sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Corrupção e pecado

Em seu discurso do passado dia 23 de outubro à Delegação da Associação Internacional de Direito Penal, o Papa Francisco, entre outras matérias, abordou o delito da corrupção situando-a no contexto da “escandalosa concentração da riqueza global”, atribuindo a sua possibilidade à “conivência da gestão pública com os poderes fortes” e, por analogia com o que se passa com o corpo tumulado, apontando-a como processo de morte.
Diz o Pontífice que, “quando a vida morre, há corrupção”. Com efeito, quando a corrupção se instala, morrem os valores da honestidade, do respeito, da solidariedade e daquilo que o homem tem de mais precioso, a dignidade. Morre o homem para se levantar a ganância, a opressão, o espezinhamento, a opressão do homem pelo homem. E, se corrupção não compagina em si o pecado, constitui-se como o pior fruto do pecado.
O discurso papal daquele dia fica emoldurado pelo valor fundamental da dignidade humana. E como atropelo a esta caraterística basilar do ser criado por Deus à sua imagem e semelhança, Francisco condena as tendências sociológicas da incitação à vingança e do populismo penal. Pensa-se que a vingança e a violência resolvem os males e os erros inerentes à convivência social tal como se pretende encontrar bodes expiatórios para os crimes cujos autores se desconhecem, levantando-se tantas vezes infundadas suspeitas sobre quem se julga persona non grata. Mais: com grande facilidade se pensa que a pena pública resolve eficazmente os problemas da justiça. E, por isso, ela é tantas vezes abusiva e desproporcionada. Exagera-se na facilidade da prisão sem condenação (prisão preventiva como antecipadora da pena) e condenação sem julgamento (com base na arbitrariedade e na sumarização processual). Depois, com facilidade se falta ao respeito pelo princípio da supremacia da vida do homem, decretando a pena de morte, como se não houvera outra forma de proteger os indivíduos e a sociedade do injusto agressor, com o risco de condenar alguém injustamente sem retorno e com possível erro judiciário, ou ainda recorrendo criminosamente às execuções capitais extrajudiciárias, tanto da parte dos Estados como de entidades privadas com poder (vg: máfias, homicídio encomendado). Também aponta o Papa a prisão perpétua como “uma pena de morte escondida”.
Não pôde Francisco deixar de condenar a tortura e outras medidas e penas cruéis desumanas e degradantes por criminosas, desproporcionadas e desnecessárias, bem como a aplicação de sanções penais a crianças e idosos e a outras pessoas especialmente vulneráveis, pelo índice de desumanidade e opressão de que se revestem.
A alocução do Papa trata da corrupção multiforme, que grassa fruto da ganância e do desrespeito de meios e bens, quando há um bilião de pessoas que vivem na pobreza absoluta e muitos sem acesso aos bens essenciais de alimentação, educação, higiene, saúde e segurança.
Sobre a corrupção, o Pontífice reconhece, parafraseando o Evangelho, que “há poucas coisas mais difíceis do que abrir uma fresta num coração corrupto: ‘Isso é o que acontece com aqueles que juntam riquezas para si mesmos, mas para Deus não são ricos’ (Lc 12,21). Quando a situação pessoal do corrupto se torna complicada, ele conhece todos os subterfúgios para a evitar, como fez o administrador desonesto do Evangelho” (cf. Lc 16,1-8), fugindo às responsabilidades como se nada fosse com ele (Eu?! Eu não fiz nada!) e aproveitando a oportunidade de tirar partido das aparências de legalidade para “interiorizar a sua máscara de homem honesto”.
A pessoa corrupta – assegura o Papa – é avessa à crítica, desqualificando quem a desfere, procurando menosprezar a autoridade moral de quem a possa pôr em questão, contra-atacando com o insulto quem pense de outro modo e, se tiver possibilidades, perseguindo quem quer que a contradiga. O corrupto é triunfalista, porque se tem a si próprio como um vencedor, que se exibe para rebaixar os outros. No seu hálito de corrupção de que não se dá conta, tenta dar lições de moral a quem, dando conta desse hálito, o deve renunciar.
Porque o corrupto adormece na habituação pecaminosa sem lhe sentir o remorso da culpa, o Papa Francisco arrisca a asserção de que “a corrupção é um mal maior que o pecado”. Mais do que o perdão, esta maleita iníqua postula a cura. Torna-se tão natural que se alcandora ao estado pessoal e social conexo com o costume, prática habitual em transações comerciais e financeiras, em empreitadas públicas, em cada negociação que envolva agentes do Estado. É a primazia vitoriosa da aparência sobre o real, do descaramento impudico sobre a honradez discreta.
Todavia, convicto de que Deus não desiste dos corruptos e de que “a corrupção nada pode contra a esperança”, Francisco pergunta o que poderá “fazer o direito penal contra a corrupção”. Reconhece que são “muitas as convenções e os tratados internacionais” atinentes a este flagelo e “proliferaram as hipóteses de crime que se destinam a proteger” os cidadãos, que são as últimas vítimas e a “tutelar os interesses dos agentes dos mercados económicos e financeiros”. No entanto, adverte que a “sanção penal é seletiva”. Assemelha-a à rede que apenas captura os peixes pequenos, deixando os grandes à solta. Por isso, define como prioritário o combate severo às formas de corrupção que originam “graves danos sociais, quer em matéria económica e social – como, por exemplo, graves fraudes contra a administração pública ou a prática desleal da administração – quer em qualquer tipo de obstáculo que se intrometa no funcionamento da justiça com a intenção de conseguir a impunidade para as próprias burlas ou para as de terceiros.
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Também a última edição on line do Osservatore Romano estranha a omissão pulpital da pregação contra o flagelo da corrupção, sendo o tema remetido para os debates televisivos ou para as campanhas eleitorais. As acusações de corrupção, por um lado, destinam-se a manter os corruptos no âmbito do próprio partido ou grupo clientelar e, por outro, salta de fação par fação.
Porém, a temática da corrupção deve ter lugar nos areópagos da religião e sua pregação, já que, segundo o articulista Ugo Sartorio, é justa a indignação assumida contra os comportamentos “que ferem e empobrecem a comunidade civil, subtraindo recursos destinados a todos”.
Para além disso, a indignação contra a corrupção e os corruptos, que devia primar pela eficácia, acaba por se circunscrever ao rancor e ao ódio. E a corrupção, dada a sua fealdade, deveria ser uma situação excecional. Porém, à semelhança do mal que se banaliza com facilidade, pode configurar uma prática habitual, “quase ambiental”, porque, tendo-se aninhado “no coração do homem”, insinua-se “nos gânglios da sociedade”.
É este ponto de novidade, no dizer do citado colunista do jornal do Vaticano, que Lorenzo Biagi frisa no seu livro Corruzione (Pádua, Ed. Messagero Padova, 2014) no seguimento da reflexão do Papa Francisco, que ofereceu ao debate um inestimável contributo para a discussão dum tema que “a nível civil se apresenta deteriorado e quase desarmado, incapaz de suscitar grandes paixões e indignação que não seja efémera”. Esta situação resulta das inúmeras leituras minimalistas e fatalistas com que se negoceia com a corrupção: a sua compreensibilidade por fazer parte do sistema acarreta o risco da sua legitimação. Todavia, Biagi vai mais longe na enunciação da novidade da leitura papal do tema da corrupção, ao refletir sobre o seu escrito de 1991, “na onda da delicada situação argentina, retomado em 2005” no livro Corrupción y pecado, da Editorial Claretiana, editado, em 2013, pela Editrice Missionaria Italiana, de Bolonha, sob o título Guarire dalla corruzione. Com efeito, Bergoglio indaga sobre a estrutura interna da corrupção “colhendo a sua curvatura antropológica”, não se circunscrevendo à “fenomenologia do homem corrupto”, mas sublinhando a sua existência concreta e individual e ultrapassando a lógica neutral das ciências sociais para nos apresentar o relevo ético-antropológico do flagelo.
Enfim, o cardeal Bergoglio, agora Papa Francisco, induz-nos ao autoquestionamento sobre se existe uma responsabilidade nossa ante a formação e evidência de homens corruptos. (cf Ugo Sartorio http://www.osservatoreromano,va/pt/news/vigilia-do-dinheiro-gera-monstros#stash.5d27AXba.dpuf, ac. 7-11-2014).
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Por seu turno, Hermes Fernandes socorre-se de citações bíblicas para afirmar que a corrupção é um fenómeno antigo e recorrente: “Há quem pense que a corrupção seja um fenómeno recente. Se o fosse, não haveria tantas advertências bíblicas contra ela”.
 (cf http://www.hermesfernandes.com/2009/08/o-que-deus-diz-sobre-corrupcao.html, ac 7-11-2014).
Vou seguir, embora com alterações de alinhamento, supressões e algum comentário adrede ajustado, o percurso que o citado estudioso estabeleceu. Permite-nos este itinerário o levantamento das várias situações onde a corrupção e o abuso se podem manifestar de muitos modos e que o Papa certamente tem no pensamento quando fala e/ou escreve sobre a economia que mata ou a finança que estrangula os que não têm vez e voz.
Assim, contra o suborno em geral elogiando aquele que o rejeita, que receberá a sua recompensa já neste mundo, cita-se o profeta Isaías:
Aquele que anda na justiça e fala a verdade, que recusa benefícios extorquidos pela violência, cuja mão rejeita o suborno, que fecha os ouvidos a propostas assassinas e fecha os olhos para não ver o mal, esse habitará nas alturas, terá o seu refúgio em rochas elevadas, terá pão e água em abundância (Is 33,15-16).

Sobre os malefícios da opressão e do suborno, invoca a autoridade do livro do Eclesiastes:
Pois a opressão torna o sábio insensato e o suborno corrompe o coração (Ecl 7,7).
Vêm, depois, as advertências contra grupos e situações específicos. Assim, contra a corrupção na administração pública, cita-se o 3.º Evangelho, o de S. Lucas, em prol dos pobres:
Vieram também alguns cobradores de impostos, para serem batizados, que lhe (a João) perguntaram: “Mestre, que havemos de fazer?” Responde-lhes: “Nada exijais além do que vos foi estabelecido” (Lc 3,12-13).

O mesmo 3.º Evangelho é referido contra a corrupção militar e policial:
Por sua vez, os soldados perguntavam-lhe: “E nós que devemos fazer?” Respondeu-lhes: “Não exerçais violência sobre ninguém, não denuncieis injustamente e contentai-vos com o vosso soldo.” (Lc 3,14).

Quanto à corrupção que subverte a independência dos poderes políticos, vem a talho de foice, o texto do profeta Miqueias:
Desapareceram da terra os justos, não há ninguém íntegro. Todos andam à espreita, para derramarem sangue, cada um arma laços ao seu irmão. O mal é o que as suas mãos fazem bem: o príncipe exige condenação, o juiz julga por interesse, o grande manifesta abertamente a sua cobiça, e tecem intrigas. (Mq 7,2-3).

Contra a corrupção nos poderes legislativos, vem o texto do profeta Isaías, com invectivas e interrogações sobre a injustiça e opressão da lei, e o desrespeito pelos direitos humanos:
Ai dos que decretam leis in­jus­tas e dos que redigem prescrições opressoras, dos que afastam os pobres do tribunal e zombam dos direitos dos fracos do meu povo, fazendo das viúvas a sua presa e roubando os bens dos órfãos! Que fareis vós no dia do ajuste de contas, quando o furacão vier de longe? A quem acudireis em busca de auxílio e onde escondereis as vossas riquezas? Só vos resta dobrar a cerviz entre os cativos e cair entre os mortos. Apesar de tudo isto, não se aplaca a sua ira; antes, a sua mão continuará a castigar. (Is 10,1-4).

Contra a corrupção nos poderes executivos, cujo escopo deve ser a promoção do bem-estar da coletividade, citamos os livros dos Provérbios e de Isaías, que avisam:
Os reis praticarem o mal é coisa abominável, porque o trono firma-se pela justiça (Pr 16,12). O rei faz prosperar o país pela justiça, mas aquele que é ávido de impostos arruína-o (Pr 29,4). Os teus governantes são rebeldes, companheiros de ladrões; andam todos à procura de regalias e de recompensas. Não defendem o direito dos órfãos nem se interessam pela questão das viúvas (Is 1, 23).

Contra a corrupção no poder judiciário (a administração da justiça não estava então acima de qualquer suspeita como se diz que está agora), temos de ter em linha de conta o que preceituam os livros do Êxodo, do Levítico, do Deuteronómio, dos Salmos, dos Provérbios e de Isaías:
Não aceitarás presentes, porque o presente cega aqueles que veem e perverte as palavras dos justos (Ex 23,8).
Não cometerás injustiças nos julgamentos. Não prejudicarás o pobre nem serás complacente com o poderoso. Julgarás com imparcialidade o teu compatriota (Lv 19,15). Não farás vergar a justiça, não farás aceção de pessoas e não aceitarás suborno, pois o suborno cega os olhos dos sábios e perverte a causa do inocente. Deves procurar a justiça e só a justiça, se queres conservar em teu poder a terra que o senhor teu Deus te há de dar (Dt 16,19-20). Até quando julgareis injustamente e favorecereis a causa dos ímpios? Defendei o oprimido e o órfão; fazei justiça ao humilde e ao pobre. Libertai o oprimido e o necessitado, e defendei-os das mãos dos pecadores. Eles não percebem nem compreendem; caminham nas trevas (Sl 82,2-5a). O ímpio recebe o suborno às ocultas para desviar o caminho da justiça (Pr 17,23). Ai dos que por suborno absolvem o culpado e negam justiça ao inocente (Is 5,23).

Contra a corrupção nos assessores inúteis e iníquos, reza o livro dos Provérbios:
Tira o iníquo da presença do rei, e o seu trono se firmará na justiça (Pr 25,5).
Contra os juros exorbitantes no sistema financeiro, leia-se, por exemplo, o texto de Ezequiel:
Se alguém é justo, observa o direito e a justiça (Ez 18,5). Não oprime ninguém, restitui o que recebeu em fiança, não comete furtos, distribui pão aos famintos, cobre o nu; não empresta com usura e não recebe juros, afasta a mão do mal e julga entre os homens segundo a verdade; se segue as minhas leis e observa os meus preceitos, tal homem é verdadeiramente justo e viverá – oráculo do Senhor Deus. (Ez 18,7-9).

Contra a corrupção e a ganância no meio empresarial, adverte o livro dos Provérbios:
Melhor é o pouco com justiça que o muito com injustiça (Pr 16,8). Quem oprime o pobre, enri­quece-o; quem dá ao rico, empobrece-o. (Pr 22,16).


Sobre o respeito pelo direito dos trabalhadores e condições de vida das demais pessoas fragilizadas socialmente, são eloquentes os textos dos livros do Levítico, de Malaquias, bem como a Carta de São Paulo aos Colossenses:
Não roubarás nem furtarás nada ao teu próximo; o salário do jornaleiro não passará a noite em teu poder até à manhã seguinte (Lv 19,13). Apresentar-me-ei diante de vós para julgar e serei uma testemunha atenta contra os adivinhos, os adúlteros e os que juram pela mentira; contra os que oprimem o operário, a viúva e o órfão, e contra aqueles que violam o direito do estrangeiro, sem terem respeito por mim – diz o Senhor do universo (Ml 3,5). Senhores, dai aos escravos o que for justo e equitativo, sabendo que também vós tendes um Senhor no Céu (Cl 4,1).

Contra o lucro desonesto em geral, temos a advertência do livro do Deuteronómio:
Não deves trazer no teu saco dois pesos desiguais, um maior e outro mais pequeno. Não deves ter em tua casa duas medidas desiguais, uma maior e outra mais pequena. Terás pesos exatos e justos, medidas exatas e justas, para que os teus dias se prolonguem na terra que o SENHOR, teu Deus, te há de dar, porque o SENHOR, teu Deus, abomina todos os que procedem assim, todos os que praticam o mal. (Dt 25,13-16).
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Que esta manta de retalhos de amostragem da Sagrada Escritura, Palavra de Deus apta para a instrução de todo o homem de Deus, ilumine os nossos contemporâneos obcecados pelo poder, prestígio e lucro e alivie o tormento dos oprimidos e explorados de hoje e a todos restitua dignidade de filhos de Deus e seres humanos de corpo inteiro.

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