As
sementes lançadas por Francisco, apesar das resistências na Cúria e fora dela,
não deixam de surtir o seu efeito. E pouco a pouco, cardeais e monsenhores
manifestam audácia notória, quer no campo da justiça e preocupações com o
estado e destino dos povos, quer nos campos do ecumenismo e do diálogo
inter-religioso. E as famílias, os jovens e sobretudo os que não tinham vez e
voz começam a fazer ouvir-se cada vez com maior nitidez.
No
dia 25 de julho de 2013, dirigindo-se aos jovens argentinos, na Catedral de São
Sebastião, do Rio de janeiro, formulava a seguinte orientação:
Aqui, no Rio, farão barulho, farão certamente. Mas eu quero
que se façam ouvir também nas dioceses, quero que saiam, quero que a Igreja
saia pelas estradas, quero que nos defendamos de tudo o que é mundanismo,
imobilismo, nos defendamos do que é comodidade, do que é clericalismo, de tudo
aquilo que é viver fechados em nós mesmos.
A razão
de ser desta orientação pelo barulho juvenil (que o Presidente Cavaco Silva, se
fosse o Papa, talvez chamasse de sobressalto eclesial) assenta na crise
civilizacional e cultural que atravessa o mundo e leva ao descarte e à exclusão,
sobretudo dos idosos e dos jovens. Por isso, o Papa, que alguns consideram incorrigível
(ou que dizem que quanto mais o criticam, mais se excita), fala:
A
civilização mundial ultrapassou os limites, ultrapassou os limites porque criou
um tal culto do deus dinheiro, que estamos na presença de uma filosofia e uma
prática de exclusão dos dois polos da vida que constituem as promessas dos
povos. A exclusão dos idosos, obviamente: alguém poderia ser levado a pensar
que nisso exista, oculta, uma espécie de eutanásia, isto é, não se cuida dos
idosos; mas há também uma eutanásia cultural, porque não se lhes deixa falar,
não se lhes deixa agir. E a exclusão dos jovens: a percentagem que temos de
jovens sem trabalho, sem emprego, é muito alta e temos uma geração que não tem
experiência da dignidade ganha com o trabalho. Assim, esta civilização levou-nos
a excluir os dois vértices que são o nosso futuro.
Contra este desmando civilizacional dos últimos
tempos, só há um duplo caminho, o dos jovens e o dos idosos:
Por isso os jovens devem irromper, devem fazer-se valer; os
jovens devem sair para lutar pelos valores, lutar por estes valores; e os
idosos devem tomar a palavra, os idosos devem tomar a palavra e ensinar-nos!
E,
no dia 27 do mesmo mês e ano, na mesma Catedral, aos bispos sacerdotes,
religiosos e seminaristas, o Papa exortava:
Não podemos ficar encerrados na paróquia, nas nossas
comunidades, na nossa instituição paroquial ou na nossa instituição diocesana,
quando há tanta gente esperando o Evangelho! Mas sair… enviados. Não se
trata simplesmente de abrir a porta para que venham, para acolher, mas de sair
pela porta fora para procurar e encontrar. Incitemos os jovens para sair. Vão
certamente fazer asneiras... não tenhamos medo! Os Apóstolos fizeram-nas antes
de nós. Incitemo-los para sair.
O Pontífice propõe um ponto de partida diferente
para a ação pastoral, confiante no acompanhamento da Virgem Maria, a mãe de
todo o apostolado:
Decididamente, pensemos a pastoral a partir da periferia,
daqueles que estão mais afastados, daqueles que habitualmente não frequentam a
paróquia. Eles são os convidados VIP. Saiamos à sua procura nos cruzamentos das
estradas. (…) Que Ela [a Virgem Maria] nos incite para sair ao encontro
de tantos irmãos e irmãs que estão na periferia, que têm sede de Deus e não há
quem lho anuncie. Que não nos ponha fora de casa, mas nos incite a sair de
casa. E assim seremos discípulos do Senhor.
Por outro lado, em carta de 16 de outubro ao
Diretor-Geral da FAO, alerta:
Também este ano, o Dia Mundial da Alimentação se faz eco do brado de tantos nossos irmãos e irmãs que em
diversas partes do mundo não têm o alimento diário. Por outro lado, ele faz-nos refletir sobre a
enorme quantidade de alimentos desperdiçados, produtos destruídos, especulações
dos preços em nome do deus lucro. Este é um dos paradoxos mais dramáticos do nosso tempo ao
qual assistimos impotentes, mas muitas vezes também indiferentes, «incapazes de
nos compadecermos ao ouvir os clamores alheios [...] como se tudo fosse uma
responsabilidade de outrem, que não nos incumbe» (EG, 54).
E especifica pondo o acento, não na ação
paliativa, mas nas medidas estruturantes:
Para eliminar a fome não é suficiente superar as carências
com ajudas e doações a quantos vivem situações de emergência. Ao contrário, é
preciso mudar o paradigma das políticas de ajuda e de desenvolvimento,
modificar as regras internacionais em matéria de produção e comércio dos
produtos agrícolas, garantindo aos países onde a agricultura representa a base
da economia e da sobrevivência uma autodeterminação do próprio mercado agrícola.
***
No
quadro das preocupações enunciadas pelo Bispo de Roma, a Academia Pontifícia
das Ciências, em colaboração com as associações ‘Global freedom network’ e ‘Vinculos
en red’, organizou para os dias 15 e 16 deste mês de novembro, no Vaticano, um simpósio internacional sobre prostituição e tráfico de
seres humanos – sob o tema “Jovens contra a prostituição e o tráfico de
pessoas: violência extrema contra o ser humano” – com a participação de mais de
100 jovens que, nos seus países, lutam contra estas realidades, que são
verdadeiros flagelos sobre a humanidade.
Estas práticas configuram modalidades virulentas de escravidão
moderna, que, de acordo com as palavras de D. Marcelo Sánchez Sorondo,
secretário da mencionada Academia Pontifícia das Ciências, “é uma das consequências
da globalização da indiferença”. Mas servem cabalmente a linha do hedonismo e
do negócio, contra a dignidade da pessoa humana.
A iniciativa, que surgiu na sequência das acutilantes intervenções
do Papa Francisco na Jornada Mundial da Juventude, que decorreu em 2013, no Rio
de Janeiro, tem em vista procurar “fortalecer o compromisso dos jovens na obra
de sensibilização da opinião pública sobre a gravidade e as consequências do
problema do tráfico de seres humanos”.
Segundo a Rádio Vaticano, citada pela agência Ecclesia, “estima-se que, a nível global, cerca de 21 milhões de
homens, mulheres, crianças sejam enganados, vendidos, obrigados ou submetidos a
condições de escravidão de várias formas e em diversos setores, como a
agricultura, o serviço doméstico, a prostituição, a pornografia, o turismo
sexual ou o tráfico de órgãos.
***
Também chegou ao seu termo, no passado dia 14 de novembro,
o terceiro seminário do Fórum católico-muçulmano, que decorreu em Roma, em
torno do tema “Trabalhar juntos para servir aos outros”. A delegação católica
foi liderada pelo presidente do Conselho Pontifício para o Diálogo
Inter-religioso, o cardeal Jean-Louis Tauran; e os participantes muçulmanos,
pelo professor da Universidade George Washington, Seyyed Hossein.
Estão em causa valores fundamentais como o bom
senso, o respeito, a autonomia, a tolerância, a cooperação e a educação – em que
o homem tem de estar acima das ideologias, dos interesses e das próprias
religiões.
A declaração final afirmou a inaceitabilidade da invocação
e utilização da religião (é a tentação a Deus ou a invocação do santo nome de
Deus em vão – proscritas pelos Livros Santos) para justificar o terrorismo, as perseguições,
as violências contra inocentes, a profanação de lugares sagrados ou a destruição
do património cultural.
Os participantes no encontro, na linha do
recorrente apelo do Papa à construção da cultura do encontro, destacam a “importância
da cultura do diálogo inter-religioso para aprofundar a compreensão recíproca”.
Para tanto, há necessidade de “superar preconceitos, distorções, suspeitas e
generalizações inapropriadas que prejudicam a convivência pacífica”.
No âmbito dos esforços para a consecução da
cultura do encontro, o Fórum católico-muçulmano apela a que a “educação dos
jovens” se processe de forma intensificada e esclarecida nos diversos ambientes
– família, escola, igreja, mesquita… – dado que ela se reveste da “máxima
importância” para a promoção da construção de “uma identidade que ensine o
respeito pelos outros”. Por outro lado, os participantes entendem que os
programas escolares e os livros didáticos devem representar “uma imagem
objetiva” das realidades e de respeito pelos outros.
A declaração final incentiva ainda os cristãos e
muçulmanos a “multiplicarem as oportunidades de encontros e cooperação” em
torno de projetos conjuntos para o bem comum.
***
O mesmo o cardeal Jean-Louis Tauran enviara, a 6
de novembro, uma mensagem aos Sikhs, por ocasião da festa do Prakash Diwas, em que
ressalta o tema “Cristãos e sikhs: juntos pela promoção
do serviço compassivo”.
Nessa mensagem, o presidente do Conselho
Pontifício para o Diálogo Inter-religioso, tendo em conta que o crescendo das “tendências
materialistas, consumistas e individualistas “do mundo de hoje torna as pessoas
cada vez mais egocêntricas, insensíveis e indiferentes às necessidades e
sofrimentos do próximo, expõe um oportuno ponto de vista inerente a
todas as religiões:
Desempenhar um serviço compassivo significa
ir ao encontro dos pobres, dos necessitados, doentes, idosos, portadores de
deficiência, migrantes, refugiados, explorados e perseguidos, superando
qualquer espécie de obstáculo e renunciando aos próprios interesses e
comodidades, porque também eles são parte do que Deus criou e, como tais, são
nossos irmãos e irmãs e fazem parte da nossa única grande família humana.
Já a 20 de outubro, em mensagem
aos hindus, por ocasião da festa do Deepavali, sob o tema “Promover a cultura da inclusão”, tinha afirmado:
Face à crescente discriminação, violência e
exclusão em todo o mundo, “fazer crescer a cultura da inclusão” pode ser,
justamente, considerada em toda a parte uma das aspirações mais genuínas das
pessoas. (…) As consequências negativas da globalização, como a difusão
do materialismo e do consumismo, tornaram os indivíduos ainda mais egocêntricos,
sedentos de poder e indiferentes em relação aos direitos, às necessidades e aos
sofrimentos dos outros.
Por isso, conclui o cardeal Tauran:
Fazer crescer uma cultura da inclusão
torna-se portanto uma chamada comum e uma responsabilidade partilhada, que deve
ser assumida com urgência. É um projeto que envolve todos os que se preocupam
com a saúde e a sobrevivência da família humana aqui na terra e que se deve
levar por diante no meio das forças que perpetuam a cultura da exclusão e não
obstante elas.
***
Por
seu turno, Monsenhor Dominique Mamberti, representante da Santa Sé na Assembleia Geral da INTERPOL (3 a 7 de novembro
passado), na sua intervenção, denunciou a notória agudização da criminalidade
transnacional e organizada, tanto do ponto de vista quantitativo como do da violência
das suas manifestações, colocando em grande risco o progresso da humanidade. E aponta
o dedo à utilização perversa dos instrumentos que a globalização e o progresso
tecnológico puseram à disposição de todos, facilitando o manuseamento daqueles
instrumentos, a transferência de fundos e a arregimentação das pessoas. Por conseguinte,
a atividade criminosa torna-se mais grave pela agressividade e pela crueldade das
ações. Apresenta, a este respeito, o exemplo dos últimos meses com o aparecimento
do terrorismo do denominado Estado Islâmico, que não se limita à prática das
ações criminosas, mas procede à filmagem e exposição pública das mesmas.
***
Já o arcebispo Bernardito Auza, representante
da Santa Sé nas Nações Unidas, interveio clara e vigorosamente no âmbito da
69.ª sessão da Assembleia Geral, que decorreu no passado mês de outubro,
abordando os seguintes temas candentes:
“Os dezassete objetivos de desenvolvimento sustentável”; “O
Estado de Direito”; “Medidas que levem à eliminação das armas de destruição massiva”; “Desenvolvimento
sustentável: proteção do clima mundial para as gerações presentes e futuras”; “Cooperação
Internacional no uso pacífico do espaço extra-atmosférico”; “Políticas de desenvolvimento
em prol das populações indígenas”; “Situação no Oriente Médio, incluindo a
questão da Palestina”; “Erradicação da pobreza”; “Globalização e interdependência”; “Desenvolvimento agrícola, segurança alimentar e nutrição”; e “Direitos
Humanos”.
***
Tudo
isto me sugere que talvez se esteja a tomar posição sobre muitas matérias
significativas para a humanidade, do lado dos homens e mulheres da Igreja (tanto
ao mais alto nível como a outros níveis médios ou comuns), e o comum dos
mortais, principalmente o mundo dos crentes, não se aperceba de tal. Importa, por
isso, que mantenhamos um olhar atento à realidade e àquilo que se faz para a sustentar
ou para a alterar, de modo que o nosso espírito crítico se estribe em bases
cada vez mais razoáveis e mais sustentáveis.
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