quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

“Cada um de nós é personagem do presépio”


É uma forte asserção do Cardeal Dom José Tolentino Mendonça em entrevista à agência Ecclesia, publicada neste dia de Natal e em que fala do significado do Natal, da sua força transformadora e da inspiração do Papa Francisco, que acompanha de perto na Cúria Romana.
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Sobre o simbolismo da partilha da Luz da Paz de Belém, iniciativa começada na gruta belemita, chegada até nós através do CNE (Corpo Nacional de Escutas) e realizada em todas as dioceses de Portugal, o purpurado madeirense aponta a linguagem dos símbolos como aquela que é relevante “na nossa humanidade”, porque toca “mesmo no fundo”, sendo que “um símbolo vale por mil palavras”. Assim, “o gesto de partilhar uma luz que veio de tão longe, do lugar onde o próprio Jesus nasceu”, é algo que ultrapassa as palavras “e é este propagar, no fundo, de uma mensagem, de uma palavra de esperança – de uma luz que se acende na noite, tantas vezes, das nossas vidas, dos nossos corações, dos nossos dilemas –, que o Natal quer representar.
Considerando que o Papa, no encontro de Natal com a Cúria Romana, falou desta luz que chega aos locais de escuridão do nosso mundo, o Cardeal vinca o sentido e escopo da vinda de Jesus:
Jesus vem para isso. Jesus vem, não para o mundo idealizado, mas para o mundo real. Para o mundo concreto, cheio de feridas, de divisões, de coisas por tratar, de mudanças a inscrever. Nesse sentido, Ele é uma luz – seguindo a tradição bíblica, o profeta Isaías, que dizia: o povo que andava nas trevas viu uma grande luz (…), a proposta do Natal é essa visão de uma luz, uma luz nova que nos reaproxima uns dos outros, do sentido das nossas vidas.”.
E falando da carta que Francisco escreveu a todos os cristãos (a 1 de dezembro sobre o presépio), frisa a simplicidade e eficácia da mensagem, que incide sobre o essencial, vincando que, na tradição de São Francisco, o autor do primeiro presépio, “cada um de nós é personagem do presépio”, pois este não é um teatro, a que assistimos, mas uma história em que “participamos como autores”. Por isso, se no dia de Natal sentimos o cansaço resultante do “grande tempo de preparação e de emoção, de convívio, que vivemos” e nos perguntarmos “o que é que fica de tudo isto que passa”, “é importante que fique uma luz” a incidir na “certeza de que somos amados, a certeza de que este Deus que vem à nossa vida é capaz de entender a mulher e o homem que nós somos, é capaz de nos abraçar na nossa realidade mais viva” e “de semear em nós um sentido, uma promessa, que diz: o verdadeiro Natal não passa”. Com efeito, “o dia 25 não é o término, é um ponto de começo, de relançamento da nossa vida”.
Tendo-lhe sido apontado que uma das coisas que escreveu é que “o Natal não é ornamento, é fermento”, explicou:
O grande risco (…) no Natal, é que todo o mundo simbólico (…) acabe por esgotar tudo. De certo modo, tudo fica numa mesa bem composta, nuns cozinhados excelentes, nos presentes que trocamos, nas luzes que se acendem, e o essencial do Natal passa ao lado. Por isso é importante dizer que o Natal não é ornamento, mas é fermento. Não é em vão que nós vivemos este Natal.”.
E sublinhou que, apesar de termos vivido muitos natais, “cada Natal é, de facto, uma oportunidade, e deixa-nos uma graça, na nossa vida”, pelo que o Papa, ao falar aos funcionários do Vaticano, falava no sorriso: “Deus, em Jesus, veio acender um sorriso no fundo da nossa alma”. E Tolentino Mendonça considera importante “essa alusão à alegria”, que “não se esgota”, que não se esvai com o pôr do sol deste dia 25 e cuja cintilação de esperança é “a coisa mais importante”.
A audácia de ir atrás dessa alegria, dessa luz, “é o grande desafio, da nossa vida”. Na verdade, diz o purpurado, “Deus veio ao nosso encontro” na proposta de Jesus, “este Deus frágil, que nos é dado, este Deus que se torna dom é acolhido”. E Tolentino Mendonça explana:
O Natal é um programa, é um programa de vida. Um grande poeta contemporâneo dizia que nós nunca nascemos o suficiente. Mesmo numa idade adulta, avançada, distantes do dia do nosso nascimento, a verdade é que o ato de nascer é um ato para conjugar de muitas maneiras, ao longo da nossa vida. Um nascimento nunca é suficiente e há um parto, a nossa humanidade pode ser descrita como um parto. Nós precisamos de nascer.”.
E o cardeal-poeta entende que Deus nos ensina no presépio a audácia de nascer “mesmo na fragilidade, na nudez, na precariedade, no não preparado, na vida como ela é, mas com a capacidade de florescer”, ou seja, a capacidade de sermos “em plenitude”.
Quanto ao risco de não chegarmos aí “se nos fixarmos nas questões penúltimas e não nas últimas”, diz que “as questões penúltimas têm o seu sabor, o seu sentido” e “são o caminho para chegar às últimas” sendo importante sentirmos que “as coisas não acabam aqui, que a minha relação com o Deus-Menino, por exemplo, não acaba quando eu construo o presépio”, tal como “a minha relação com os familiares não acaba quando nos levantamos da mesa de Natal” e “a minha relação comigo mesmo, com a busca de Deus, não acaba porque fui à Missa do Galo ou fui à Missa no dia 25”. E conclui:
O Natal é um dom que nos é oferecido, é uma luz que se acende. A grande pergunta é: o que é que eu vou iluminar com esta luz? Por que é que esta luz se acendeu? O que é que eu posso fazer?”.
No atinente à inclusividade do presépio pela qual, no dizer do Papa, “no rosto do Menino Jesus estão todos aqueles que não têm lugar em tantas hospedarias da atualidade, como Ele não teve na altura”, Dom José Tolentino contrapõe a este tempo de fraternidade o enredo dramático do Natal, explicando:
[É] a história de dois que descem, um jovem casal, que desce da sua terra, que está deslocado do seu lugar de origem, que chega e não tem casa, tendo de viver no desabrigo um dos momentos mais intensos da sua vida, que é dar à luz o filho que Maria traz no seu seio. São condições de um dramatismo humano que a todos nos toca e que nos deveria servir de modelo para a relação que queremos instaurar com os nossos semelhantes, sobretudo com os mais pobres, aqueles que literalmente melhor se identificam com a fragilidade das figuras do presépio.”.
É o Natal, pois, “uma escola de inclusão, é uma escolha de acolhimento, porque nos reúne todos em volta do essencial, que é a vida”. E prossegue o purpurado:
As nossas sociedades não podem esquecer que o valor primeiro é a vida, estarmos vivos é o primado. Em volta da vida, nós devemos ajoelhar-nos, oferecer os nossos dons, sentir a grande alegria. Porque, se deixamos de sentir alegria, quer dizer que um apagamento aconteceu dentro de nós, que deixamos de ter a capacidade de espanto, de fraternidade e de acolhimento.”.
Comentando a asserção papal de que “os pobres, os marginalizados são os que se aproximam mais deste mistério da Encarnação e nos ajudam nessa aproximação”, discorre:
Os pobres transportam o vazio, a necessidade, a disponibilidade. Os pobres têm um olhar inocente, porque precisam, porque dependem. E isto é uma atitude espiritual de que todos nós precisamos, porque às vezes somos cristãos de barriga cheia, que vivem muito a partir do seu conformismo, da sua tradição, do seu deixa andar, mas verdadeiramente não é uma questão vital, da qual dependa a nossa existência. E os pobres ensinam-nos isso. Na linha de toda a tradição bíblica, de toda a revelação de Deus, do que Jesus nos diz, o dom que é recebido é para ser partilhado: Recebestes de graça, dai de graça.”.
Não se pode fazer de conta que a pergunta de Deus faz a Caim, “onde está o teu irmão?” não nos é feita, pois a “responsabilidade duns pelos outros é um património inalienável”.
Sobre o tema da ternura de Deus – caro a Francisco que se conjuga neste ambiente do presépio, no ambiente familiar”, observa em modo anafórico:
Isso é extraordinário, porque, às vezes, uma das nossas pedras de tropeço são as representações de Deus. Sobretudo as internas, que se instalaram dentro de nós. Muitas vezes, temos a ideia de um Deus juiz, castigador, indiferente, mas o Deus do presépio – este Deus feito Menino, este Deus que abre os braços para nós, este Deus que se dá a conhecer na nudez e na fragilidade, este Deus que é pobre – é purificador das imagens de Deus que são uma ameaça à nossa fé. O Deus do presépio, cuja imagem nós precisamos de interiorizar e de aprender, é um sustento para a nossa fé, porque Deus é como o Menino do presépio.”.
Depois, comenta o caso da coroa (metade de Natal e metade de espinhos), que anda nas redes sociais:
O mistério da vida de Jesus e o mistério da nossa própria vida têm de ser olhados na globalidade. A coroa de Natal não nos pode fazer esquecer a vida, o Natal não é uma alienação, o Natal é uma imersão festiva no sentido mais global da nossa vida, onde cabe tudo. A nossa vida é esse caminho completo. Por isso, no Natal é importante não esquecermos o sofrimento, o quinhão de sofrimento humano, e sobretudo não esquecermos que este dom é uma grande responsabilidade, que temos de assumir com todas as consequências que a ela estão inerentes.”.
Nestes termos “o dia 25 é um começo, um momento de que também precisamos, porque somos seres feitos para a festa, para a alegria” e “o Natal é o dia da festa”. E os madeirenses chamam-lhe simplesmente “a Festa”, pois “a encarnação de Deus, que se faz Deus connosco, é o grande presente, é a grande luz que se acende.” E sobre o facto de lá as figuras do presépio estarem cada uma na sua “jaula”, presas, separadas umas das outras, na fronteira”, o cardeal vinca:
O tempo de Natal é um tempo de reflexão. Podemos gostar ou não das imagens, das propostas, mas mesmo imagens que possam chocar um pouco ajudam-nos a não passar este tempo só na celebração. É preciso ter também um tempo de reflexão sobre o que significa o Natal, em que contexto de mundo celebramos este Natal de 2019.”.
E contrapõe:
O Natal é, de facto, uma chama que ilumina a noite do mundo e é importante que tomemos consciência do mundo em que vivemos e daquilo que o Natal nos implica a fazer, de compromisso, de encontro, de ação transformadora”.
Quanto à vivência de Natal na Cúria Romana, a partir do encontro anual com o Santo Padre (21 de dezembro de 2019), refere:  
É um momento sempre muito importante, porque é o discurso anual que o Papa faz aos seus colaboradores mais próximos, na Santa Sé. Para lá da beleza do encontro, em si, e do estarmos uns com os outros, o Papa Francisco faz sempre um discurso programático. Parte-se do Natal para pensar na vida. Este ano, o Santo Padre quis pré-anunciar a reforma da Cúria, chamando-nos a uma atitude que foge à rigidez. Às vezes, as estruturas e as instituições têm essa tentação, de se tornarem rígidas e autorreferenciais; ora, é preciso abrir-se à novidade do Evangelho e às exigências, aos novos desafios do Evangelho.”.
Assim, “pré-anunciando a concretização da reforma da Cúria,” o Papa quer ajudar à atitude certa”: atitude de acolhimento, pois “no Natal somos chamados a acolher o Menino que nasce”.
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Sobre a afirmação do Pontífice de que “já não estamos no tempo da Cristandade”, salienta:
O mundo mudou muito, tornou-se muito plural, muito diversificado. O lugar do Cristianismo no mundo, o lugar da Igreja, tem um formato completamente diferente do que era há alguns séculos, num regime de Cristandade.”.
Tudo isto implica uma interpretação específica e uma conversão, pelo que Dom Tolentino frisa:
A interpretação deste tempo e dos sinais dos tempos, do caminho a seguir, é uma coisa muito exigente, porque nos pede a todos uma desinstalação muito grande e uma capacidade de arriscar novos caminhos, novas linguagens, novas propostas, vivendo uma simplificação maior dos nossos meios, das nossas estruturas, para privilegiar as dimensões da evangelização e do encontro. Isso, como diz o Santo Padre, é uma conversão.”.
E, no âmbito do alcance da predita conversão, esclarece:
Esta conversão, no entanto, não é só vivida ao nível da Cúria Romana; esta conversão é vivida ao nível das dioceses, das paróquias, dos grupos, das comunidades mais celulares, porque este chamamento a uma renovação, digamos, para poder servir melhor a missão da Igreja é um chamamento que toca verdadeiramente a todos”.
Quanto ao facto de o Papa ter destacado, de entre os dicastérios a reformar, o Dicastério da Comunicação, apelando a um modo de trabalhar diferente, em sinergia. O cardeal português, da Madeira, considerou:
É muito importante e a Comunicação Social é um mundo onde as mudanças aceleradas aconteceram, transformando tudo aquilo que nós conhecíamos, dos formatos: eu ainda sou da geração que todos os dias lia o jornal e esperava pelo jornal em papel. Ele continua, mas hoje as primeiras notícias do dia, se calhar, não nos chegam através desse formato. É preciso adequar-se. Há uma palavra italiana que o Concílio Vaticano II cunhou e que é muito repetida na Igreja: o aggiornamento. Colocar em dia os nossos processos. Isso só se faz com a capacidade de trabalhar em equipa, de trabalhar conjuntamente.”.
E, articulando aspetos da reforma da Cúria Romana com o Natal, anota:
O Natal é o contrário da ‘lógica das capelinhas’ – ‘eu tenho o meu pequeno reino, o meu pequeno mundo, aqui sou um rei, mando, controlo’. É preciso passar desta lógica individualista e fragmentária para uma capacidade de estar, de fazer um processo conjunto, alimentar um projeto único. Penso que é um grande desafio para a Igreja, a todos os níveis (…). Com naturalidade, com simplicidade (…) o viver comunitário, o trabalho comum.”.
Sobre a mudança da designação de Arquivo Secreto para Arquivo Apostólico Vaticano, diz:
Foi um aggiornamento, um colocar em dia a designação, porque, se é verdade que a palavra ‘secreto’ vem do latim – tem a mesma origem da palavra “secretaria” (…) e quer dizer privado, porque é o arquivo do Papa e das Nunciaturas, que no fundo se correspondem com o Santo Padre, a verdade é que a palavra “secreto”, hoje, é um termo muito ambíguo, que precisa sempre de ser explicado, mas que não desfaz nunca uma certa carga de coisa escondida, de coisa que se quer manter às escuras. Ora, um arquivo é um lugar de estudo, é um lugar onde o encontro com a História se realiza, de uma forma normal, porque são os documentos a falar.”.
“Nesse sentido”, assegura, “a melhor designação hoje, de facto, é Arquivo Apostólico Vaticano, como a Biblioteca”, pois “tem a ver com a missão de Pedro”.
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Tendo-lhe sido lembrado que o seu percurso de vida tem forte repercussão em Portugal – foi personalidade do ano, para o ‘Expresso’, recebeu a Medalha de Mérito da Região Autónoma da Madeira – confessa acolher tal repercussão “com muita humildade e respeito pelo sentimento dos outros”, embora se sinta “sempre muito pequeno, diante do amor, do carinho” com que todos o abraçam. Porém, assegura:
O único valor, para mim, que vejo nessas homenagens, não é certamente um valor pessoal – porque tenho o sentido profundo da minha pequenez, de como tantas outras pessoas têm um papel, um valor, um mérito muito superior ao meu –, mas o que me faz aceitar e sorrir a todos é a oportunidade de que esses momentos sirvam para trazer para o espaço público determinadas temáticas, falar de assuntos, trazer uma mensagem que normalmente não está tão presente no dia a dia das conversas e escolhas”.
Não contestando que são momentos que ajudam a manter a ligação com a sua terra natal, diz:
Essa raiz existe e existirá sempre. Não é impunemente que se é português ou que se nasce num lugar, porque é a nossa matriz cultural, que é um património de futuro, não apenas de passado. Mas é sempre muito belo voltar a Portugal.”.
E, no respeitante a ser o presidente das próximas comemorações do 10 de Junho, na Madeira, agradece o convite que o Presidente da República que lhe fez, “ainda antes de ser cardeal, para o fazer, como cidadão – porque é nessa condição e é uma bela tradição da nossa República, chamar um cidadão para falar no Dia de Portugal”. É, pois, “como cidadão português, mais um”, que nesse dia falará “em nome dos portugueses”, esperando que “o discurso possa contribuir, humildemente, para o debate e para as preocupações da nossa comunidade nacional”.
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Quanto ao facto de cada um ser uma personagem do presépio, o que nem o Papa nem cardeal explicam (talvez de propósito), penso que ninguém há de querer ser alguma das figuras que lá se veem. Cada um deve querer ser aquilo que é e o que é chamado a ser. Com efeito, se quero ser o menino Jesus (ser embrulhado e afagado e adorado por todos), para o que já não tenho idade, devia ter começado por ser a ovelha sofrida e resistente, que dá a carne, a lã e o leite; ser o pastor que guarda o rebanho resistindo à intempérie e corre a Belém; ser o cão que ladra em aviso e usa os dentes e as patas para defender as ovelhas; ser o mago que se sujeita a caminhar, adora e oferece presentes; ser o burro ou a vaquinha que aquecem o ambiente com a sua respiração e o calor desenvolvido dentro do seu pelo (e a vaca pode dar o leite); ser o José justo, sonhador e pressuroso na defesa da família; ser o anjo que anuncia a boa alegria e canta glória e paz; ser a mãe Maria que transporta Jesus, cuida dele e O mostra a quem O procura. Talvez, sem deixar de assumir papéis destas personagens todas, deva ser eu mesmo, mas preferencialmente assumir o papel do anjo e de Maria como mensageiro, portador e testemunha de Cristo: “Cristóforo” ou Cristóvão é o que transporta Cristo, O apresenta, O canta e para Ele conduz os outros. 
Lá está, como escrevia ontem, teremos de ser discípulos, mensageiros e promotores do Presépio.
2019.12.25 – Louro de Carvalho

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