCP e Verdes
e com os votos contra do PSD e do CDS.
***
Finalmente,
gostaria de perguntar se a situação mudou politicamente em relação a 2009. Naquele
ano, o PS ganhou as eleições sem maioria absoluta. O Presidente empossou um
governo minoritário chefiado por José Sócrates, porque os partidos não quiseram
aceitar um compromisso governativo com o PS de Sócrates. De que garantias
dispõe o Presidente de que o governo surgido das eleições de 2015 terá de ser
ou vai ser maioritário, quando ele, na entrevista em causa, assegurou que é
preciso não conhecer os partidos para imaginar que o Presidente possa fazer
alguma coisa que os partidos não queiram que se faça.
Por
isso, seria importante que o Presidente se resguardasse um pouco mais, de modo
que o Poder da Palavra utilizado contidamente por si seja um verdadeiro poder, uma
reserva moral e política atendível por todos.
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