segunda-feira, 17 de novembro de 2014

De regresso a Timor?

A novidade é destes dias. Atrelada à visita do Ministro da Justiça de Timor-Leste a Cabo Verde e a Portugal no quadro do putativo restabelecimento da cooperação destes países com o mais recente país lusófono pairou no ar pretensão do Primeiro-Ministro Xanana Gusmão do regresso de dois juízes a Timor – um juiz e uma juíza.
Apesar de o ministro timorense ter desmentido a informação posta a correr pela Comunicação Social, o facto é que ela pelo menos surgiu como hipótese e, ao menos como hipótese, ela merece uma reflexão menos aligeirada. Vamos ver se conseguimos levar por diante um pouco da mesma reflexão nos minutos que se seguem.
Na sequência de resolução do Parlamento do Estado soberano de Timor Lorosae, o Primeiro-Ministro Xanana Gusmão deu ordem de expulsão, no curto prazo de 24 horas, a um conjunto de estrangeiros, alguns deles portugueses, ligados ao sistema de justiça do país. Trata-se de juízes, procuradores e um policial encarregado de fazer a ligação entre as magistraturas no âmbito da investigação. A razão de fundo é a preservação do interesse nacional, que supostamente terá sido prejudicado pelos proscritos. Porém, o Primeiro-Ministro acusa os magistrados de incompetência revelada, por exemplo, na má condução de processos.
Passos Coelho a isto reagiu dizendo que muita tinta ainda haveria de correr – ou muita água haveria de passar por baixo das pontes – até que se restabelecesse a cooperação judiciária com Timor, a qual foi suspensa por intervenção da Ministra da Justiça de Portugal. Cavaco Silva, do seu lado, considerou a medida como desproporcionada. O Ministério de Rui Machete suspirava pela continuidade da cooperação, sem mais delongas.
Perante isto, importa referir que a reação de Passos Coelho faz subentender que o Estado Português se sentiu agastado pelo caráter injusto da medida. Já aquela qualificação de desproporcionada, da parte do Presidente da República, para a medida tomada leva a crer que terá havido alguma culpa dos magistrados e do policial, podendo questionar-se apenas a dosagem da medida. Penso que, se efetivamente tivesse havido comprovado prejuízo para o Estado de Timor da parte destes operadores da Justiça e/ou incompetência por diligência ou premeditação dos mesmos, o caso seria resolvido pelo lado da Justiça e a cooperação seguiria “de vento em popa”, embora se devesse apontar o dedo às autoridades daquele país para a necessidade de apurar responsabilidades em fase de inquérito e, se necessário, avançar com processos disciplinares e judiciais.
É certo que se levantam outras questões como as relacionadas com o petróleo, em que os magistrados dizem não ter interferido (terão sido as comissões arbitrais) e com a ousadia assumida em investigar, julgar e condenar membros do Governo que estão em funções (o que, digamos, não conseguem fazer em Portugal).
Por outro lado, pensavam alguns (eu era um destes) que aos magistrados portugueses tinha sido confiado o mister de assessorar e formar, deixando a tomada de decisão aos nacionais, tendo, por acaso (a pedido dos nacionais ou por intromissão dos estrangeiros) ultrapassado este patamar de competências. Entretanto, soube-se da parte de Mari Alkatiri, antigo Primeiro-Ministro, que o Estado soberano de Timor Lorosae abriu um concurso internacional para recrutamento e seleção de magistrados (juízes e procuradores) para trabalharem na investigação e administrarem a justiça: o Parlamento discutiu e aprovou a lei e o Presidente da República (ao tempo Xanana Gusmão) promulgou-a.
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Ora, se os magistrados acabaram por perturbar o sistema, havia que tomar a iniciativa em sede parlamentar de alterar a lei, determinando, por exemplo, que os estrangeiros passariam a desempenhar funções exclusivamente na área da assessoria e formação ou que membros do Governo e/ou do Parlamento não poderiam ser presentes a tribunal enquanto se mantivessem em funções, mas somente depois de demitidos ou exonerados. De resto, o escrutínio político continuaria a produzir os seus efeitos.
O próprio Mari Alkatiri declarou que a lei em vigor previa um horizonte de cinco anos para que os magistrados fizessem ações de reciclagem no Centro de Formação Jurídica e que o sistema deveria evoluir para a intervenção dos magistrados estrangeiros na área da assessoria e da formação. Resta-me saber se era ou não necessária a alteração da lei para esse efeito ou se a atuação se arrastou no tempo.
Por outro lado, há que deixar mais duas indicações: cabendo ao Parlamento a revogação da lei em vigor e a produção de novo diploma legal, o controlo do funcionamento do sistema judicial deveria ser feito dentro do próprio sistema, respeitando a separação de poderes; e, tratando-se de um protocolo de cooperação com outro país, as medidas a tomar em consequência de uma situação de insatisfação deveriam ser objeto de conversações prévias entre os países interessados e somente se procederia à denúncia unilateral do protocolo no caso de não se conseguir entendimento.
A primeira indicação inscreve-se na linha do princípio da separação dos poderes. Todavia, nenhum abuso deve permitir-se ao abrigo do princípio da separação dos poderes. E, se ele tiver sido cometido ou para que ele não surja, temos o recurso ao princípio da complementaridade dos poderes, já que o poder do Estado de Direito é uno. Como já foi dito, o Parlamento pode a todo o momento revogar, alterar e substituir as leis em vigor e pode decretar amnistias para contraordenações e crimes praticados; o Presidente da República pode indultar, nalguns ordenamentos constitucionais, comutar penas, vetar leis e dirigir mensagens públicas ao Parlamento e às magistraturas; e os tribunais, sobretudo os superiores podem julgar da constitucionalidade das leis. Todavia, o Presidente não pode interferir no funcionamento do Governo, do Parlamento e dos tribunais; o Parlamento não pode interferir na área do Presidente, do Governo e dos tribunais; e os tribunais não podem interferir na área do Presidente do Governo e do Parlamento.
Quanto à segunda indicação, trata-se de relações internacionais, que devem sempre ser encaradas de forma positiva, com respeito e cooperação, e de forma negativa, pelo lado da não ingerência mútua.
Quando Xanana Gusmão alega que se apoiou num parecer de dois professores de Direito da Universidade de Coimbra e num parecer norte-americano, certamente que não leu qualquer recomendação de ingerência no sistema judiciário ou na tomada intempestiva de uma medida de expulsão atropelando a letra e o espírito de qualquer protocolo de cooperação internacional, bem como a criação, manutenção e reforço do clima de medo que paira sobre alguns magistrados timorenses.
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Porém, Xanana Gusmão, que terá afirmado que de futuro a cooperação judiciária seria somente para assessorar e formar e nunca mais para decidir, terá feito agora saber que pretende o regresso de dois juízes. E foram dados a lume dois nomes: Cláudio Ximenes e Margarida Veloso. Ora, segundo o DN de hoje, a sua missão seria auditar o sistema de justiça timorense, segundo o plano gizado pelo Primeiro-Ministro; e não a assessoria e formação. É certo que o primeiro tem dupla nacionalidade, timorense e portuguesa; mas a segunda é, desde 2010, jubilada por incapacidade, por concessão do Conselho Superior de Magistratura português, mas manteve-se em funções em Díli. Ximenes é homem próximo de Xanana e foi até ao ano transato o presidente do Tribunal de Recurso de Díli e demitiu-se por considerar injusta e ilegal a condenação e prisão da então Ministra da Justiça Lúcia Lobato. Veloso, muito próxima da família de Xanana, protagonizou uma denúncia contra dois juízes desembargadores, Cid Geraldo e Rui Penha, denúncia que acarretou processos-crime para alguns magistrados do Tribunal de Recurso por “conluio para prejudicar a ministra” de então, a primeira do executivo a ser investigada.
Refere a imprensa timorense, citada pelo DN, que fontes próximas do Chefe do Governo indicam existirem “fortes probabilidades de destituírem à força o Presidente do Tribunal de Recurso, Guilhermino da Silva” – uma voz crítica à ordem de expulsão decretada a 3 de novembro. E quem irá reocupar o lugar será precisamente Cláudio Ximenes. Se o Tribunal da Relação de Lisboa, onde agora está colocado, não o dispensar, restar-lhe-á a licença sem vencimento.
Ora, a confirmar-se toda esta hipotética informação, Xanana não só não aprendeu a lição da separação dos poderes e da sua complementaridade, como também vai pelo mau caminho do compadrio ou do amiguismo – bem longe das balizas do Estado de Direito Democrático.

Sendo assim, não sendo caso para que Portugal se arrependa da ajuda prestada a Timor na luta pela independência e nos primeiros anos de construção e consolidação (esperava-se) da democracia, é pelo menos motivo para recurso à necessária prudência e estabelecimento de claras contrapartidas em protocolos de cooperação a celebrar ou a renovar.

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