domingo, 30 de novembro de 2014

Dobraram os sinos há 25 anos!

Sim, no dia 29 de novembro de 1989, dobraram os sinos da minha terra. Tinha ruído há poucos dias o muro que separara os dois lados de Berlim, as duas partes da Alemanha e os dois blocos geopolíticos da Europa, a marcar a guerra fria, que assim passou ao degelo. As pessoas festejaram, alegraram-se. A Europa encaminhava-se para ser mais una.
A 29, o muro que separa terra e céu, desmoronou-se. Minha mãe entrou na alegria do Senhor da Vida e da morte. Os sinos dobraram. Anjos e santos alegraram-se. Nós, que temos muito caminho para percorrer, nesta nossa rebeldia, rumo à santidade, ainda que chamados a este dever e dom, ensarilhámo-nos entre a saudade e a fé, entre o sentido da perda e a certeza da vida do mundo que há de vir, daquela vida que não conhecerá fim. Perto de quem partiam sentíamo-nos, mesmo assim, como que do lado de cá da barreira!
Por isso, rezámos e cantámos durante uns magros três dias. Senti bem a consonância da solidariedade fraterna e a sintonia dos cantares da fé da parte de todos os que acreditam (eram muitos): dos sacerdotes e do povo, dos conterrâneos e dos que nos visitaram, dos familiares e dos amigos – sobretudo a um de dezembro, no momento exequial. A todos respondi então publicamente com a expressão da minha fé e esperança, embora com a manifesta sensação limitativa da tristeza por quem nos dizia um adeus sereno, o mesmo que um “até breve”. A todos signifiquei o apreço pela vinda de perto ou de longe, pela presença e pela oração.
Por alguns dos que estiveram presentes também os sinos já dobraram a assinalar a sua resposta ao chamamento à vida eterna. Também por eles rezo e deixo o meu preito de gratidão. E recordo, em especial, o pai José, com outros familiares e amigos, e os padres António Clara Ângelo, Artur Antunes, Delfim a Silva Pedro, Lucas Ribeiro e Joaquim Fernandes da Fonseca.
Minha mãe, como tantas mulheres e mães, cumpriu a vida de modo discreto, sereno, dedicado – entre momentos de sofrimento e de alegria, trabalho e conforto. Os últimos dias tinham sido de esperança sofredora no leito da enfermidade, com tranquilidade e edificação. Merece, pois, a paz de Deus, reclama as nossas preces, insta a que sejamos gratos para com Deus e com os que partiram antes de nós, apela ao cultivo dos valores humanos e ao compromisso da fé em Jesus Cristo, bem como todo o possível trabalho apostólico.
***
Se, como dizia, há anos, Jorge Coelho, cada um celebra o que pode, devo dizer que antes quero celebrar o que vale a pena – que é a memória de quem nos é querido, a vida que nos legou a mãe, o exemplo que ela nos incutiu, o espírito de luta contra os escolhos da vida, a certeza da fé, a audácia da esperança, a obrigação da caridade justa, o encontro tranquilo como o sofrimento e a legitimidade da alegria. Comemorar toda esta herança, este património imaterial torna-se dever, mostra de gratidão, motivo de satisfação por dever cumprido. E vale a pena celebrar a memória da mãe, se possível, com o mesmo sentimento que a mãe teria pelos filhos!  
Hoje fomos em romagem discreta, mas sem ocultação, em jeito de passeio, ao cemitério onde, como que em minissantuário de humanidade, colada à terra e ao seu pó, e de respiração calada do espírito, se venera a memória do pai e da mãe, agora na coabitação com o Senhor dos crentes, nas asas da sua proteção. Deixámos hoje, minha mulher e eu, não as flores que murcham ou a lâmpada que se apaga com a menor das aragens, mas uma oração nossa, quase silenciosa, mas crente e também solidária, filial.
25 anos não são muito tempo. Todavia, dão que pensar, refletir e tomar a vida nas mãos, na parte em que isso nos é possível. Que o Deus de nossos pais nos abra caminhos de futuro em que os nossos descendentes se sintam mais irmãos, mais senhores de si próprios, sem serem ou se sentirem senhores de outrem e sem se tornarem servos de interesses menos nobres, mas apenas da verdade que liberta e constrói.
Carlos Drummond de Andrade escreveu:
“Para Sempre”

Por que Deus permite 
que as mães vão-se embora? 
Mãe não tem limite, 
é tempo sem hora, 
luz que não apaga 
quando sopra o vento 
e chuva desaba, 
veludo escondido 
na pele enrugada, 
água pura, ar puro, 
puro pensamento. 
Morrer acontece 
com o que é breve e passa 
sem deixar vestígio. 
Mãe, na sua graça, 
é eternidade.
 
Por que Deus se lembra 
— mistério profundo — 
de tirá-la um dia? 
Fosse eu Rei do Mundo, 
baixava uma lei: 
Mãe não morre nunca, 
mãe ficará sempre 
junto de seu filho 
e ele, velho embora, 
será pequenino 
feito grão de milho.


Carlos Drummond de Andrade, in Lição das Coisas
Ora, Carlos Drummond de Andrade, não é preciso baixar a lei. Com efeito, “mãe não morre nunca”. E, se não parece ficar sempre junto de seu filho, dali donde o espreita continua a jogar com ele o té-té da vida, a elogiá-lo nas boas ações, a repreendê-lo pelas traquinices, a chamá-lo a bom porto, a reclamar a fé, a confiança, o amor. Isto, porque o filho, embora velho, continua sempre a ser o menino de sua mãe!
Por mim, apetece-me seguir o salmista, não sei se tenho muito direito a isso, mas lá vai confiadamente:
SENHOR, o meu coração não é orgulhoso,
Nem os meus olhos são altivos;
Não corro atrás de grandezas
Ou de coisas superiores a mim.
Pelo contrário, estou sossegado e tranquilo,
Como criança saciada ao colo da mãe;
A minha alma é como uma criança saciada!
Israel, espera no Senhor,
Desde agora e para sempre!
(Sl 131,1-3)
Efetivamente, assim como Israel espera pelo Senhor, o salmista renuncia aos sonhos de grandeza e empreendimentos superiores às suas forças, a viver acima das suas possibilidades, não por força da lei ou da inevitabilidade, mas pela consciência da sua condição de ser limitado. Assim, em rede com os irmãos, manifesta a sua confiança e tranquilidade perante o seu Deus tal como a criança se sente segura e afagada ao colo da mãe (bela expressão sálmica esta do rosto materno de Deus), sem obsessão pelo futuro ou pela sorte.
Estão inscritos no céu – diz Agostinho de Hipona – os nomes dos fiéis que amam a Cristo e andam pelo caminho que Ele ensinou, que n’ Ele creem e amam a sua paz. Por outro lado, o salmo enaltece a atitude de quem tem olhos simples e puros que levam a que as coisas mais simples sejam apreciadas pelas almas simples e os pequenos gestos constituam a identidade dos homens grandes.
Esta é também a “lição das coisas”, esta é a lição das mães intuitivas e generosas!

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