Não
sou daqueles que, a propósito das relações entre Portugal e Timor-Leste, tecem
loas ao desempenho de Portugal ou daqueles que usam da máxima complacência com
Xanana Gusmão e outros dirigentes ancorados em Díli. Não obstante, acho
problemática a forçada saída de portugueses de Timor-Leste, recentemente noticiada
pela Comunicação Social.
Quanto
aos que enaltecem o papel de Portugal, recordo não se poder olvidar o abandono
a que o Governo de Lisboa, em 1975, votou o território, os militares e o último
governo da colónia. A população viu-se arrastada com o território para a
anexação pela Indonésia, alegadamente por Díli estar sob o domínio da FRETILINI,
de feição marcadamente filocomunista. O Governo e os mais graduados das forças
armadas portuguesas refugiaram-se na ilha de Ataúro, à espera de instruções de
Lisboa, que nunca mais chegavam. E, como nos conta Rui da Palma Carlos na sua
autonarrativa do livrinho Eu fui ao fim
de Portugal, um considerável número de praças, sargentos e oficiais, das forças
armadas portuguesas, foram humilhantemente deportados para incógnitas paragens
indonésias, onde sofreram indizíveis maus tratos.
Não
quero cometer a injustiça de acusar a diplomacia portuguesa de eventual negligência.
Todavia, objetivamente ficou à vista de todos como a questão de Timor
permaneceu no limbo do semiesquecimento até que, em 12 de novembro de 1991,
durante o massacre no cemitério de Santa Cruz, em Díli, contra manifestantes
que lutavam pela independência e sufragavam as almas dos que haviam tombado pela
causa da liberdade, o mundo pareceu ter acordado. Foi então que Mário Soares,
Presidente da República de Portugal, desabafou para os portugueses e para o
mundo quanto o impressionara o ter ouvido as pessoas de Díli a rezar em
Português no meio daquele sofrimento.
É
certo que já em 13 de maio do mesmo ano, no seu discurso, à despedida de João
Paulo II no termo da sua visita a Portugal, Mário Soares dirigira ao Papa um apelo
de intercessão por Timor. E, antes, um grupo alargado de portugueses se quotizara
para a aquisição dum emissor e uma
antena com vista a que a voz de Xanana se fizesse ouvir a partir da guerrilha
que ele comandava lá das montanhas. Porém, a associação Portugal-Indonésia
continuava ativa e não no melhor sentido. Também em outubro daquele ano, uma
delegação com deputados portugueses e 12 jornalistas intentaram uma visita ao
território por ocasião da presença de Pieter Kooijmans, representante
especial da ONU para os Direitos Humanos e Tortura. Como o governo indonésio
objetara à inclusão da australiana Jill Jolliffe, apoiante ativa do movimento
independentista FRETILINI, Portugal cancelou a ida da delegação, o que
desmoralizou um pouco os ativistas independentistas timorenses, que pretendiam
aproveitar a visita para melhorar a visibilidade internacional da sua causa. No
entanto, aumentaram as tensões entre as autoridades indonésias e a juventude
timorense; e a 28 de outubro, as tropas indonésias localizaram um grupo da
resistência na igreja de Motael, em Díli.
Deu-se violento confronto entre os ativistas
pró-integração e os ativistas independentistas que estavam na Igreja; quando
este acabou, um homem de cada lado estava morto. Sebastião Gomes, apoiante da
independência de Timor Leste, foi retirado da Igreja e abatido pela tropa
indonésia e o integracionista Afonso Henriques foi atingido e morto durante a
luta. A 12 de novembro, mais de duas mil pessoas marcharam desde a igreja onde
se celebrou a missa em memória de Sebastião Gomes até ao cemitério de Santa Cruz, onde
está enterrado, para lhe prestarem homenagem. O exército indonésio abriu fogo
sobre a população, matando 271 pessoas no local e com 127 a morrer, dos
ferimentos, nos dias seguintes.
Depois deste evento, a generalidade dos países
passaram a apoiar Timor-Leste e reconheceram o direito da sua população para se
autodeterminar pela independência ou pela não independência – o que veio a
concretizar-se com o referendo oito anos depois, em 30 de agosto.
E
o primeiro Presidente da República timorense, Xanana Gusmão, veio a Portugal
onde foi recebido com todas as honras políticas e militares, bem como pela
população, que lhe dispensou as melhores manifestações de carinho.
***
Recorde-se
que as relações entre os dois países conheceram momentos de boa cooperação no
âmbito da segurança interna, com envio da GNR para manutenção da ordem pública
e instrução de quadros, na educação com envio de professores e livros, na
segurança social e, recentemente, na área da justiça, ao abrigo de protocolo
específico. Tempo houve em que as autoridades timorenses manifestaram o desejo
de ajudar Portugal no seu problema de endividamento externo através do fundo
timorense do petróleo.
Algo,
entretanto, mudou. Na cimeira da CPLP de Díli, em julho passado, como todos se
lembram, Cavaco Silva e Passos Coelho foram literalmente humilhados ao serem confrontados
com a inclusão automática, por indicação do Presidente da República timorense,
na mesa da cimeira, do Chefe de Estado da Guiné Equatorial, já membro da CPLP de pleno
direito sem o formalismo da eleição e sem qualquer comunicação prévia. Os
representantes portugueses ao mais alto nível aceitaram o facto como fatalidade
histórica e o nosso Ministro dos Negócios Estrangeiros (MNE) não deu qualquer explicação
nem formulou um ligeiro “ai”.
Será
que as autoridades diplomáticas timorenses se arrogavam também o direito de
receberem pedidos de desculpa do nosso MNE como as angolanas. O que dirá o irrevogável
Paulo Portas? Evidentemente que no seu tempo não era assim.
***
No
atinente à expulsão dos magistrados judiciais e do ministério público bem como
do elemento da polícia que fazia a ligação com os magistrados, são de levantar
algumas questões.
Não
creio que se trate de mera questão interna de Timor-Leste em que foram
apanhados os portugueses, como perorou o nosso MNE. Tão dúbia afirmação, a
corresponder a alguma verdade, deveria ser prévia a um formal pedido de
desculpas às autoridades timorenses. Não quero também encarar a hipótese de
aqueles funcionários qualificados serem apanhados em negócios escuros ligados
ou não à função que ali exerciam. Se acaso isso tivesse acontecido, deveria ser
acionada a justiça timorense e/ou a portuguesa, o MNE deveria ter sido mais
claro, a ponto de os movimentos de solidariedade em torno do caso se tornarem
mais autocontidos.
O
Primeiro-Ministro Xanana Gusmão, na sequência da conveniente decisão do
Conselho de Ministros, comunicou a ordem de expulsão, dando o prazo de 48 horas.
Os motivos invocados foram a segurança e o interesse ao Estado, a incompetência
dos visados. Até foi dito que não estava em causa o código e o processo civil,
mas o petróleo e os prejuízos ao Estado.
Questionado
sobre o motivo por que não abordara o Primeiro-Ministro de Portugal, respondeu
de forma evasiva, que estava ocupado com outras atividades. Esta não é resposta
de estadista, muito menos dum amigo de Portugal. Nem é justa: se há erros, falhas,
crimes e danos, eles devem ser denunciados com vista a reparação. Não é lícito
ficar-se a resposta em generalidades ou evasivas. Por outro lado, nada esclarece
a afirmação de Passos Coelho que assegurou ter feito tudo para evitar esse desfecho e considerou que muita água terá
de correr para Portugal retomar a cooperação judiciária com Timor-Leste.
E sabe a hipocrisia deslavada a garantia de Xanana de que “não há intenção nenhuma de esfriar as relações com Portugal”
ou de que a decisão “não é contra Portugal nem contra os portugueses”. Contra
quem será então?
O DN de hoje, dia 5,
afirma que juízes e procuradores estavam ligados a uma verdadeira operação “mãos
limpas” que decorria há três anos, sendo um deles juiz titular do processo
contra a Ministra das Finanças. Portanto, parece que o real motivo da decisão de
expulsão terá sido evitar que ministros do governo timorense chegassem à barra
dos tribunais. Não foi, pois, suficiente o pedido de Xanana ao Parlamento para
que impedisse o levantamento da imunidade dos membros do governo enquanto não terminasse
o mandato e a auditoria ao setor da justiça.
Sucede também que algumas ações intentadas pelas concessionárias
do petróleo contra o Estado terão redundado na condenação do mesmo ao pagamento
de avultadas indemnizações.
Aqui residem problemas no quadro da justiça, que se sente
pressionada, a ponto de o conselho superior da magistratura timorense se ter
reunido de emergência e manifestado claramente a sua estupefação. Os magistrados
queixam-se de que familiares dos arguidos ou dos réus (de alto nível político) assistem
a sessões de julgamento, vendo nisso uma violação da independência dos tribunais.
Mas há problemas políticos e económicos: cercar judicialmente membros do governo
ou deputados, sobretudo em democracias frágeis exige um certo cuidado (o
governo e o parlamento também são independentes dos tribunais); e não sei se o
Estado timorense ganhou já o traquejo suficiente para interpor recurso das
decisões judiciais de instância. Nós, em Portugal, nos alvores da atual
democracia talvez tenhamos cometido mais erros que os timorenses. Mas já
ninguém se lembra!
Porém, o problema mais melindroso parece-me ser o da cooperação. Os
técnicos cooperantes estão sobretudo para ensinar, acompanhar. Deveriam abster-se,
mesmo que solicitados, de intervir na tomada de decisões. As decisões,
sobretudo as judiciais, deveriam ser tomadas pelas autoridades nacionais. Ninguém
as deveria substituir, mesmo que algumas fossem erradas. É fazendo que se
aprende e os erros são sempre passíveis de correção. E as autoridades
timorenses acusaram o toque: os estrangeiros decidiam em vez de ensinarem. Será
que a incompetência apontada por Xanana se referia não à competência técnica, mas
apenas à ultrapassagem das competências técnicas? Terá o protocolo de cooperação
acautelado tais situações?
Não terão sentido os magistrados um certo gosto de engasgar membros
do governo de Timor-Leste, quando em Portugal raramente os apanham a jeito?! Seja
como for, não vale a pena a Ministra da Justiça vira agora acenar com a existência
do protocolo. Todavia, a nossa PGR fez bem ao solicitar ao Governo que
diligencie no sentido de assegurar a proteção dos portugueses expulsos; o MNE
faz bem em mandar regressar também os outros, até que se esclareça a situação;
o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público apela para a ONU falando em
grosseira violação da independência do poder judicial; e a Associação Sindical
dos Juízes repudia a decisão de expulsão e solicita às autoridades portuguesas
e internacionais que tomem posição sobre esta violação dos princípios do Estado
de Direito Democrático.
Resta-nos esperar pelo correr de tinta para a retoma das boas
relações Portugal-Timor-Leste.
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