No passado dia 11 de dezembro, o hemiciclo de São
Bento dividiu-se entre esquerda e direita, com o PS a encostar taticamente à
direita, no debate conjunto do Projeto de
Lei n.º 3/XIV, do BE, do Projeto de
Lei n.º 117/XIV, do PAN, do Projeto
de Lei n.º 118/XIV, do PCP, e do Projeto
de Lei n.º 124/XIV, do Livre, para a 9.ª alteração à Lei da Nacionalidade,
aprovada pela Lei n.º 37/81, de 3 de outubro, cuja última alteração foi introduzida
pela Lei Orgânica n.º
2/2018, de 5 de julho. Os preditos projetos de lei passaram da 1.ª
Comissão para debate no Plenário com os votos favoráveis do PS, do PSD, do BE e
do PCP, a abstenção do DURP do Livre e a ausência do CDS, do PAN e do DURP do
CHEGA.
O BE
pretende alterar a Lei da Nacionalidade e o
Regulamento Emolumentar dos Registos e Notariado; o PAN e o Livre pretendem
alargar o acesso à naturalização às pessoas nascidas em território português
após o dia 25 de Abril de 1974 e antes da entrada em vigor da Lei da
Nacionalidade; e o PCP pretende
alargar a aplicação do princípio do jus
soli na Lei da Nacionalidade Portuguesa.
Entretanto, o debate registou um incidente e
uma discussão exacerbada entre a
deputada única do Livre, Joacine Moreira, e o tribuno democrata-cristão Telmo
Correia.
Na parte
final da troca de argumentos, o
deputado do CDS-PP mimou a parlamentar do partido da papoila com a acusação de
participar em manifestações em que foram ofendidos símbolos nacionais, nomeadamente
a bandeira portuguesa, que representantes do Livre teriam apelidado de
colonialista. A isto Joacine Katar Moreira respondeu: “É mentira, é mentira!”.
Joacine já
tinha completado a sua intervenção no debate, depois da apresentação de todos
os projetos de alteração à Lei da Nacionalidade, mas não deixou passar sem
resposta as afirmações de Telmo Correia, que acusou:
“Esta alteração à Lei da Nacionalidade é de quem desvaloriza a
nacionalidade, a nação portuguesa. No caso do Livre não nos surpreende, vimos bem
como tratam alguns símbolos nacionais”.
Sob
protestos da bancada do BE face à intervenção de Telmo Correia, Joacine pediu a
palavra ao Vice-presidente do Parlamento José Manuel Pureza e então presidente
em exercício, para defesa da honra. E, lamentado, apoiada pelos aplausos da
bancada do PS, afirmou:
“É inadmissível num ambiente igual a este eu estar a ouvir de senhores
deputados que andei em manifestações a atacar qualquer simbologia nacional. É
inadmissível. Em momento algum eu realizei isto. Em momento algum eu atentei à
simbologia nacional. É uma mentira absoluta.”.
Ainda antes
que Telmo Correia pudesse responder, a bancada do BE exigia-lhe que pedisse
“desculpa” pela intervenção anterior. E, em resposta, o deputado
democrata-cristão, perante um evidente mal-estar nas bancadas do hemiciclo,
especialmente da esquerda que foi interrompendo a intervenção do deputado, desmentiu
ter dito o que Joacine Katar Moreira invocava:
“Não disse que a senhora Deputada tinha ofendido símbolos nacionais, não
vou invocar nenhuma separação entre Sua Excelência e o Livre. Existiu aqui à
porta do Parlamento uma manifestação do seu partido a dizer que a bandeira
nacional era colonialista e não é admissível.”.
Porém, a deputada
do Livre colocou-se de pé e a exclamar “É mentira, é mentira!”, quando Telmo
Correia afirmava que em algum momento o partido recém-chegado ao hemiciclo
tinha desrespeitado os símbolos nacionais.
Estava em causa
uma manifestação de solidariedade do Coletivo “Resistimos” com a deputada
frente ao Parlamento quando nas redes sociais circulava uma petição para
impedir que a deputada única do Livre tomasse posse por ter erguido uma
bandeira da Guiné-Bissau, seu país natal, quando soube da eleição, e por ser
gaga. Também nas redes sociais chegou a circular, em outubro e a meio de
novembro, um Tweet manipulado a passar a ideia de que a deputada do Livre
quereria alterar as cores da bandeira portuguesa, para “multicolor” à
semelhança da da sua nação. Mas Joacine nunca fez tal tweet, nunca
proferiu tais palavras, nem o Livre tem qualquer proposta de bandeira
alternativa, independentemente da configuração estética da bandeira.
***
Durante o
debate, mostraram-se a favor da alteração à Lei da nacionalidade BE, PAN, PCP e
Livre. E o líder parlamentar de “Os Verdes”, José Luís Ferreira, declarou que o
seu partido acompanha as iniciativas “globalmente”.
A bloquista
Beatriz Gomes Dias tinha antes defendido que, “em Portugal, há pessoas que são
estrangeiras no seu próprio país”, nomeadamente “muitos filhos e filhas de imigrantes que, apesar de aqui terem nascido,
continuam sem aceder à nacionalidade portuguesa, vendo-se assim privados de
direitos fundamentais de cidadania”.
Inês Sousa
Real, líder parlamentar do PAN, referiu que o projeto de lei do seu partido “pretende corrigir uma situação de
injustiça de um conjunto de cidadãos residentes em Portugal desde 1974, antes
da entrada em vigor da lei da nacionalidade”.
O comunista
António Filipe, adiantando que o PCP pretendia “votar favoravelmente todas as
iniciativas” para posterior afinamento na especialidade, observou:
“Faz
todo o sentido considerar portugueses de origem todos os filhos de cidadãos não
nacionais, nascidos em Portugal, desde que esse nascimento não tenha sido
meramente ocasional numa passagem por Portugal de pessoas que nem cá residem
nem cá querem residir, ou que cá tenham vindo com o único propósito de obtenção
de nacionalidade portuguesa por mera conveniência não tendo nem pretendendo ter
qualquer outra relação com a comunidade nacional”.
E Joacine
Moreira aduziu que a legislação sobre a
nacionalidade é um instrumento de justiça social e traduz a
necessidade do alargamento da cidadania a milhares de indivíduos que se
encontram em território nacional e que a legislação, por mais constitucional
que seja, precisa de ser relativizada e questionada quando põe em causa “a
cidadania e os direitos dos indivíduos”.
Em
contrapartida, PSD, CDS-PP, Iniciativa Liberal e Chega mostraram-se contrários
a novas mexidas na legislação escasso ano depois das últimas alterações.
A
socialdemocrata Catarina Rocha Ferreira apontou:
“Qualquer alteração tem de ter sentido de Estado e equilíbrio entre a
abertura da lei e a integração efetiva e com responsabilidade, algo importante
de mais para que ande ao sabor de ventos ou pequenas brisas
eleitoralistas. Não pode ser a
la carte, sob pena de ser um convite à imigração ilegal.”.
E ironizou
com os versos da música de Paco Bandeira
“Ó Elvas, ó Elvas, nacionalidade à vista”,
para ilustrar os riscos de se proceder a uma alteração à Lei da
Nacionalidade para ser atribuída a nacionalidade portuguesa apenas sob a
condição de se nascer em território nacional, conforme propõem o Bloco de
Esquerda e o Livre.
A seu tempo,
o deputado único do Chega, André Ventura, atirou:
“É uma
espécie de nacionalidade portuguesa em saldos para quem a quiser comprar, que a
esquerda quer vender para fazer de nós um parente pobre da Europa. O Chega
nunca permitirá que a nacionalidade seja vandalizada.”.
João Cotrim
Figueiredo, do IL, defendeu uma “efetiva ligação do indivíduo ou seus progenitores
a Portugal” e, “como nenhum dos projetos de lei reflete a visão liberal e
responsável”, assumiu que o seu partido votaria “contrariamente a todos eles”.
Telmo
correia, por sua vez, ponderou:
“A última alteração tem um ano. E um ano depois estamos aqui com a esquerda
a querer alargar ainda mais e mais. Uma nação é uma comunidade de pertença, mas
também de destino. Estas ‘propostas’ desvalorizam esse valor. Qualquer pessoa,
em qualquer circunstância, pode ser portuguesa. É uma absoluta irresponsabilidade.”.
A socialista
Constança Urbano de Sousa reconheceu que “a iniciativa do PAN resolve um problema histórico e deve ser ponderada”,
mas manifestou mais reservas aos projetos de BE, PCP e Livre, pois “não querem
apenas regular a atribuição de nacionalidade às crianças”, mas também “alterar
o processo de naturalização dos estrangeiros residentes em Portugal” sob pena
de estarmos “a fabricar artificialmente cidadãos portugueses”, que podem “nem
sequer falar português”. E questionou, em especial, o PCP sobre a forma a adotar
na definição do critério de residência dos progenitores.
***
O Projeto de
Lei do BE atribui a nacionalidade
portuguesa a todas as pessoas nascidas em Portugal, a partir de 1981, eliminando-se
os critérios de um dos progenitores ter nascido no país e aqui ter residência
ao tempo do nascimento da criança, abolindo também “a perversa norma que impede
a aquisição da nacionalidade portuguesa aos cidadãos estrangeiros que tenham
sido condenados a pena de prisão igual ou superior a três anos”. O do PCP propõe que possam ser portugueses os cidadãos nascidos em
Portugal, “desde que um dos seus progenitores seja residente”, e que, “na
aquisição da nacionalidade por naturalização, os cidadãos nascidos em Portugal
a possam adquirir, sem que isso dependa do tempo de residência em Portugal dos
seus progenitores”. O do PAN alarga,
como se disse, o acesso à naturalização às pessoas nascidas em Portugal após o
25 de Abril de 1974 e antes da entrada em vigor da Lei da Nacionalidade. E o do
Livre prevê a atribuição da nacionalidade aos cidadãos nascidos em
Portugal entre 1981 e 2006, “por mero efeito da lei, independentemente da
apresentação de prova de residência legal de um dos seus progenitores”, e quer
também fazer depender a aquisição da nacionalidade por casamento ou união de
facto “por mera declaração” e definir a residência efetiva e não a residência
legal no atinente à contagem do tempo para atribuição da nacionalidade
portuguesa.
Todavia,
os socialistas, que lembram estar o
direito de solo consagrado na Lei da Nacionalidade e que reconhecem pertinência
da proposta do PAN, opõem-se, como toda a direita, à alteração.
***
Recorde-se
que, ainda antes de chegarem a debate,
os projetos sobre a lei da
nacionalidade fizeram correr muita tinta, muito graças à falha de entrega,
dentro do prazo, do documento do Livre, que glosa um dos temas essenciais para
o partido e do qual fez bandeira na campanha eleitoral – falha procedimental
suprida pelo espírito de tolerância do Presidente do Parlamento. E, no dia 11,
foi um dos pontos que mais discussão deu entre a esquerda e a direita.
Por entre as
pingas da chuva passa o PAN que apenas visa uma “correção de injustiça” para os
cidadãos que entre 1974 e a entrada em vigor da Lei da Nacionalidade se viram
impedidos de conseguir a nacionalidade portuguesa. Na tentativa de retirar o projeto
do PAN do arcaz dos projetos da esquerda, em torno do direito de solo ou
direito de sangue, a líder parlamentar do partido, Inês Sousa Real, disse que o
projeto “propõe uma correção histórica” para quem foi “deixado de fora pelas
sucessivas alterações legislativas”.
O projeto de
lei do Livre quer a nacionalidade para todos os cidadãos nascidos em Portugal
entre 1981 e 2006, sem necessidade de apresentar “prova de residência legal de
um dos progenitores”, e que seja necessário apenas “por mera declaração” fazer
depender a atribuição da nacionalidade portuguesa aos casados e unidos de facto
e, para efeitos de contabilização de tempo para atribuição da nacionalidade,
conte a residência efetiva e não a residência legal, como atualmente acontece. Afirmando
que se trata duma questão de justiça social, sustenta que os “indivíduos
nascidos em território nacional sejam obrigatoriamente cidadãos portugueses”.
Os projetos
do Bloco de Esquerda e do Livre foram os que maiores críticas receberam dos
outros partidos no hemiciclo, incluindo o PS que, pela voz da deputada
Constança Urbano de Sousa contrariou a ideia de atribuir a nacionalidade portuguesa
apenas pelo direito de solo. “É uma
falácia dizer que o direito da nacionalidade português não consagra o direito
de solo ou não lhe dá relevância” – vincou a deputada.
Catarina
Rocha Ferreira, do PSD, já referida, foi uma das vozes mais críticas durante o
debate ao acusar a esquerda de querer
“transformar Portugal numa maternidade para passaportes europeus”. E
afirmou que as alterações à Lei da Nacionalidade “têm de ter sentido de Estado”
e que são “importantes de mais para que “ande ao sabor de ventos ou pequenas
brisas eleitoralistas”. “Não pode ser ‘a la carte’, sob pena de ser um convite
à imigração ilegal”, alertou, por sua vez, Catarina Rocha Fernandes.
Já o
deputado André Ventura, do Chega, equiparou as propostas dos partidos a “uma
espécie de “nacionalidade em saldos que pode fazer de Portugal um parente pobre
da Europa” enquanto João Cotrim de Figueiredo, deputado único do Iniciativa
Liberal, manifestava a intenção de votar contra todos os projetos de lei porque
não refletem “a visão liberal e responsável”.
Antes, o
democrata-cristão Telmo Correia afirmou que os projetos do BE, PCP, PAN e Livre
desvalorizavam o valor de pertença ao país, ao conferirem a “qualquer pessoa em
qualquer circunstância” a nacionalidade portuguesa.
Por fim, Beatriz
Gomes Dias, a deputada bloquista a quem coube encerrar a discussão depois do
momento mais inflamado entre Joacine Katar Moreira e Telmo Correia, recordou as
origens dos portugueses e “todas as pessoas que são estrangeiras no seu próprio
país”, apontando mais especificamente para os “filhos e filhas de imigrantes
que, apesar de aqui terem nascido, continuam sem aceder à nacionalidade
portuguesa, vendo-se assim privados de direitos fundamentais de cidadania”.
***
Como é que leis
aprovadas há sensivelmente um ano, que, justamente por ser uma lei tem
obrigatoriamente as marcas de futuridade e universalidade, de longo prazo e
comunitarismo, precisam de ser alteradas já? Terá o legislador colegial vistas
assim curtas? Terá a nova composição do órgão soberano legislativo adquirido
uma nova febre legislativa. De todo, as nossas leis têm de ser mais cuidadas
para que, passados uns meses, não haja a necessidade ou a tentação de lhe
imprimir alterações cirúrgicas. Que estão a fazer os senhores assessores dos
deputados? O Parlamento não é uma grande clínica medico-cirúrgica nem o Governo é um
grupo de consultores, técnicos ou contabilistas.
2019.12.12 – Louro de Carvalho
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