Mais uma pérola teológica do Papa Francisco a propósito do
cinquentenário da Congregação para as Causas dos Santos e que os portugueses devem
assimilar por ocasião do reconhecimento das virtudes heroicas de Pai Américo,
como era tratado pelos rapazes.
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A 11 de dezembro pp, o Santo Padre Francisco recebeu em
audiência o Cardeal Angelo Becciu, Prefeito da Congregação para as Causas dos Santos e, durante
a audiência, autorizou a mesma Congregação a promulgar os decretos
respeitantes, entre outros, ao reconhecimento das “virtudes heroicas do Servo
de Deus Américo Monteiro de Aguiar, Sacerdote diocesano, nascido em Salvador de
Galegos (Portugal) a 23
de outubro de 18 87 e falecido a 16 de julho de 19 56 no Porto (Portugal).”. É o que consta da nota da Sala de Imprensa da Santa Sé
do dia 12.
Com esta
decisão da Santa Sé de reconhecer as “virtudes heroicas” do fundador da Obra de
Rua, Casa do Gaiato ou obra de Pai Américo, de Penafiel, está dado o primeiro e
decisivo
passo para a beatificação do Padre Américo Monteiro de Aguiar. E o Bispo
do Porto vê nesta atitude da Santa Sé um desafio à sociedade, em especial à
portuguesa, que tem questionado nos últimos tempos o itinerário pedagógico do
humilde visionário de então, que dedicou a sua vida aos mais carenciados,
principalmente jovens, e morreu de acidente de viação em 1956.
Para um fiel
cristão ser considerado Santo na Igreja católica, tem de passar por três
etapas: a confirmação das “virtudes heroicas”, do martírio ou da oferta da
vida; a beatificação; e finalmente a canonização, sendo que as duas últimas
exigem a comprovação de um milagre, a menos que, firmado na prestação popular
de culto ininterrupta com base na fama de santidade do candidato, o Papa decida
pela canonização equipolente. No caso do padre Américo, foi agora dado o
primeiro passo para vir a ser Beato e, depois, Santo.
As “virtudes
heroicas” são um conjunto de “requisitos de exemplaridade de vida” que têm de
ser demonstrados, para que se possa iniciar o processo formal. Para tanto, são
analisados o comportamento e percurso de vida do candidato, tendo de ficar bem claro,
e para lá de qualquer dúvida, que em vida a sua conduta se pautou pela prática,
além do comum, das “virtudes da fé”ou “virtudes teologais” (Fé,
Esperança e Caridade) e
“Virtudes Cardeais” (Prudência, Fortaleza, Justiça e Temperança).
O primeiro
passo é geralmente dado na diocese de origem do candidato. Há uma investigação
para confirmar que tem “fama de santidade” e merece ser canonizado. O próprio Bispo,
ou um “postulador” (espécie de promotor de justiça), leva a proposta à Congregação para as Causas dos
Santos, que dá (ou não) o aval
para se iniciar o verdadeiro processo das “virtudes heroicas”. No caso do Padre
Américo, essa autorização foi dada. O postulador deve, depois, reunir todas as provas
de “santidade” do candidato – depoimentos, cartas e escritos – para demonstrar
que praticava de “forma heroica e continuada” as “virtudes da fé”. Confirmadas
essas virtudes, para o processo prosseguir, será necessário comprovar a
existência de pelo menos um milagre – e por milagre entende-se a cura de forma
instantânea, perfeita, duradoura e cientificamente inexplicável, como a de uma
doença incurável ou muito difícil de se tratar. Isto exige a análise e estudos
clínicos por parte de vasta equipa de dezenas de médicos e especialistas.
Ultrapassada essa fase, acontece a “beatificação”, mas, para se ser Santo – para
a “canonização” –, terá de haver e ser comprovado um segundo milagre, a não ser
no caso da canonização equipolente.
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Américo
Monteiro de Aguiar nasceu em 23 de outubro de 1887, em Galegos (Penafiel). Trabalhou ainda numa loja de ferragens e como
despachante em Moçambique. Em 1923, ingressou nos franciscanos, que depois
abandonou. Ordenado sacerdote em 29 de julho de 1929, passou a dedicar-se aos
miúdos da rua em Coimbra, até que, em 1940, criou a primeira Casa do Gaiato em
Miranda do Corvo, a que se seguiu a de Paço de Sousa, Penafiel, que passou a
ser a Casa-Mãe, e tantas outras em Portugal e em África. Paralelamente à “obra
de rapazes, para rapazes, pelos rapazes”, Pai Américo instituiu o Calvário,
obra para doentes que a sociedade abandonara. Entretanto, a 14 de julho de
1956, sofreu um acidente e morreu passados dois dias.
A respeito
de Pai Américo, escreveu Marcelo Rebelo de Sousa em “O Padre Américo e a Obra da Rua”, com coordenação de José da Cruz
Santos, da Aletheia Editores:
“Como cidadão atento aos dramas da infância excluída ou em exclusão num
Portugal a converter-se de rural em urbano e metropolitano. Como educador
empenhado na primazia da afirmação da criança. Como cristão e sacerdote
devotado na concretização das bem-aventuranças, na vivência de uma Igreja serva
e pobre, na antecipação do que viria a ser o espírito do Concílio Vaticano II.”.
Na verdade,
a Obra de Pai Américo tem por objetivo
acolher, educar e integrar no meio social crianças e jovens que se
viram, por qualquer motivo, privados de meio familiar normal. E
organiza-se em casas onde acolhe rapazes desde a mais tenra infância até cerca
dos 25 anos. A população média de cada casa é de 150 rapazes – educando pelo
convívio e pelo labor em conformidade com as condições de cada idade e de cada
indivíduo (sem exploração). São 7 os princípios da Obra: 1. regime de
autogoverno – obra de rapazes, para rapazes, pelos rapazes (os chefes são eleitos pela comunidade); 2. liberdade e espontaneidade – “ninguém espere fazer homens de rapazes domados” (“porta sempre aberta”); 3. responsabilidade – “em nossas casas todos e cada um tem a sua
responsabilidade”; 4. virtudes humanas
– solidariedade, generosidade, camaradagem, amor ao próximo (“os mais velhos cuidam dos mais novos”); 5. vida familiar – “não somos asilo, nem reformatório,
nem colónia penal (não há nem nunca
houve fardas ou uniformes: “a família é o modelo da Obra”); 6. ligação à
natureza; 7. formação religiosa.
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Como se disse, Dom Manuel Linda, Bispo do Porto, diz que o Padre Américo “espicaça a
nossa consciência” e que o reconhecimento das suas virtudes heroicas pela Santa
Sé deve ser visto como um desafio à
sociedade. Assim afirmou à Rádio
Renascença:
“Quando o Padre Américo começou a recolher as crianças da zona mais
deprimida de Portugal – que, porventura, era a zona do Barredo, nas margens do
rio Douro, aqui no Porto – estava a fazer exatamente aquilo que era mais
necessário naquela altura. Hoje, as condições mudaram, mas ele lembra-nos e
espicaça a nossa consciência de que há muito a fazer no campo das outras fragilidades.”.
No entender
do prelado portuense, é importante que a sociedade esteja atenta aos mais
vulneráveis e é relevante a colaboração entre a Igreja e a sociedade, que a
todos beneficia.
O Bispo das
duas margens litorais do Douro afirmou que a declaração das virtudes heroicas
do padre Américo é uma “boa notícia” para a diocese e para “a Igreja Católica
em Portugal” e, ao mesmo tempo, “um espinho na nossa própria consciência” a
lembrar que “mudaram as condições, mas não desapareceram as carências”.
Na homilia
da Missa de aniversário da dedicação e restauro da Igreja dos Clérigos, Dom Manuel
Linda lembrou que não desapareceu a necessidade de a Igreja e o Estado “estarem
presentes junto das fragilidades” do nosso tempo, fragilidades que “têm muitos
nomes”, fragilidades de sem-abrigo, que, diz Dom Manuel, “é um mundo muito
difícil porque se perdeu o interesse pela vida e não se consegue investir na
melhoria das condições dessas pessoas”. E o prelado encontra também pesadas fragilidades
“no mundo da toxicodependência e na solidão”. Por isso, defende uma “boa
colaboração entre a Igreja e a sociedade” para que o estímulo e exemplo do “Pai
Américo” ajudem numa atitude que se quer de proximidade em relação a quem “está
a vegetar na beira da estrada”, e considera que o restauro dos Clérigos “é um
bom exemplo da cooperação entre Igreja e Sociedade”, que sinaliza “que todos
beneficiam quando essa colaboração é boa”.
O Bispo do
Porto relembra, como se lê na Voz
Portucalense, que as obras nos Clérigos “foram feitas em grande parte com
dinheiros comunitários e outros contributos da sociedade”; mas assegura que a
Irmandade “está a devolver à sociedade tudo aquilo que ela investiu no restauro
do espaço” e afirma que “este espaço é uma das referências da cidade do Porto,
senão mesmo a maior”, que “a nível cultural, a nível do turismo atrai muita gente
à cidade”.
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Também a CEP (Conferência Episcopal Portuguesa), como se lia no site
próprio (2019.12.12) saudou “com profunda alegria” a
decisão pontifícia de reconhecer as “virtudes heroicas” do Servo de Deus Padre
Américo, fundador da Obra da Rua/Casa do Gaiato, em Portugal e África (Angola e Moçambique), com sede em Paço de Sousa, Diocese
do Porto. E considera-a um passo importante rumo à beatificação deste gigante
da caridade, grande educador português, místico
do nosso tempo, precursor do II Concílio do Vaticano,
artista
da palavra e servidor dos pobres.
O Padre Américo intuiu a corresponsabilidade de todos na
construção do Bem Comum:
“Seria
outro ovo de Colombo. Todos teriam ocasião de apreciar e de sentir como,
afinal, é tão fácil, o que até hoje, aos nossos olhos preguiçosos, se tem posto
como impossível: cada freguesia cuide dos seus pobres.”.
Em 1986, aquando do centenário do seu nascimento, os Bispos escreveram
em nota pastoral:
“Queremos assumir o centenário do
padre Américo, não tanto como uma honra para a Igreja em Portugal, mas
sobretudo como um compromisso e uma responsabilidade para nós e para as nossas
Dioceses. Que todos partilhem com generosidade e com fé esta graça e esta
responsabilidade.”.
E, e 2006, noutra nota pastoral por ocasião do cinquentenário
da sua morte, acentuaram a importância da sua experiência pedagógica:
“A
todos os portugueses, decerto preocupados com os atuais problemas da
educação e com o número porventura crescente de crianças em situação familiar
de risco e desamparo, lembramos que a experiência pedagógica do Padre
Américo continua um manancial a integrar em formas adaptadas às instituições
sociais mais recentes. Que Deus nos ajude a recolher as suas riquezas,
validamente pedagógicas e profundamente cristãs.”.
Há muitos anos “santo no coração do Povo português”, ele é
uma referência que ajudará a despertar a sociedade e a Igreja para a maior
atenção aos pobres, bem como para o serviço e a entrega total aos últimos, no
nosso tempo marcado pela urgência da Caridade e da Misericórdia.
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No dia 12, como referiu e transcreveu a Sala de Imprensa da
Santa Sé, o Papa falou aos membros da susodita Congregação por ocasião 50.º aniversário
da sua criação por substituição da Sagrada Congregação dos Ritos, que deu
lugar, a 8 de maio de 1969 à atual Congregação para as Causas dos Santos e à Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos
Sacramentos.
Francisco vincou o desenvolvimento do trabalho eclesial da
Congregação em ordem ao reconhecimento da santidade dos que seguiram fielmente
a Cristo, bem como o facto de neste meio século ela ter validado um grande
número de perfis biográficos de homens e mulheres para os apresentar como
modelos e guias de vida cristã, salientando que as muitíssimas beatificações e
canonizações dos últimos decénios mostram que os santos não são seres
inatingíveis, mas nossos vizinhos que nos podem sustentar no caminho da vida:
são pessoas que experienciaram a fadiga quotidiana com êxitos e fracassos encontrando
no Senhor a força de prosseguir. E, sendo importante medir a nossa coerência
evangélica com diversas tipologias de santidade, disse:
“Cada santo é uma missão; é um projeto do
Pai para refletir e encarnar, num momento determinado da história, um aspeto do
Evangelho” (Gaudete et exsultate, 19).
Ensina o
Pontífice que o testemunho dos santos nos ilumina, atrai e interpela, porque é
“Palavra de Deus” encarnada na história e próxima de nós e é muitas vezes a
santidade de ao pé da porta, visível nos que trabalham para trazer o pão para
casa, nos doentes, nas religiosas anciãs que mantêm o seu sorriso, enfim no
povo de Deus que sofre e peregrina. É sempre um reflexo da divina presença.
O dicastério
a que Francisco se dirigia é chamado a verificar as várias modalidades de
santidade heroica – aquela que resplende com maior visibilidade e aquela que é
menos visível, mas também extraordinária. Contudo, não podemos esquecer a
vocação universal à santidade, pelo que a Congregação deve fazer com que os
bispos e presbíteros se empenhem na promoção e divulgação da ideia de que a
santidade é a essência mais profunda de todo o batizado, a alma da Igreja e o
aspeto prioritário da sua missão. Sendo a verdadeira luz da Igreja, deve a
santidade ser posta no candelabro para iluminar e guiar o caminho para Deus de
todo o povo redimido.
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São, pois,
verdadeiras candeias de Deus a iluminar os nossos caminhos e a guiar as nossas
vidas, entre tantos e tantas: Beatriz da Silva, Nuno de Santa Maria, António de Sant’Ana Galvão José d’Anchieta, José Vaz, Francisco
Marto, Jacinta Marto, Bartolomeu dos Mártires, Dulce dos Pobres, Maria do
Divino Coração, Alexandrina de Balazar, Madre Rita Amada de Jesus, António
Barroso, Francisco Cruz, Sílvia Cardoso. E agora Pai Américo, como se espera
pela Santinha de Arrifana, a Serva de Deus Ana
de Jesus Maria José de Magalhães. Que intercedam por nós e que sigamos o
exemplo da sua ousadia!
2019.12.19 – Louro de Carvalho
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