quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

Joacine e Telmo Correia em conflito por via da Lei da Nacionalidade

No passado dia 11 de dezembro, o hemiciclo de São Bento dividiu-se entre esquerda e direita, com o PS a encostar taticamente à direita, no debate conjunto do Projeto de Lei n.º 3/XIV, do BE, do Projeto de Lei n.º 117/XIV, do PAN, do Projeto de Lei n.º 118/XIV, do PCP, e do Projeto de Lei n.º 124/XIV, do Livre, para a 9.ª alteração à Lei da Nacionalidade, aprovada pela Lei n.º 37/81, de 3 de outubro, cuja última alteração foi introduzida pela Lei Orgânica n.º 2/2018, de 5 de julho. Os preditos projetos de lei passaram da 1.ª Comissão para debate no Plenário com os votos favoráveis do PS, do PSD, do BE e do PCP, a abstenção do DURP do Livre e a ausência do CDS, do PAN e do DURP do CHEGA.
O BE pretende alterar a Lei da Nacionalidade e o Regulamento Emolumentar dos Registos e Notariado; o PAN e o Livre pretendem alargar o acesso à naturalização às pessoas nascidas em território português após o dia 25 de Abril de 1974 e antes da entrada em vigor da Lei da Nacionalidade; e o PCP pretende alargar a aplicação do princípio do jus soli na Lei da Nacionalidade Portuguesa.
Entretanto, o debate registou um incidente e uma discussão exacerbada entre a deputada única do Livre, Joacine Moreira, e o tribuno democrata-cristão Telmo Correia.
Na parte final da troca de argumentos, o deputado do CDS-PP mimou a parlamentar do partido da papoila com a acusação de participar em manifestações em que foram ofendidos símbolos nacionais, nomeadamente a bandeira portuguesa, que representantes do Livre teriam apelidado de colonialista. A isto Joacine Katar Moreira respondeu: “É mentira, é mentira!”.
Joacine já tinha completado a sua intervenção no debate, depois da apresentação de todos os projetos de alteração à Lei da Nacionalidade, mas não deixou passar sem resposta as afirmações de Telmo Correia, que acusou:
Esta alteração à Lei da Nacionalidade é de quem desvaloriza a nacionalidade, a nação portuguesa. No caso do Livre não nos surpreende, vimos bem como tratam alguns símbolos nacionais”.
Sob protestos da bancada do BE face à intervenção de Telmo Correia, Joacine pediu a palavra ao Vice-presidente do Parlamento José Manuel Pureza e então presidente em exercício, para defesa da honra. E, lamentado, apoiada pelos aplausos da bancada do PS, afirmou:  
É inadmissível num ambiente igual a este eu estar a ouvir de senhores deputados que andei em manifestações a atacar qualquer simbologia nacional. É inadmissível. Em momento algum eu realizei isto. Em momento algum eu atentei à simbologia nacional. É uma mentira absoluta.”.
Ainda antes que Telmo Correia pudesse responder, a bancada do BE exigia-lhe que pedisse “desculpa” pela intervenção anterior. E, em resposta, o deputado democrata-cristão, perante um evidente mal-estar nas bancadas do hemiciclo, especialmente da esquerda que foi interrompendo a intervenção do deputado, desmentiu ter dito o que Joacine Katar Moreira invocava:
Não disse que a senhora Deputada tinha ofendido símbolos nacionais, não vou invocar nenhuma separação entre Sua Excelência e o Livre. Existiu aqui à porta do Parlamento uma manifestação do seu partido a dizer que a bandeira nacional era colonialista e não é admissível.”.
Porém, a deputada do Livre colocou-se de pé e a exclamar “É mentira, é mentira!”, quando Telmo Correia afirmava que em algum momento o partido recém-chegado ao hemiciclo tinha desrespeitado os símbolos nacionais.
Estava em causa uma manifestação de solidariedade do Coletivo “Resistimos” com a deputada frente ao Parlamento quando nas redes sociais circulava uma petição para impedir que a deputada única do Livre tomasse posse por ter erguido uma bandeira da Guiné-Bissau, seu país natal, quando soube da eleição, e por ser gaga. Também nas redes sociais chegou a circular, em outubro e a meio de novembro, um Tweet manipulado a passar a ideia de que a deputada do Livre quereria alterar as cores da bandeira portuguesa, para “multicolor” à semelhança da da sua nação. Mas Joacine nunca fez tal tweet, nunca proferiu tais palavras, nem o Livre tem qualquer proposta de bandeira alternativa, independentemente da configuração estética da bandeira.
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Durante o debate, mostraram-se a favor da alteração à Lei da nacionalidade BE, PAN, PCP e Livre. E o líder parlamentar de “Os Verdes”, José Luís Ferreira, declarou que o seu partido acompanha as iniciativas “globalmente”.
A bloquista Beatriz Gomes Dias tinha antes defendido que, “em Portugal, há pessoas que são estrangeiras no seu próprio país”, nomeadamente “muitos filhos e filhas de imigrantes que, apesar de aqui terem nascido, continuam sem aceder à nacionalidade portuguesa, vendo-se assim privados de direitos fundamentais de cidadania”.
Inês Sousa Real, líder parlamentar do PAN, referiu que o projeto de lei do seu partido “pretende corrigir uma situação de injustiça de um conjunto de cidadãos residentes em Portugal desde 1974, antes da entrada em vigor da lei da nacionalidade”.
O comunista António Filipe, adiantando que o PCP pretendia “votar favoravelmente todas as iniciativas” para posterior afinamento na especialidade, observou:
Faz todo o sentido considerar portugueses de origem todos os filhos de cidadãos não nacionais, nascidos em Portugal, desde que esse nascimento não tenha sido meramente ocasional numa passagem por Portugal de pessoas que nem cá residem nem cá querem residir, ou que cá tenham vindo com o único propósito de obtenção de nacionalidade portuguesa por mera conveniência não tendo nem pretendendo ter qualquer outra relação com a comunidade nacional”.
E Joacine Moreira aduziu que a legislação sobre a nacionalidade é um instrumento de justiça social e traduz a necessidade do alargamento da cidadania a milhares de indivíduos que se encontram em território nacional e que a legislação, por mais constitucional que seja, precisa de ser relativizada e questionada quando põe em causa “a cidadania e os direitos dos indivíduos”.
Em contrapartida, PSD, CDS-PP, Iniciativa Liberal e Chega mostraram-se contrários a novas mexidas na legislação escasso ano depois das últimas alterações.
A socialdemocrata Catarina Rocha Ferreira apontou:
Qualquer alteração tem de ter sentido de Estado e equilíbrio entre a abertura da lei e a integração efetiva e com responsabilidade, algo importante de mais para que ande ao sabor de ventos ou pequenas brisas eleitoralistas. Não pode ser a la carte, sob pena de ser um convite à imigração ilegal.”.
E ironizou com os versos da música de Paco Bandeira Ó Elvas, ó Elvas, nacionalidade à vista”, para ilustrar os riscos de se proceder a uma alteração à Lei da Nacionalidade para ser atribuída a nacionalidade portuguesa apenas sob a condição de se nascer em território nacional, conforme propõem o Bloco de Esquerda e o Livre.
A seu tempo, o deputado único do Chega, André Ventura, atirou:
É uma espécie de nacionalidade portuguesa em saldos para quem a quiser comprar, que a esquerda quer vender para fazer de nós um parente pobre da Europa. O Chega nunca permitirá que a nacionalidade seja vandalizada..
João Cotrim Figueiredo, do IL, defendeu uma “efetiva ligação do indivíduo ou seus progenitores a Portugal” e, “como nenhum dos projetos de lei reflete a visão liberal e responsável”, assumiu que o seu partido votaria “contrariamente a todos eles”.
Telmo correia, por sua vez, ponderou:
A última alteração tem um ano. E um ano depois estamos aqui com a esquerda a querer alargar ainda mais e mais. Uma nação é uma comunidade de pertença, mas também de destino. Estas ‘propostas’ desvalorizam esse valor. Qualquer pessoa, em qualquer circunstância, pode ser portuguesa. É uma absoluta irresponsabilidade.”.
A socialista Constança Urbano de Sousa reconheceu que “a iniciativa do PAN resolve um problema histórico e deve ser ponderada”, mas manifestou mais reservas aos projetos de BE, PCP e Livre, pois “não querem apenas regular a atribuição de nacionalidade às crianças”, mas também “alterar o processo de naturalização dos estrangeiros residentes em Portugal” sob pena de estarmos “a fabricar artificialmente cidadãos portugueses”, que podem “nem sequer falar português”. E questionou, em especial, o PCP sobre a forma a adotar na definição do critério de residência dos progenitores.
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O Projeto de Lei do BE atribui a nacionalidade portuguesa a todas as pessoas nascidas em Portugal, a partir de 1981, eliminando-se os critérios de um dos progenitores ter nascido no país e aqui ter residência ao tempo do nascimento da criança, abolindo também “a perversa norma que impede a aquisição da nacionalidade portuguesa aos cidadãos estrangeiros que tenham sido condenados a pena de prisão igual ou superior a três anos”. O do PCP propõe que possam ser portugueses os cidadãos nascidos em Portugal, “desde que um dos seus progenitores seja residente”, e que, “na aquisição da nacionalidade por naturalização, os cidadãos nascidos em Portugal a possam adquirir, sem que isso dependa do tempo de residência em Portugal dos seus progenitores”. O do PAN alarga, como se disse, o acesso à naturalização às pessoas nascidas em Portugal após o 25 de Abril de 1974 e antes da entrada em vigor da Lei da Nacionalidade. E o do Livre prevê a atribuição da nacionalidade aos cidadãos nascidos em Portugal entre 1981 e 2006, “por mero efeito da lei, independentemente da apresentação de prova de residência legal de um dos seus progenitores”, e quer também fazer depender a aquisição da nacionalidade por casamento ou união de facto “por mera declaração” e definir a residência efetiva e não a residência legal no atinente à contagem do tempo para atribuição da nacionalidade portuguesa.
Todavia, os socialistas, que lembram estar o direito de solo consagrado na Lei da Nacionalidade e que reconhecem pertinência da proposta do PAN, opõem-se, como toda a direita, à alteração.
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Recorde-se que, ainda antes de chegarem a debate, os projetos sobre a lei da nacionalidade fizeram correr muita tinta, muito graças à falha de entrega, dentro do prazo, do documento do Livre, que glosa um dos temas essenciais para o partido e do qual fez bandeira na campanha eleitoral – falha procedimental suprida pelo espírito de tolerância do Presidente do Parlamento. E, no dia 11, foi um dos pontos que mais discussão deu entre a esquerda e a direita.
Por entre as pingas da chuva passa o PAN que apenas visa uma “correção de injustiça” para os cidadãos que entre 1974 e a entrada em vigor da Lei da Nacionalidade se viram impedidos de conseguir a nacionalidade portuguesa. Na tentativa de retirar o projeto do PAN do arcaz dos projetos da esquerda, em torno do direito de solo ou direito de sangue, a líder parlamentar do partido, Inês Sousa Real, disse que o projeto “propõe uma correção histórica” para quem foi “deixado de fora pelas sucessivas alterações legislativas”.
O projeto de lei do Livre quer a nacionalidade para todos os cidadãos nascidos em Portugal entre 1981 e 2006, sem necessidade de apresentar “prova de residência legal de um dos progenitores”, e que seja necessário apenas “por mera declaração” fazer depender a atribuição da nacionalidade portuguesa aos casados e unidos de facto e, para efeitos de contabilização de tempo para atribuição da nacionalidade, conte a residência efetiva e não a residência legal, como atualmente acontece. Afirmando que se trata duma questão de justiça social, sustenta que os “indivíduos nascidos em território nacional sejam obrigatoriamente cidadãos portugueses”.
Os projetos do Bloco de Esquerda e do Livre foram os que maiores críticas receberam dos outros partidos no hemiciclo, incluindo o PS que, pela voz da deputada Constança Urbano de Sousa contrariou a ideia de atribuir a nacionalidade portuguesa apenas pelo direito de solo. “É uma falácia dizer que o direito da nacionalidade português não consagra o direito de solo ou não lhe dá relevância” – vincou a deputada.
Catarina Rocha Ferreira, do PSD, já referida, foi uma das vozes mais críticas durante o debate ao acusar a esquerda de querer “transformar Portugal numa maternidade para passaportes europeus”. E afirmou que as alterações à Lei da Nacionalidade “têm de ter sentido de Estado” e que são “importantes de mais para que “ande ao sabor de ventos ou pequenas brisas eleitoralistas”. “Não pode ser ‘a la carte’, sob pena de ser um convite à imigração ilegal”, alertou, por sua vez, Catarina Rocha Fernandes.
Já o deputado André Ventura, do Chega, equiparou as propostas dos partidos a “uma espécie de “nacionalidade em saldos que pode fazer de Portugal um parente pobre da Europa” enquanto João Cotrim de Figueiredo, deputado único do Iniciativa Liberal, manifestava a intenção de votar contra todos os projetos de lei porque não refletem “a visão liberal e responsável”.
Antes, o democrata-cristão Telmo Correia afirmou que os projetos do BE, PCP, PAN e Livre desvalorizavam o valor de pertença ao país, ao conferirem a “qualquer pessoa em qualquer circunstância” a nacionalidade portuguesa.
Por fim, Beatriz Gomes Dias, a deputada bloquista a quem coube encerrar a discussão depois do momento mais inflamado entre Joacine Katar Moreira e Telmo Correia, recordou as origens dos portugueses e “todas as pessoas que são estrangeiras no seu próprio país”, apontando mais especificamente para os “filhos e filhas de imigrantes que, apesar de aqui terem nascido, continuam sem aceder à nacionalidade portuguesa, vendo-se assim privados de direitos fundamentais de cidadania”.
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Como é que leis aprovadas há sensivelmente um ano, que, justamente por ser uma lei tem obrigatoriamente as marcas de futuridade e universalidade, de longo prazo e comunitarismo, precisam de ser alteradas já? Terá o legislador colegial vistas assim curtas? Terá a nova composição do órgão soberano legislativo adquirido uma nova febre legislativa. De todo, as nossas leis têm de ser mais cuidadas para que, passados uns meses, não haja a necessidade ou a tentação de lhe imprimir alterações cirúrgicas. Que estão a fazer os senhores assessores dos deputados? O Parlamento não é uma grande clínica medico-cirúrgica nem o Governo é um grupo de consultores, técnicos ou contabilistas.
2019.12.12 – Louro de Carvalho

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