domingo, 15 de dezembro de 2019

A Lei de Bases do Sistema Educativo tem resistido ao tempo


A Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE) tem já 33 anos de vigência, feitos a 14 de outubro. Foi, com efeito, aprovada pela Lei n.º 46/86, de 14 de outubro, que estabelece o quadro geral do sistema educativo, sistema que se define como “o conjunto de meios pelo qual se concretiza o direito à educação; se exprime pela garantia de uma permanente ação formativa orientada para favorecer o desenvolvimento global da personalidade, o progresso social e a democratização da sociedade; se desenvolve segundo um conjunto organizado de estruturas e de ações diversificadas, por iniciativa e sob responsabilidade de diferentes instituições e entidades públicas, particulares e cooperativas; e tem por âmbito geográfico a totalidade do território português (continente e regiões autónomas), mas deve ter uma expressão suficientemente flexível e diversificada, de modo a abranger a generalidade dos países e dos locais em que vivam comunidades de portugueses ou em que se verifique acentuado interesse pelo desenvolvimento e divulgação da cultura portuguesa.
Nestes termos, a LBSE é o referencial normativo das políticas educativas que visam o desenvolvimento da educação e do sistema educativo.
1.ª alteração foi introduzida pela Lei n.º 115/97, de 19 de setembro, e abrangeu os artigos 12.º, 13.º, 31.º e 33.º no atinente ao ensino superior e à qualificação para a docência em educação especial. A 2.ª alteração foi introduzida pela Lei n.º 49/2005, de 30 de agosto, incidindo nos artigos 11.º, 12.º, 13.º, 31.º e 59.º no atinente ao ensino superior e aditando ao art.º 13.º os artigos 13.º-A, 13.º-B e 13.º-C. Estabeleceu que a formação dos educadores de infância e dos professores do ensino básico e do secundário “adquirem a qualificação profissional através de cursos superiores organizados de acordo com as necessidades do desempenho profissional no respetivo nível de educação e ensino”; que “a qualificação profissional dos professores de disciplinas de natureza profissional, vocacional ou artística dos ensinos básico e secundário pode adquirir-se através de cursos superiores que assegurem a formação na área da disciplina respetiva, complementados por formação pedagógica adequada”; e que “a qualificação profissional dos professores do ensino secundário pode ainda adquirir-se através de cursos superiores que assegurem a formação científica na área de docência respetiva, complementados por formação pedagógica adequada”. Por outro lado, os estabelecimentos de ensino superior poderão realizar “cursos de ensino pós-secundário não superior visando a formação profissional especializada”. Por seu turno, a Lei n.º 89/2009, de 27 de agosto, “estabelece o regime da escolaridade obrigatória para as crianças e jovens que se encontram em idade escolar (dos 6 aos 18 anos) e consagra a universalidade da educação pré-escolar para as crianças a partir dos 5 anos de idade”. E a Lei n.º 65/2015, de 3 de julho, confere a 1.ª alteração a essa Lei, estabelecendo a universalidade da educação pré-escolar para as crianças a partir dos 4 anos de idade.
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Já houve tentativas de substituir a LBSE por uma outra. Era preciso acentuar a liberdade de escolha e a clara dualidade de percursos no ensino básico. Assim, o Governo de Durão Barroso, cujo Ministro da Educação era David Justino, propôs ao Parlamento a discussão da Lei de Bases da Educação (LBE), concebida em pressupostos e moldes diferentes (da LBSE), que foi aprovada pelos partidos que apoiavam o Governo de coligação, mas Jorge Sampaio vetou-a pelo facto de não ter havido debate público suficiente e por não ter havido consenso parlamentar que lhe desse consolidação. E o Governo de Santa Lopes deixou cair a LBE.
Por outro lado, em 2016, o CNE (Conselho Nacional de Educação), presidido por David Justino criou uma comissão eventual para o estudo e avaliação da LBSE no CNE, badalando a necessidade de uma LBE. Assim, na celebração dos seus 30 anos e, atenta a sua importância estrutural para o sistema educativo, o CNE considerou relevante e pertinente o estudo e avaliação da atualidade e adequação da lei quanto ao desenvolvimento social, económico e cultural do país.
Neste intuito e por forma a promover uma reflexão informada e de qualidade em torno da Lei, o CNE levou a cabo um conjunto de iniciativas. A primeira delas teve lugar na 121.ª Sessão Plenária do CNE, com a audição de 9 ministros que ocuparam as pastas da Educação e/ou do Ensino Superior durante o período de vigência da Lei de Bases: Roberto Carneiro, Diamantino Durão, Eduardo Marçal Grilo, Guilherme d’Oliveira Martins, Augusto Santos Silva, Júlio Pedrosa, David Justino, Maria do Carmo Seabra, Isabel Alçada. Esqueceram-se de António Couto dos Santos, Manuela Ferreira Leite, Lurdes Rodrigues, Nuno Crato e Margarida Mano.
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1. “Educar para que futuro?” foi o tema do primeiro do ciclo de seminários sobre a LBSE, com a reflexão e o debate sobre as seguintes questões:  
Quais as tendências das sociedades atuais que importa identificar como estruturantes? Qual o papel do conhecimento no desenvolvimento económico, social e cultural? Como potenciar a interação entre conhecimento e capacidades individuais na construção da relação entre ensino e aprendizagem? Quais os perfis de formação adequados à capacidade das novas gerações em torno dos pilares fundamentais: liberdade/autonomia, cidadania/valores, desenvolvimento/ conhecimento/capacidades? Como conciliar equidade e diferenciação dos trajetos educativos? Como adequar as capacidades desenvolvidas às oportunidades criadas pela sociedade e pela economia?”.
2. “Currículo e conhecimento: o que ensinar e como ensinar?” foi o tema de mais um seminário. Ao considerar o currículo a forma racionalmente organizada do conhecimento tido como válido e relevante para a capacitação das novas gerações, o desafio que se coloca é o de saber que tipo de conhecimento escolar deve ser privilegiado e que tipo de capacidades se pretendem desenvolver. E as questões levantadas foram: 
Numa era de incerteza, será mais adequado privilegiar os saberes estruturantes das diferentes formas de saber, ou adotar uma distribuição igualitária das cargas horárias e trajetos das diferentes disciplinas? Deverá favorecer-se a dimensão universal do conhecimento (a matemática, as ciências, as línguas estrangeiras, etc.), a nacional (a geografia e a história ‘pátria’, a literatura nacional, etc.) ou a europeia? E que equilíbrio deverá existir entre essas três dimensões? Deveremos convergir com os currículos internacionais ou reforçar as particularidades do nosso sistema de ensino? E a partir de que idade se deve organizar o currículo em disciplinas? Que alterações se deverão introduzir no sistema de monodocência? Deveremos admitir uma componente específica de ensino aprendizagem de carácter multidisciplinar que faça confluir sobre o desenvolvimento de temas os conhecimentos disciplinares apreendidos?”.
Foram questões debatidas por especialistas do currículo e da didática de diferentes áreas do conhecimento, entre as quais, a matemática, as ciências, a história, a filosofia e o português.
3. “Organização do Sistema Educativo: Ciclos de Ensino e Modalidades de Educação” foi tema de outro seminário, que pretendeu reunir especialistas para debater as seguintes questões:
A concretização da intencionalidade educativa da educação de infância contribui para melhores desempenhos nos anos subsequentes? Justifica-se a particularidade da existência de três ciclos no ensino básico? Qual o papel do ensino secundário e da diversidade de vias? Como se integram as modalidades especiais de educação escolar na organização do sistema educativo?”.
4. “Escolaridade obrigatória, diferenciação de trajetos, equidade e sucesso no sistema educativo” foi o tema do seminário que pretendeu recolher o contributo dos diferentes especialistas que nele participaram para uma reflexão informada em torno das questões e desafios que uma escolaridade obrigatória de 12 anos coloca ao País.
5. “Liberdade de ensino e serviço público de educação” foi o tema de mais um seminário. E, considerando que, no art.º 2.º da LBSE, se refere que “No acesso à educação e na sua prática é garantido a todos os portugueses o respeito pelo princípio da liberdade de aprender e de ensinar, com tolerância para com as escolhas possíveis, (…)” e que, passadas três décadas sobre a sua publicação, e, tendo em conta as alterações ocorridas na sociedade e no sistema educativo, importava analisar e debater algumas questões:
Como se concretiza a liberdade de ensinar e de aprender consagrada na Constituição e na LBSE? Quais as dimensões que essa liberdade pode assumir para além da criação de escolas de ensino privado e cooperativo? Os princípios estabelecidos pela lei serão bastantes para assegurar o direito das famílias a orientar a educação dos filhos? Poder-se-á falar de liberdade de ensinar e de aprender relativamente ao ensino público? Haverá uma efetiva liberdade de ensinar e de aprender quando existem constrangimentos à liberdade de escolha? O que falta para que a liberdade de ensinar e de aprender possa ser exercida por todos? Poderá a liberdade de escolha ser estimulada pela existência de projetos pedagógicos alternativos, independentemente da natureza da escola (pública ou privada)? Até que ponto o exercício da liberdade de escolha pode contribuir para a melhoria da qualidade da educação e da equidade do sistema educativo? Em que circunstâncias deve o Estado financiar o ensino privado? Como tem sido usada a liberdade de escolha noutros países? Haverá algo a reter desses modelos?”.
6. “Organização e desenvolvimento do ensino superior” foi o tema do seminário que pretendeu refletir sobre diferentes perspetivas no que respeita à natureza binária do sistema, a organização e reconhecimento da formação, a internacionalização e mobilidade e a investigação científica.
Segundo o art.º 11.º da LBSE, o ensino superior “compreende o ensino universitário e o ensino politécnico”. O ensino universitário está, pois, “orientado por uma constante perspetiva de promoção de investigação e de criação do saber”, ao passo que o ensino politécnico está “orientado por uma constante perspetiva de investigação aplicada e de desenvolvimento, dirigido à compreensão e solução de problemas concretos”. Importa, assim, debater esta natureza binária e refletir sobre a missão das diferentes instituições de ensino superior. É assinalável a expansão do ensino superior nas últimas três décadas, a qual de manifestou não na multiplicação de instituições de ensino superior e na diversidade da oferta formativa, de tal modo que, nos últimos 15 anos, a economia não teve capacidade de absorver as qualificações produzidas pelo sistema, em parte devido ao facto de a oferta ser desajustada das necessidades da economia e da sociedade. Por outro lado, a reorganização da formação (no âmbito do Processo de Bolonha) introduziu alterações no sistema de reconhecimento e certificação da qualidade e na organização da formação que adotou um sistema europeu de créditos (art.º 13.º da LBSE).
internacionalização e mobilidade são uma referência explícita para a convergência dos sistemas de educação europeus, bem como uma referência na LBSE:
A mobilidade dos estudantes entre os estabelecimentos de ensino superior nacionais […], bem como entre estabelecimentos de ensino superior estrangeiros e nacionais, é assegurada através do sistema de créditos, com base no princípio do reconhecimento mútuo do valor da formação e das competências adquiridas”.
Os processos de internacionalização do ensino superior respondem aos desafios da globalização das sociedades da informação e do conhecimento e da criação de redes de cooperação.
Por fim, a LBSE reforça, no art.º 18.º, a importância da investigação científica no ensino superior, salienta a necessidade de se considerarem “os objetivos predominantes da instituição em que se insere”, bem como de garantir as condições de publicação e facilitação da divulgação do conhecimento produzido. E incentiva “a colaboração entre as entidades públicas, privadas e cooperativas no sentido de fomentar o desenvolvimento da ciência, da tecnologia e da cultura”.
7. “Formação de professores: dilemas e desafios” foi o tema de um outro seminário em que se abordaram os princípios gerais da formação inicial e contínua de educadores e professores definidos na LBSE à luz dos desenvolvimentos do sistema e dos estudos e recomendações sobre esta matéria, a nível nacional e internacional.
Os princípios gerais sobre a formação de educadores e professores encontram-se estabelecidos em diversos artigos da LBSE, nomeadamente: o art.º 33.º, que a define como devendo ser flexível, integrada, assente em práticas metodológicas, estimuladora da inovação e da investigação e conducente a uma prática reflexiva; o artigo 34.º, que aborda questões relacionadas com as instituições de ensino superior que a realizam, como a definição de perfis de competências e de formação e a relação entre a formação científica na área de docência e a formação pedagógica; e o art.º 38.º, em que se exprime a importância da formação contínua.
Esta temática assume uma importância particular tendo em conta o progressivo envelhecimento do corpo docente no ativo em Portugal, a necessidade de renovação dos quadros das escolas e os desafios com que o sistema educativo se depara relativamente a esta questão. Neste contexto, o seminário pretendeu promover a reflexão e o debate sobre perspetivas da formação inicial e contínua de educadores e professores dos ensinos básicos e secundário, bem como de outras dimensões associadas, como a profissionalização, o acesso e a organização da carreira docente.
8. E “Centralidade, descentralização e autonomia: o que compete a quem?” foi o último dos seminários daquele ciclo de estudos. A informação sobre ele é parca. Na verdade, pouco entendimento existe sobre a autonomia das escolas. A LBSE consagra explicitamente a autonomia das instituições do ensino superior. Das outras instituições – estabelecimentos de educação e ensino não superior – refere apenas a administração e gestão em termos de democraticidade e representatividade. E, embora os diplomas que estabelecem o regime de autonomia, administração e gestão das escolas e agrupamentos se escudem na LBSE, o certo é que a autonomia não está ali respaldada explicitamente, pelo que esta é propagandeada, concedida ou reconhecida e se restringe à vontade do governante da área, que a pode fazer repousar na figura do diretor, a quem se reconhece tacitamente o poder de tudo decidir (incluindo os elementos do conselho geral), desde que o município não se sinta apoquentado.       
Nesse ano de 2016, houve tentativas de subversão da LBSE. Por exemplo, o CDS fez entrar no Parlamento, a 29 de setembro, o Projeto de Lei n.º 306/XIII/2.ª para alterar os artigos 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 6.º, 7.º, 8.º, 9.º, 10.º, 12.º, 20.º, 26.º, 33.º, 34.º, 37.º, 40.º, 43.º, 44.º, 46.º, 47.º, 48.º, 50.º, 57.º, 58.º, 59º, 60.º, 61.º e 62.º – que não teve êxito. O Projeto apresentava 4 grandes alterações: consagração da estabilidade das políticas educativas, garantindo previsibilidade às escolas e famílias, por períodos de 6 anos, desvinculando as políticas públicas dos ciclos eleitorais; universalização da educação pré-escolar aos 3 anos e a obrigatoriedade aos 5, reconhecendo que uma intervenção precoce é promotora de maior equidade no acesso ao sucesso, bem como a reorganização de ciclos de ensino em 2 ciclos de 6 anos; reconhecimento dos conceitos de autonomia e descentralização, para reforçar a aproximação da política educativa às pessoas; e maior participação dos encarregados de educação na vida escolar, bem como maior liberdade de escolha, com a definição duma rede pública, integrada por escolas e projetos educativos, incluindo não estatais, se contratualizados com o Estado. É a liberdade de escolha em absoluto, como a liberdade de ensinar o que se entender.
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Não vingaram as tentativas e a LBSE resistiu. O CNE vai estudando o estado da Educação e funcionando como órgão consultivo da Assembleia da Republica e do Governo para a área da Educação. Ne sutor ultra crepidam!
2019.12.14 – Louro de Carvalho

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