segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

O Senhor está connosco, demos graças ao Senhor!


O domingo anterior ao Natal, no Ano A (IV domingo do Advento) faz-nos meditar a profecia de Isaías (Is 7,10-14), na 1.ª leitura da Liturgia da Palavra (como no dia 20) em articulação com a passagem de Mateus (Mt 1,18-24), para nos garantir a consciência clara de que Jesus é o “Deus-connosco”, que veio ao encontro dos homens para lhes oferecer a salvação (vd missa do dia 18).
Em 734 a.C., Acaz sobe ao trono de Judá. O Povo estava dividido: a norte, o reino formado por dez tribos, Israel, com a capital na Samaria; a sul, outro reino, formado por duas tribos, Judá, com a capital em Jerusalém. Judá goza de prosperidade económica e de relativa tranquilidade política. Porém, as campanhas militares de Tiglat-Pileser III, rei da Assíria, lançam os países da zona em alvoroço e anunciam tempos conturbados para os pequenos reinos da terra de Canaã.
Aí, Pecah, rei de Israel, tenta formar uma coligação antiassíria, para resistir às investidas do rei assírio, pretendendo que a coligação integre a Síria e Judá. Acaz recusa essa aventura. Por isso, Pecah, rei de Israel, e Rezin, da Síria, lançam as tropas contra Judá. Acaz pede ajuda dos assírios para resistir aos invasores.
Ao invés, o profeta Isaías, para quem a única esperança e segurança com que Judá deve contar é Jahwéh, o seu Deus, intervém junto de Acaz. Com efeito, confiar a segurança da nação a potências estrangeiras é abandonar Deus e expor o país a dependências que trazem sofrimento e opressão. E o profeta dirige-se ao rei a propor-lhe que, se não acredita nas suas recomendações, peça a Deus um “sinal” para decidir o que Deus quer. Acaz, porque tem a decisão tomada e numa aparente postura de fé, recusa pedir a Deus qualquer “sinal”, não tentando a Deus. De facto, a postura de Acaz era de desdém . Mas Isaías, porque falava em nome de Deus, deixa-lhe um sinal de Deus, que é este: “a jovem (em hebraico: “ha-‘almah”) conceberá e dará à luz um filho, e o seu nome será Deus connosco” (em hebraico: “‘Imanu El”). É uma garantia nova e imediata.
Certamente o profeta refere-se ao facto histórico da gravidez da jovem esposa do rei, Abia, filha de Zacarias (o título “a jovem” aparece em certos textos de Ugarit para designar a esposa do rei) e posterior nascimento do filho Ezequias, que ocupou o trono de Judá à morte de Acaz. O seu nascimento será a garantia de que a descendência de David continuará e de que, apesar do ataque dos inimigos, Judá terá um futuro. Este menino é, pois, um sinal de que “Deus está connosco” e que continua a cuidar do seu Povo e a oferecer-lhe um futuro de esperança. É de confiar.
A versão grega dos “Setenta” utilizou o vocábulo “parthénos” (“donzela”, “virgem”) para traduzir o hebraico “‘almah” (“jovem”). Por isso, desde o séc. II a.C. (ou até antes), parte da tradição judaica viu neste nascimento excecional a referência ao Messias, que nasceria duma “virgem”. E a tradição cristã aplicou este oráculo a Jesus; e Maria, a mãe de Jesus, passou a ser essa “virgem” nomeada no texto grego de Is 7,14. E Jesus o Emanuel. Demos graças a Deus!
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Convenhamos que a segurança e a prosperidade granjeadas por Ezequias são efémeras, não dando garantias de estabilidade e perenidade. Para o escopo do Deus Connosco sempre e para sempre, vem a Boa Nova do Evangelho mateano da Infância revelar que este Emanuel – Deus Connosco é Jesus. Não imaginaria Isaías (ou outro profeta) que se realizaria assim esta profecia.
Segundo os biblistas, os textos do “Evangelho da Infância” pertencem ao género literário da homologese, que, não sendo um relato jornalístico e histórico de acontecimentos, se assume como catequese que proclama certas realidades salvíficas (que Jesus é o Messias, que vem de Deus, que é o “Deus connosco”). Desenvolve-se em forma de narração e recorre às técnicas do midrash haggádico (técnica de leitura e de interpretação do texto sagrado usada pelos rabbis judeus da época de Jesus), utilizando e misturando tipologias (factos e pessoas veterotestamentárias, encontram a sua correspondência em factos e pessoas neotestamentárias) e aparições apocalípticas (anjos, aparições, sonhos) para fazer avançar a narração e para explicitar determinada catequese sobre Jesus. Não interessa, pois, estar à procura de factos históricos, mas, sobretudo, perceber o que a catequese cristã primitiva nos ensina sobre Jesus com estas narrações.
Importa, contudo, considerar a situação de Maria e José. O casamento hebraico considerava o compromisso matrimonial em duas fases: na 1.ª, os noivos prometiam-se mutuamente (os “esponsais”); na 2.ª, era o compromisso definitivo (as cerimónias do matrimónio propriamente dito). Entre os esponsais e o rito do matrimónio, passava um tempo mais ou menos longo, durante o qual qualquer uma das partes podia voltar atrás, embora sofrendo uma penalização. Durante os esponsais, os noivos não coabitavam, mas o compromisso assumido tinha caráter estável, de tal modo que um filho que surgisse era considerado filho legítimo de ambos. A Lei de Moisés considerava a infidelidade da “prometida” como ofensa semelhante à infidelidade da esposa (cf Dt 22,23-27). E a união entre os dois “prometidos” só podia dissolver-se com a fórmula jurídica do divórcio. Ora, segundo o texto mateano, José e Maria estavam na situação de “prometidos”: já tinham celebrado os “esponsais”. De acordo com Mateus, José apercebeu-se da gravidez de Maria durante a fase dos esponsais. Como sabia não ser o pai biológico do nascituro, mas, porque era justo (reto, santo. Poucos no AT/Antigo Testamento têm o epíteto de justo), resolveu abandonar Maria em segredo. Este desconhecido descendente de David pensava ser seu dever afastar-se da vocação de Maria. Porém, um anjo do Senhor apareceu-lhe em sonhos a esclarecer: “O que vai nascer é fruto do Espírito Santo”. E José adotou o filho da Virgem Maria e cuidou dele e dela.
O anúncio a José segue o esquema dos relatos do AT, em que se anuncia o nascimento de importante personagem (cf Jz 13): o anúncio vem rodeado de sinais divinos (o “anjo do Senhor”, o sonho); que provocam medo e espanto; o mensageiro anuncia o nome e a missão da criança que vai nascer; dá-se a base da confirmação do anúncio (o cumprimento das Escrituras). A função do anúncio é vincular a personagem, desde o nascimento, com o projeto divino. Este esquema é usado por Lucas para anunciar o nascimento de João Batista (cf Lc 1,5-25).
A catequese mateana procura, fundamentalmente, mostrar que Jesus vem de Deus, que a sua origem é divina (Maria encontra-se grávida por obra e graça do Espírito Santo”), ensinar qual será a missão de Jesus (o nome que Lhe é atribuído mostra que Ele vem de Deus com a salvação para os homens – “Jesus” significa “Jahwéh salva”) e clarificar que Ele é o Messias de Deus, da descendência de David, que os profetas anunciaram (a referência ao nascimento duma virgem não deve ser vista principalmente como a afirmação do dogma da virgindade de Maria – este é entendido no âmbito da cristologia –, mas como a afirmação de que Jesus é o Messias anunciado pelos profetas, enviado por Deus para restaurar o reino de David).
José desempenha um papel relevante: O anjo dirige-se-lhe como filho de David, pedindo-lhe que receba Maria e imponha o nome à criança. A imposição do nome é o rito pelo qual um pai recebe uma criança como filha. Assim, Jesus passa a fazer parte da família de David e a ser a esperança para a restauração desse reino ideal de paz e de felicidade por que o Povo ansiava. Pela obediência de José, realizam-se os planos e as promessas de Deus ao seu Povo.
Jesus é, assim a incarnação viva e perpétua desse “Deus connosco”, que vem ao encontro dos homens para lhes apresentar uma proposta de salvação. E o Evangelho contém o convite a acolhermos de braços abertos a proposta que Ele traz e a deixarmo-nos transformar por ela.
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Por último, a 2.ª leitura (Rm 1,1-7) sugere que, do encontro com Jesus, resultará o testemunho: tendo recebido a Boa Nova da salvação, os seguidores de Jesus devem levá-la a todos os homens e fazer com que ela se torne realidade libertadora em todo o tempo e lugar.
A Carta aos Romanos foi escrita no final da 3.ª viagem missionária de Paulo. Ao partir de Corinto para Jerusalém, o apóstolo sente que terminou a sua missão no Mediterrâneo oriental e prepara-se para continuar o trabalho missionário no ocidente. O olhar dirige-se, agora (ano 57 ou 58), para Roma e para a Península Ibérica (cf Rm 15,24): os seus planos passam por anunciar aí o Evangelho de Jesus. Paulo está preocupado com o futuro da Igreja, pois há dificuldades no relacionamento entre judeo-cristãos e pagano-cristãos, fruto das diferenças sociais, culturais e religiosas subjacentes aos dois grupos. Na comunidade de Roma, essas diferenças sentem-se com alguma intensidade e ameaçam a unidade da Igreja. E o apóstolo escreve para sublinhar o que a todos une e frisa que todos – judeus e não judeus – fazem parte do mesmo Povo de Deus, pelo que devem viver no amor e na fraternidade.
O texto da 4.ª dominga do Advento é parte da introdução à Carta. Tratando-se de comunidade não fundada por ele, Paulo adota singulares precauções diplomáticas, para não melindrar os cristãos de Roma. Apresenta-se e define a missão que Deus lhe confiou.
Em começo solene, Paulo define-se a si mesmo com três apelativos: é servo de Jesus Cristo, é apóstolo por chamamento divino e é eleito para anunciar o Evangelho.
Dizer-se “servo de Jesus Cristo” significa dizer que pôs a vida incondicionalmente ao serviço de Cristo. A designação de servo não tem aqui conotação com escravidão (contraditaria a consciência que Paulo tem da liberdade cristã); deve, antes, ser entendida como entrega amorosa a Cristo. Desta forma, Paulo define o sentido da sua atividade missionária: serviço a Cristo e ao seu projeto libertador em favor dos homens. Ser “apóstolo por chamamento divino” equivale a dizer que é testemunha fiel de Jesus e da sua mensagem. Deus chamou-o para dar esse testemunho; e Paulo, consciente desse facto, está disposto a enfrentar todas as dificuldades para ser fiel a esse chamamento. E ser “escolhido para o Evangelho” quer dizer que Paulo tem consciência de ser, desde sempre (inclusive, antes do seu nascimento), eleito por Deus para a tarefa de levar a Boa Nova da libertação aos homens de toda a terra. Nasceu para anunciar o Evangelho e ser testemunha do projeto de salvação que Deus oferece a todos os homens.
Estes apelativos paulinos estão centrados no anúncio do “Evangelho”. Na ótica de Paulo, o “Evangelho” é a proposta libertadora de Deus, que se tornou viva e presente no mundo por Jesus Cristo, o Messias, para a salvação de todos os homens. Não é coleção de textos mortos ou doutrina bem ou mal sistematizada, mas a proclamação viva, ativa, transformadora, geradora de vida nova e liberdade plena em quem a escuta e acolhe. Paulo sente que toda a sua vida está ao serviço desse projeto e que a sua missão é levá-lo a todos os homens.
No texto de Paulo é, ainda, de considerar uma primitiva fórmula, em qual Paulo afirma a sua fé em Jesus, nascido da descendência de David, mas constituído Filho de Deus pelo Espírito que santifica; o seu poder manifestou-se na ressurreição – a “prova provada” da sua filiação divina. Mas o Filho de Deus, que nos dá a graça e a paz, é um humilde descendente da estirpe humana, sujeito à dura condição do que nascem filhos da carne e do sangue. E, ressuscitado, fez-Se o salvador – boa nova de que são constituídos servidores os apóstolos, a Igreja e todos os cristãos.
2019.12.23 – Louro de Carvalho

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