sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

O Santo é Palavra de Deus encarnada na história e próxima de nós


Mais uma pérola teológica do Papa Francisco a propósito do cinquentenário da Congregação para as Causas dos Santos e que os portugueses devem assimilar por ocasião do reconhecimento das virtudes heroicas de Pai Américo, como era tratado pelos rapazes.
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A 11 de dezembro pp, o Santo Padre Francisco recebeu em audiência o Cardeal Angelo Becciu, Prefeito da Congregação para as Causas dos Santos e, durante a audiência, autorizou a mesma Congregação a promulgar os decretos respeitantes, entre outros, ao reconhecimento das “virtudes heroicas do Servo de Deus Américo Monteiro de Aguiar, Sacerdote diocesano, nascido em Salvador de Galegos (Portugal) a 23 de outubro de 1887 e falecido a 16 de julho de 1956 no Porto (Portugal).”. É o que consta da nota da Sala de Imprensa da Santa Sé do dia 12.
Com esta decisão da Santa Sé de reconhecer as “virtudes heroicas” do fundador da Obra de Rua, Casa do Gaiato ou obra de Pai Américo, de Penafiel, está dado o primeiro e decisivo passo para a beatificação do Padre Américo Monteiro de Aguiar. E o Bispo do Porto vê nesta atitude da Santa Sé um desafio à sociedade, em especial à portuguesa, que tem questionado nos últimos tempos o itinerário pedagógico do humilde visionário de então, que dedicou a sua vida aos mais carenciados, principalmente jovens, e morreu de acidente de viação em 1956.
Para um fiel cristão ser considerado Santo na Igreja católica, tem de passar por três etapas: a confirmação das “virtudes heroicas”, do martírio ou da oferta da vida; a beatificação; e finalmente a canonização, sendo que as duas últimas exigem a comprovação de um milagre, a menos que, firmado na prestação popular de culto ininterrupta com base na fama de santidade do candidato, o Papa decida pela canonização equipolente. No caso do padre Américo, foi agora dado o primeiro passo para vir a ser Beato e, depois, Santo.
As “virtudes heroicas” são um conjunto de “requisitos de exemplaridade de vida” que têm de ser demonstrados, para que se possa iniciar o processo formal. Para tanto, são analisados o comportamento e percurso de vida do candidato, tendo de ficar bem claro, e para lá de qualquer dúvida, que em vida a sua conduta se pautou pela prática, além do comum, das “virtudes da fé”ou “virtudes teologais” (Fé, Esperança e Caridade) e “Virtudes Cardeais” (Prudência, Fortaleza, Justiça e Temperança).
O primeiro passo é geralmente dado na diocese de origem do candidato. Há uma investigação para confirmar que tem “fama de santidade” e merece ser canonizado. O próprio Bispo, ou um “postulador” (espécie de promotor de justiça), leva a proposta à Congregação para as Causas dos Santos, que dá (ou não) o aval para se iniciar o verdadeiro processo das “virtudes heroicas”. No caso do Padre Américo, essa autorização foi dada. O postulador deve, depois, reunir todas as provas de “santidade” do candidato – depoimentos, cartas e escritos – para demonstrar que praticava de “forma heroica e continuada” as “virtudes da fé”. Confirmadas essas virtudes, para o processo prosseguir, será necessário comprovar a existência de pelo menos um milagre – e por milagre entende-se a cura de forma instantânea, perfeita, duradoura e cientificamente inexplicável, como a de uma doença incurável ou muito difícil de se tratar. Isto exige a análise e estudos clínicos por parte de vasta equipa de dezenas de médicos e especialistas. Ultrapassada essa fase, acontece a “beatificação”, mas, para se ser Santo – para a “canonização” –, terá de haver e ser comprovado um segundo milagre, a não ser no caso da canonização equipolente.
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Américo Monteiro de Aguiar nasceu em 23 de outubro de 1887, em Galegos (Penafiel). Trabalhou ainda numa loja de ferragens e como despachante em Moçambique. Em 1923, ingressou nos franciscanos, que depois abandonou. Ordenado sacerdote em 29 de julho de 1929, passou a dedicar-se aos miúdos da rua em Coimbra, até que, em 1940, criou a primeira Casa do Gaiato em Miranda do Corvo, a que se seguiu a de Paço de Sousa, Penafiel, que passou a ser a Casa-Mãe, e tantas outras em Portugal e em África. Paralelamente à “obra de rapazes, para rapazes, pelos rapazes”, Pai Américo instituiu o Calvário, obra para doentes que a sociedade abandonara. Entretanto, a 14 de julho de 1956, sofreu um acidente e morreu passados dois dias.
A respeito de Pai Américo, escreveu Marcelo Rebelo de Sousa em “O Padre Américo e a Obra da Rua”, com coordenação de José da Cruz Santos, da Aletheia Editores:
Como cidadão atento aos dramas da infância excluída ou em exclusão num Portugal a converter-se de rural em urbano e metropolitano. Como educador empenhado na primazia da afirmação da criança. Como cristão e sacerdote devotado na concretização das bem-aventuranças, na vivência de uma Igreja serva e pobre, na antecipação do que viria a ser o espírito do Concílio Vaticano II.”.
Na verdade, a Obra de Pai Américo tem por objetivo acolher, educar e integrar no meio social crianças e jovens que se viram, por qualquer motivo, privados de meio familiar normal. E organiza-se em casas onde acolhe rapazes desde a mais tenra infância até cerca dos 25 anos. A população média de cada casa é de 150 rapazes – educando pelo convívio e pelo labor em conformidade com as condições de cada idade e de cada indivíduo (sem exploração). São 7 os princípios da Obra: 1. regime de autogoverno – obra de rapazes, para rapazes, pelos rapazes (os chefes são eleitos pela comunidade); 2. liberdade e espontaneidadeninguém espere fazer homens de rapazes domados” (porta sempre aberta); 3. responsabilidade“em nossas casas todos e cada um tem a sua responsabilidade”; 4. virtudes humanas – solidariedade, generosidade, camaradagem, amor ao próximo (os mais velhos cuidam dos mais novos); 5. vida familiar – “não somos asilo, nem reformatório, nem colónia penal (não há nem nunca houve fardas ou uniformes: a família é o modelo da Obra); 6. ligação à natureza; 7. formação religiosa.
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Como se disse, Dom Manuel Linda, Bispo do Porto, diz que o Padre Américo “espicaça a nossa consciência” e que o reconhecimento das suas virtudes heroicas pela Santa Sé deve ser visto como um desafio à sociedade. Assim afirmou à Rádio Renascença
Quando o Padre Américo começou a recolher as crianças da zona mais deprimida de Portugal – que, porventura, era a zona do Barredo, nas margens do rio Douro, aqui no Porto – estava a fazer exatamente aquilo que era mais necessário naquela altura. Hoje, as condições mudaram, mas ele lembra-nos e espicaça a nossa consciência de que há muito a fazer no campo das outras fragilidades.”.
No entender do prelado portuense, é importante que a sociedade esteja atenta aos mais vulneráveis e é relevante a colaboração entre a Igreja e a sociedade, que a todos beneficia.
O Bispo das duas margens litorais do Douro afirmou que a declaração das virtudes heroicas do padre Américo é uma “boa notícia” para a diocese e para “a Igreja Católica em Portugal” e, ao mesmo tempo, “um espinho na nossa própria consciência” a lembrar que “mudaram as condições, mas não desapareceram as carências”.
Na homilia da Missa de aniversário da dedicação e restauro da Igreja dos Clérigos, Dom Manuel Linda lembrou que não desapareceu a necessidade de a Igreja e o Estado “estarem presentes junto das fragilidades” do nosso tempo, fragilidades que “têm muitos nomes”, fragilidades de sem-abrigo, que, diz Dom Manuel, “é um mundo muito difícil porque se perdeu o interesse pela vida e não se consegue investir na melhoria das condições dessas pessoas”. E o prelado encontra também pesadas fragilidades “no mundo da toxicodependência e na solidão”. Por isso, defende uma “boa colaboração entre a Igreja e a sociedade” para que o estímulo e exemplo do “Pai Américo” ajudem numa atitude que se quer de proximidade em relação a quem “está a vegetar na beira da estrada”, e considera que o restauro dos Clérigos “é um bom exemplo da cooperação entre Igreja e Sociedade”, que sinaliza “que todos beneficiam quando essa colaboração é boa”.
O Bispo do Porto relembra, como se lê na Voz Portucalense, que as obras nos Clérigos “foram feitas em grande parte com dinheiros comunitários e outros contributos da sociedade”; mas assegura que a Irmandade “está a devolver à sociedade tudo aquilo que ela investiu no restauro do espaço” e afirma que “este espaço é uma das referências da cidade do Porto, senão mesmo a maior”, que “a nível cultural, a nível do turismo atrai muita gente à cidade”.
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Também a CEP (Conferência Episcopal Portuguesa), como se lia no site próprio (2019.12.12) saudou “com profunda alegria” a decisão pontifícia de reconhecer as “virtudes heroicas” do Servo de Deus Padre Américo, fundador da Obra da Rua/Casa do Gaiato, em Portugal e África (Angola e Moçambique), com sede em Paço de Sousa, Diocese do Porto. E considera-a um passo importante rumo à beatificação deste gigante da caridade, grande educador português, místico do nosso tempo, precursor do II Concílio do Vaticano, artista da palavra e servidor dos pobres.
O Padre Américo intuiu a corresponsabilidade de todos na construção do Bem Comum:
Seria outro ovo de Colombo. Todos teriam ocasião de apreciar e de sentir como, afinal, é tão fácil, o que até hoje, aos nossos olhos preguiçosos, se tem posto como impossível: cada freguesia cuide dos seus pobres..
Em 1986, aquando do centenário do seu nascimento, os Bispos escreveram em nota pastoral:
Queremos assumir o centenário do padre Américo, não tanto como uma honra para a Igreja em Portugal, mas sobretudo como um compromisso e uma responsabilidade para nós e para as nossas Dioceses. Que todos partilhem com generosidade e com fé esta graça e esta responsabilidade..
E, e 2006, noutra nota pastoral por ocasião do cinquentenário da sua morte, acentuaram a importância da sua experiência pedagógica:
A todos os portugueses, decerto preocupados com os atuais problemas da educação e com o número porventura crescente de crianças em situação familiar de risco e desamparo, lembramos que a experiência pedagógica do Padre Américo continua um manancial a integrar em formas adaptadas às instituições sociais mais recentes. Que Deus nos ajude a recolher as suas riquezas, validamente pedagógicas e profundamente cristãs.”.
Há muitos anos “santo no coração do Povo português”, ele é uma referência que ajudará a despertar a sociedade e a Igreja para a maior atenção aos pobres, bem como para o serviço e a entrega total aos últimos, no nosso tempo marcado pela urgência da Caridade e da Misericórdia.
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No dia 12, como referiu e transcreveu a Sala de Imprensa da Santa Sé, o Papa falou aos membros da susodita Congregação por ocasião 50.º aniversário da sua criação por substituição da Sagrada Congregação dos Ritos, que deu lugar, a 8 de maio de 1969 à atual Congregação para as Causas dos Santos e à Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos.
Francisco vincou o desenvolvimento do trabalho eclesial da Congregação em ordem ao reconhecimento da santidade dos que seguiram fielmente a Cristo, bem como o facto de neste meio século ela ter validado um grande número de perfis biográficos de homens e mulheres para os apresentar como modelos e guias de vida cristã, salientando que as muitíssimas beatificações e canonizações dos últimos decénios mostram que os santos não são seres inatingíveis, mas nossos vizinhos que nos podem sustentar no caminho da vida: são pessoas que experienciaram a fadiga quotidiana com êxitos e fracassos encontrando no Senhor a força de prosseguir. E, sendo importante medir a nossa coerência evangélica com diversas tipologias de santidade, disse:
Cada santo é uma missão; é um projeto do Pai para refletir e encarnar, num momento determinado da história, um aspeto do Evangelho” (Gaudete et exsultate, 19).
Ensina o Pontífice que o testemunho dos santos nos ilumina, atrai e interpela, porque é “Palavra de Deus” encarnada na história e próxima de nós e é muitas vezes a santidade de ao pé da porta, visível nos que trabalham para trazer o pão para casa, nos doentes, nas religiosas anciãs que mantêm o seu sorriso, enfim no povo de Deus que sofre e peregrina. É sempre um reflexo da divina presença.
O dicastério a que Francisco se dirigia é chamado a verificar as várias modalidades de santidade heroica – aquela que resplende com maior visibilidade e aquela que é menos visível, mas também extraordinária. Contudo, não podemos esquecer a vocação universal à santidade, pelo que a Congregação deve fazer com que os bispos e presbíteros se empenhem na promoção e divulgação da ideia de que a santidade é a essência mais profunda de todo o batizado, a alma da Igreja e o aspeto prioritário da sua missão. Sendo a verdadeira luz da Igreja, deve a santidade ser posta no candelabro para iluminar e guiar o caminho para Deus de todo o povo redimido.
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São, pois, verdadeiras candeias de Deus a iluminar os nossos caminhos e a guiar as nossas vidas, entre tantos e tantas: Beatriz da Silva, Nuno de Santa Maria, António de Sant’Ana Galvão José d’Anchieta, José Vaz, Francisco Marto, Jacinta Marto, Bartolomeu dos Mártires, Dulce dos Pobres, Maria do Divino Coração, Alexandrina de Balazar, Madre Rita Amada de Jesus, António Barroso, Francisco Cruz, Sílvia Cardoso. E agora Pai Américo, como se espera pela Santinha de Arrifana, a Serva de Deus Ana de Jesus Maria José de Magalhães. Que intercedam por nós e que sigamos o exemplo da sua ousadia!
2019.12.19 – Louro de Carvalho

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