sábado, 8 de novembro de 2014

O Presidente da República tem de respeitar a lei eleitoral

O Presidente da República concedeu ao Expresso uma entrevista que vem publicada na edição de 8 de novembro. Segundo os entrevistadores, a entrevista “foi curta e limitada a dois temas: a data das eleições legislativas e cultura de compromisso entre partidos”.
Sobre a data das próximas eleições, o Presidente foi claro, embora um tanto crispado e contraditório.
Diz, com segurança, que o Presidente da República tem de respeitar a lei eleitoral. Tem razão. Porém, deve ler-se o que diz a lei eleitoral para a Assembleia da República. E esta, quanto a datas e prazos, só exibe os artigos 19.º e 20.º, que estabelecem o seguinte:
Artigo 19.º
Marcação das eleições
1 – O Presidente da República marca a data das eleições dos deputados à Assembleia da República com a antecedência mínima de 60 dias ou, em caso de dissolução, com a antecedência mínima de 55 dias.
2 – No caso de eleições para nova legislatura, essas realizam-se entre o dia 14 de setembro e o dia 14 de outubro do ano correspondente ao termo da legislatura.
Artigo 20.º
Dia das eleições
O dia das eleições é o mesmo em todos os círculos eleitorais, devendo recair em domingo ou feriado nacional.
Sobre o art.º 20.º não há nada a discutir, dada a sua clareza. Já em relação ao art.º 19.º, há que dizer que é o Presidente da República quem marca a data das eleições, que deve fazê-lo com a antecedência mínima de 60 dias (deduz-se que esta antecedência mínima se aplica aos casos em que a legislatura tem a duração normal de quatro anos) e que, em caso de dissolução, a antecedência mínima é reduzida para 55 dias. Por outro lado, o mesmo art.º 19.º, no seu n.º 2, estabelece, no caso de eleições para nova legislatura, um determinado intervalo de datas – 14 de setembro e 14 de outubro – devendo, por força do art.º 20.º, as eleições ocorrer em domingo ou feriado nacional (agora, com a supressão/suspensão do feriado comemorativo da implantação da República, deverão ocorrer ao domingo).
Questionado o Presidente sobre o motivo por que prometeu antecipar eleições para o passado mês de junho, caso os partidos alinhassem num compromisso de salvação nacional em julho de 2013, além de outras coisas que afirmou, assegurou que então aquelas as eleições, a realizarem-se, não seriam para nova legislatura. Ora, salvo melhor opinião, Sua Excelência, está bastante equivocado. Segundo a nossa Constituição (CRP), “no caso de dissolução, a Assembleia então eleita inicia nova legislatura cuja duração será inicialmente acrescida do tempo necessário para se completar o período correspondente à sessão legislativa em curso à data da eleição (vd CRP, art.º 171.º/2.); e a legislatura tem a duração de quatro sessões legislativas (vd CRP, art.º 171.º/1.). O que aquelas eleições poderiam não inaugurar era nova sessão legislativa (que dura um ano e se inicia a 15 de setembro e vai at´15 de junho seguinte, de acordo com o n.º 1 do art.º 174.º). De resto, eleições intercalares (e não antecipadas), destinadas a completar legislatura em curso estavam previstas apenas no texto originário da CRP de 1976, em relação à 1.ª legislatura, o que valeu somente para as eleições de 1979, de que saiu vitoriosa a AD de Sá Carneiro.
O facto de o Presidente da República ter de respeitar a lei eleitoral não o pode dispensar de cumprir a Constituição e/ou de usar os poderes que a Constituição lhe confere, desde que os motivos o justifiquem, a critério do próprio Presidente. Aliás, segundo a hierarquia das leis, vêm, em primeiro lugar, as leis constitucionais; a seguir, as leis orgânicas; a seguir, as leis de valor reforçado; depois, as leis a sujeição das quais se produzirão outras; e, finalmente, as restantes leis.
É óbvio que o poder de dissolução é conferido ao Presidente da República pela alínea e) do art.º 133.º, ouvidos os partidos representados na Assembleia da república e o Conselho de Estado, com as limitações temporais estatuídas no art.º 172.º
A CRP não especifica os motivos que levam à dissolução, nem a obrigação de ouvir os partidos e o Conselho de Estado condicionam a decisão do Chefe de Estado. É certo que o bom senso do Presidente lhe permitirá aferir das condições que recomendam ou não a solução, o que é consensual, sendo, como dizem alguns, aquela uma decisão solitária do Presidente.
No entanto, o Presidente, na entrevista concedida ao aludido semanário, entra em clamorosa contradição. Em julho de 2013, o país estava em crise política profunda. Então, segundo manda o senso comum, deveria ter dissolvido a Assembleia da República e marcar eleições e não prometer antecipá-las dali a um ano. As eleições e a dissolução não se negoceiam. Depois, a crise existiu – parece – somente porque Paulo Portas abandonou o Governo por decisão irrevogável, mas dissipou-se apenas porque, por milagre de Portas, a decisão passou de irrevogável a revogável e ele subiu a Vice-Primeiro-Ministro. O Chefe de Estado não pode fazer raciocínios destes.
Quanto à sua asserção de que agora não há qualquer crise política que justifique a dissolução do órgão legislativo, é de refletir um pouco mais. Jorge Sampaio provavelmente não tinha tantas razões para lançar a “bomba atómica” sobre o Parlamento que apoiava o governo de Santana Lopes como as agora emergentes: a crise de julho do ano passado não foi resolvida; a troika foi embora e não foi; as contradições na coligação, as ocultações os dislates são fenómenos extranormais; os dados do desemprego são mascarados; as relações com Timor estão ao rubro; as instâncias internacionais não acreditam nas previsões orçamentais; o BES/GES deixa o sistema político e o de controlo do sistema financeiro na lama; os aviões e navios russos visitam-nos de forma inusitada; o Ministro os Negócios Estrangeiros baralha-se no discurso sobre as questões atinentes a portugueses que estão no estrangeiro e sobre estrangeiros que estão em Portugal; a catástrofe organizativa na Justiça e na Educação tornou-se irrefutável; o Ministro da Economia tem feito intervenções vergonhosas em termos irónicos e de achincalhamento dos poderes, nomeadamente do poder local; a revista Análise Social foi apreendida por causa de um grafitti que representava Passos e Portas manipulados pela senhora Merkel (pensava-se que a censura política tinha acabado em Portugal); e o compromisso interpartidário tão desejado por muitos e tão fomentado pelo Presidente está fora do horizonte da legislatura corrente. Que mais fatores o Presidente pretenderia encontrar a sério para utilizar a prerrogativa da dissolução parlamentar?
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Alega Sua Excelência que em 2011 utilizou a prerrogativa da dissolução porque o Primeiro- Ministro José Sócrates apresentou o seu pedido de demissão e os partidos com assento parlamentar não conseguiram gerar nova solução governativa. A circunstância é verdadeira. Todavia, não podemos esquecer fatores relevantes que a envolveram, de que se destacam: o discurso da noite eleitoral com que o Presidente assinalou a vitória da sua reeleição, cheio de azedume; o discurso de posse do Presidente reeleito na Assembleia da República, a omitir o caráter sistémico da crise, a sua dimensão europeia e mundial e a apelar ao sobressalto democrático, à beira da manifestação de 12 de março; a rejeição do PEC 4 (não obstante a sua similitude com o futuro programa da troika); a conjugação da banca para a rejeição dos projetos do TGV e do novo aeroporto e para a pressão para o “inevitável” pedido da intervenção externa. Efetivamente, em 2011, havia crise, mas hoje também ela existe: por mais que digam o contrário, as pessoas estão pior e o país também; a classe média está fragilizada; os pobres são em maior número; os portugueses qualificados emigraram em grande número; a saúde e a educação públicas estão à beira do colapso por esvaimento de recursos; a ciência, as artes e a cultura estão em recessão severa; a economia não cresce; e as agências de rating continuavam a classificar Portugal com as notações de lixo.
O Presidente tem razão quando acha que não será necessário ajustar as datas eleitorais aos calendários europeus, desde já porque a maior parte dos países europeus também não tem calendários ajustados a essa calendarização e quando entende que não vem mal ao país por as negociações rumo a coligações ou a compromissos de governação e/ou de regime, até porque, se não houver orçamento aprovado, continua em vigor o orçamento do ano anterior a gerir segundo o regime de duodécimos. Nesse caso, o Presidente terá feito mal em não sujeitar os orçamentos dos últimos três anos anteriores à fiscalização prévia do Tribunal Constitucional, a não ser que a sua decisão de não sujeição tenha sido deliberada a pensar na relativização da eficácia de algumas declarações de inconstitucionalidade, remetida para anos seguintes em relação ao ano económico então em curso (2012), ou sem efeito retroativo, como aconteceu neste ano de 2014.
Depois, o Presidente diz que não se pode usar o instrumento da dissolução para favorecer este ou aquele partido (Em 2011 também pensava isso?) e tem razão. Também diz que o Parlamento, se tem uma composição e um entendimento diferentes de 1999, pode alterar a lei eleitoral, o que ele aceitaria. Assim, manterá os prazos da lei eleitoral e meio agastado acrescenta “e ponto final”. E acrescenta, a meu ver com a malícia de vedor, que a alteração à lei eleitoral em 1999 foi proposta pelo PS (o atual líder do PS, António Costa, era Ministro dos Assuntos Parlamentares de Guterres), aprovada com os votos favoráveis de PS, PCP e Verdes e com os votos contra do PSD e do CDS.
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Finalmente, gostaria de perguntar se a situação mudou politicamente em relação a 2009. Naquele ano, o PS ganhou as eleições sem maioria absoluta. O Presidente empossou um governo minoritário chefiado por José Sócrates, porque os partidos não quiseram aceitar um compromisso governativo com o PS de Sócrates. De que garantias dispõe o Presidente de que o governo surgido das eleições de 2015 terá de ser ou vai ser maioritário, quando ele, na entrevista em causa, assegurou que é preciso não conhecer os partidos para imaginar que o Presidente possa fazer alguma coisa que os partidos não queiram que se faça.

Por isso, seria importante que o Presidente se resguardasse um pouco mais, de modo que o Poder da Palavra utilizado contidamente por si seja um verdadeiro poder, uma reserva moral e política atendível por todos.

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