Sim, no dia 29 de novembro de
1989, dobraram os sinos da minha terra. Tinha ruído há poucos dias o muro que
separara os dois lados de Berlim, as duas partes da Alemanha e os dois blocos
geopolíticos da Europa, a marcar a guerra fria, que assim passou ao degelo. As
pessoas festejaram, alegraram-se. A Europa encaminhava-se para ser mais una.
A 29, o muro que separa terra e
céu, desmoronou-se. Minha mãe entrou na alegria do Senhor da Vida e da morte.
Os sinos dobraram. Anjos e santos alegraram-se. Nós, que temos muito caminho
para percorrer, nesta nossa rebeldia, rumo à santidade, ainda que chamados a
este dever e dom, ensarilhámo-nos entre a saudade e a fé, entre o sentido da
perda e a certeza da vida do mundo que há de vir, daquela vida que não
conhecerá fim. Perto de quem partiam sentíamo-nos, mesmo assim, como que do
lado de cá da barreira!
Por isso, rezámos e cantámos durante
uns magros três dias. Senti bem a consonância da solidariedade fraterna e a
sintonia dos cantares da fé da parte de todos os que acreditam (eram muitos):
dos sacerdotes e do povo, dos conterrâneos e dos que nos visitaram, dos
familiares e dos amigos – sobretudo a um de dezembro, no momento exequial. A
todos respondi então publicamente com a expressão da minha fé e esperança,
embora com a manifesta sensação limitativa da tristeza por quem nos dizia um
adeus sereno, o mesmo que um “até breve”. A todos signifiquei o apreço pela vinda
de perto ou de longe, pela presença e pela oração.
Por alguns dos que estiveram
presentes também os sinos já dobraram a assinalar a sua resposta ao chamamento
à vida eterna. Também por eles rezo e deixo o meu preito de gratidão. E
recordo, em especial, o pai José, com outros familiares e amigos, e os padres
António Clara Ângelo, Artur Antunes, Delfim a Silva Pedro, Lucas Ribeiro e
Joaquim Fernandes da Fonseca.
Minha mãe, como tantas mulheres e
mães, cumpriu a vida de modo discreto, sereno, dedicado – entre momentos de
sofrimento e de alegria, trabalho e conforto. Os últimos dias tinham sido de
esperança sofredora no leito da enfermidade, com tranquilidade e edificação.
Merece, pois, a paz de Deus, reclama as nossas preces, insta a que sejamos
gratos para com Deus e com os que partiram antes de nós, apela ao cultivo dos
valores humanos e ao compromisso da fé em Jesus Cristo, bem como todo o
possível trabalho apostólico.
***
Se, como dizia, há anos, Jorge
Coelho, cada um celebra o que pode, devo dizer que antes quero celebrar o que
vale a pena – que é a memória de quem nos é querido, a vida que nos legou a
mãe, o exemplo que ela nos incutiu, o espírito de luta contra os escolhos da
vida, a certeza da fé, a audácia da esperança, a obrigação da caridade justa, o
encontro tranquilo como o sofrimento e a legitimidade da alegria. Comemorar
toda esta herança, este património imaterial torna-se dever, mostra de
gratidão, motivo de satisfação por dever cumprido. E vale a pena celebrar a
memória da mãe, se possível, com o mesmo sentimento que a mãe teria pelos
filhos!
Hoje fomos em romagem discreta,
mas sem ocultação, em jeito de passeio, ao cemitério onde, como que em
minissantuário de humanidade, colada à terra e ao seu pó, e de respiração calada
do espírito, se venera a memória do pai e da mãe, agora na coabitação com o
Senhor dos crentes, nas asas da sua proteção. Deixámos hoje, minha mulher e eu,
não as flores que murcham ou a lâmpada que se apaga com a menor das aragens,
mas uma oração nossa, quase silenciosa, mas crente e também solidária, filial.
25 anos não são muito tempo.
Todavia, dão que pensar, refletir e tomar a vida nas mãos, na parte em que isso
nos é possível. Que o Deus de nossos pais nos abra caminhos de futuro em que os
nossos descendentes se sintam mais irmãos, mais senhores de si próprios, sem
serem ou se sentirem senhores de outrem e sem se tornarem servos de interesses
menos nobres, mas apenas da verdade que liberta e constrói.
Carlos Drummond de Andrade
escreveu:
“Para
Sempre”
Por que Deus permite
que as mães vão-se embora?
Mãe não tem limite,
é tempo sem hora, luz que não apaga quando sopra o vento e chuva desaba, veludo escondido na pele enrugada, água pura, ar puro, puro pensamento. Morrer acontece com o que é breve e passa sem deixar vestígio. Mãe, na sua graça, é eternidade. |
Por que
Deus se lembra
— mistério profundo — de tirá-la um dia? Fosse eu Rei do Mundo, baixava uma lei: Mãe não morre nunca, mãe ficará sempre junto de seu filho e ele, velho embora, será pequenino feito grão de milho. |
Carlos
Drummond de Andrade, in Lição das
Coisas
|
Ora, Carlos Drummond de Andrade,
não é preciso baixar a lei. Com efeito, “mãe não morre nunca”. E, se não parece
ficar sempre junto de seu filho, dali donde o espreita continua a jogar com ele
o té-té da vida, a elogiá-lo nas boas
ações, a repreendê-lo pelas traquinices, a chamá-lo a bom porto, a reclamar a
fé, a confiança, o amor. Isto, porque o filho, embora velho, continua sempre a
ser o menino de sua mãe!
Por mim, apetece-me seguir o
salmista, não sei se tenho muito direito a isso, mas lá vai confiadamente:
SENHOR, o meu coração não é orgulhoso,
Nem os meus olhos são altivos;
Não corro atrás de grandezas
Ou de coisas superiores a mim.
Pelo contrário, estou sossegado e
tranquilo,
Como criança saciada ao colo da mãe;
A minha alma é como uma criança saciada!
Israel, espera no Senhor,
Desde agora e para sempre!
(Sl 131,1-3)
Efetivamente, assim como Israel espera
pelo Senhor, o salmista renuncia aos sonhos de grandeza e empreendimentos superiores
às suas forças, a viver acima das suas possibilidades, não por força da lei ou
da inevitabilidade, mas pela consciência da sua condição de ser limitado. Assim,
em rede com os irmãos, manifesta a sua confiança e tranquilidade perante o seu
Deus tal como a criança se sente segura e afagada ao colo da mãe (bela
expressão sálmica esta do rosto materno de Deus), sem obsessão pelo futuro ou
pela sorte.
Estão inscritos no céu – diz Agostinho de
Hipona – os nomes dos fiéis que amam a Cristo e andam pelo caminho que Ele
ensinou, que n’ Ele creem e amam a sua paz. Por outro lado, o salmo enaltece a
atitude de quem tem olhos simples e puros que levam a que as coisas mais
simples sejam apreciadas pelas almas simples e os pequenos gestos constituam a
identidade dos homens grandes.
Esta é também a “lição das coisas”, esta é
a lição das mães intuitivas e generosas!
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