segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

A Cúria Romana muda para melhor anunciar o Evangelho e servir a humanidade


O Papa Francisco recebeu, no dia 21, na Sala Clementina para as tradicionais felicitações de Natal, os seus colaboradores mais próximos da Cúria Romana. Falou do Natal e das mudanças na Cúria Romana.
Do Natal disse, entre outras coisas, citando um místico do nosso tempo (o monge egípcio do século XX, Matta el Meskin – Mateus, o pobre), que “o nascimento de Cristo é o testemunho mais forte e eloquente de quanto Deus amou o homem”. Amou-o com um amor pessoal. É por isso que tomou um corpo humano, ao qual Se uniu e assumiu para sempre. “O nascimento de Cristo é, em si mesmo, uma “aliança de amor” estipulada para sempre entre Deus e o homem”. E, pegando em palavras de São Clemente de Alexandria, afirmou:
Para isto Ele [Cristo] desceu; para isto Se revestiu de humanidade; para isto sofreu voluntariamente o que padecem os homens, para que, depois de Se ter confrontado com a nossa fraqueza que amou, pudesse em troca confrontar-nos com a sua força.”.
Antes de levar o discurso ao ponto que lhe está no coração, o Pontífice convidou os presentes a sintonizarem-se numa convicção que lhe subjaz e o acompanha desde o início do magistério pontifical, ou seja: a época atual “não é simplesmente uma época de mudanças, mas é uma mudança de época”. E, acrescentando, que o comportamento saudável é o de “se deixar interrogar pelos desafios do tempo presente”, com discernimento e coragem, e não se deixar seduzir pela moda de tudo mudar nem pela cómoda inércia de deixar tudo como é, observou:
Muitas vezes vive-se uma mudança limitando-se a vestir uma roupa nova, mas na realidade permanece-se como era antes. Recordo a expressão enigmática que se lê num famoso romance italiano: “Para que as coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude.” (O Leopardo, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa).
Assim, deve assumir-se a resposta ao desafio e vencer a inércia sem se deixar levar pela onda apelante da moda, que pouco leva a mudar (só mudam as aparências).
Neste encontro com a Cúria Romana para as felicitações natalinas de 2019, menos crítico do que em anos anteriores, o Papa fala sobre as transformações em curso nas instituições vaticanas, reiterando necessidades e objetivos dos novos dicastérios, frisando que a mudança é para vencer rigidez e medos e anunciar melhor o Evangelho para um mundo descristianizado.
Ora num mundo em contínua mudança, a Cúria Romana não muda simplesmente para “seguir modas”. Na verdade, a Igreja vive o desenvolvimento e o crescimento a partir da perspetiva de Deus e a história da Bíblia é toda “um caminho marcado por começos e recomeços”. Era por isso que um dos novos Santos, o Cardeal Newman, quando falava de “mudança” na realidade queria dizer “conversão” e dizia do Natal:
Este é o tempo da inocência, da pureza, da mansidão, da alegria, da paz”.
A articulada premissa do tema da reforma da Cúria Romana, no dizer do Bispo de Roma, “nunca teve a presunção de fazer como se antes nada tivesse existido”, mas apostou no contrário “em valorizar tudo o que foi feito de bom na complexa história da Cúria”. É a evolução pertinente na continuidade da fidelidade (pois a sadia tradição é garantia do futuro) que exige a mudança de mentalidade e olhar, coração e escuta, atitude, métodos e técnicas com vista a uma atividade mais centrada no essencial e acolhedora da liberdade no acessório. É a conversão de fundo para a ação na visibilidade. E ensina o Papa:
É obrigatório valorizar a sua história [a da Cúria] para construir um futuro que tenha bases sólidas, que tenha raízes e nos possa levar a um futuro fecundo. Apelar-se à memória não quer dizer ancorar-se na autoconservação, mas ‘reconvocar’ a vida e a vitalidade de um percurso em contínuo desenvolvimento. A memória não é estática, é dinâmica. Por sua natureza implica o movimento.”.
E Francisco passa em revista “algumas novidades da organização curial, como a criação, no final de 2017, da Terceira Seção da Secretaria de Estado (Secção para os funcionários diplomatas da Santa Sé), juntamente com outras mudanças nas “relações entre Cúria Romana e Igrejas particulares” e na “estrutura de alguns Dicastérios, em particular o das Igrejas Orientais e outros para o diálogo ecuménico e inter-religioso, nomeadamente com o Judaísmo”. Mas foi principalmente a constatação – já evidente no tempo de São João Paulo II e de Bento XVI – de um mundo que não é consciente do Evangelho como no passado, a requerer profundas reestruturações de dicastérios históricos ou a sugerir o nascimento de novos. Daí, como sabemos resultou a criação do Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização.
Ao referir-se à Congregação para a Doutrina da Fé (CDF) e à Congregação para a Evangelização dos Povos (CEP), o Papa fala da evidência de que, quando estas congregações “foram instituídas, era uma época na qual era mais simples distinguir entre dois divisores definidos: de um lado, o mundo cristão; e, do outro, um mundo ainda a evangelizar”. Hoje a situação não é essa. As populações que ainda não receberam o anúncio do Evangelho não vivem apenas nos continentes não ocidentais, mas estão em todos os lugares, especialmente nas grandes concentrações urbanas, as quais requerem uma pastoral específica. Nas grandes cidades precisamos de outros “mapas”, de outros paradigmas, que nos ajudem a reposicionar o nosso modo de pensar e as nossas atitudes: não estamos mais na cristandade.
Por isso, a remodelação operada e a operar nas instituições vaticanas resulta de um ímpeto renovador que impulsione um renovado anúncio do Evangelho, em conformidade com o que o Papa já tinha esclarecido na Evangelii gaudium: costumes, estilos, horários e linguagem, tudo deve ser “um canal adequado à evangelização do mundo atual, mais que à autopreservação”. E a esta necessidade corresponde o nascimento do Dicastério para a Comunicação, entidade que une 9 setores dos meios de comunicação do Vaticano que antes eram separados entre si. Não são agora um simples “agrupamento coordenativo”, mas um modo de “harmonizar” para “produzir uma melhor oferta de serviços” numa cultura amplamente digitalizada”.
Considerando que a nova cultura, marcada por fatores de convergência e multimedialidade, exige resposta adequada por parte da Sé Apostólica a nível comunicacional (hoje, nos serviços diversificados, prevalece a forma multimedial, o que marca o modo de os criar, pensar e atuar), disse o Papa que tudo isso implica, juntamente com a mudança cultural, uma conversão institucional e pessoal para passar dum trabalho completamente isolado – que nos casos melhores tinha alguma coordenação – a um trabalho conectado, em sinergia.
Também o Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral, criado para tornar mais coerente e unitário o trabalho que estava dividido entre os Pontifícios Conselho Justiça e Paz, Cor Unum, Pastoral dos Migrantes e Pastoral no Campo da Saúde, precisou de reformulação. Diz o Santo Padre a este respeito:
A Igreja é chamada a recordar a todos que não se trata apenas de questões sociais ou migratórias, mas de pessoas humanas, de irmãos e irmãs que hoje são o símbolo de todos os descartados da sociedade globalizada. É chamada a testemunhar que para Deus ninguém é ‘estrangeiro’ ou “excluído’. É chamada a despertar as consciências adormecidas na indiferença diante da realidade do Mar Mediterrâneo que se tornou para muitos, demasiados, um cemitério.”. 
E aqui o Sumo Pontífice introduz um tema natalino ao dizer que o Natal se torna presente nos mais pobres, evocando os migrantes que perderam a vida a atravessar o Mediterrâneo, e apelar:
Não nos esqueçamos que o Menino deitado no presépio tem o rosto dos nossos irmãos e irmãs mais necessitados, dos pobres que são os privilegiados deste mistério”.
Assim, entre os “grandes desafios” e “necessários equilíbrios”, o que conta é que a Igreja, a Cúria Romana por primeiro, olhe à humanidade na qual todos são “filhos de um único Pai”. E Francisco não esconde a dificuldade de mudanças tão grandes, a necessidade de gradualismo, “o erro humano”, com os quais “não é possível, nem justo não considerar”, pois “a este difícil processo histórico está sempre ligada a tentação de se fechar no passado” (mesmo usando novas formulações), porque é visto como mais garantido, conhecido e menos conflitual. E vincou:
Neste ponto é preciso colocar em alerta a tentação de assumir um comportamento rígido. A rigidez nasce do medo da mudança e termina por disseminar limites e obstáculos no terreno do bem comum, fazendo com que se torne um campo minado de incomunicabilidade e de ódio. Recordemos sempre que por trás de toda a rigidez jaz algum desequilíbrio. A rigidez e o desequilíbrio alimentam-se mutuamente em círculo vicioso.”.
A concluir, citou o Cardeal Carlo Maria Martini que afirmou pouco antes da sua morte:
A Igreja ficou para trás 200 anos. Porque não se mexe? Temos medo? Medo ao invés de coragem? De qualquer modo a fé é o fundamento da Igreja. A fé, a confiança, a coragem. […] Só o amor vence o cansaço.”.
E frisou que o Natal é a festa do amor de Deus por nós. O amor divino que inspira, dirige e corrige a mudança e vence o medo humano de deixar o “seguro” para se lançar no “mistério”.
***
Não podemos esquecer que Francisco desejou que a troca de votos natalícios seja uma oportunidade para acolher o mandamento do amor, a Deus e ao próximo, precisando:
Jesus não nos pede para O amarmos a Ele em resposta ao seu amor por nós; mas, sim, para nos amarmos uns aos outros com o seu próprio amor. Por outras palavras, pede-nos para sermos semelhantes a Ele, porque Ele Se fez semelhante a nós.”.
Por outro lado, reiterou a importância do caráter integral do desenvolvimento referindo que São Paulo VI afirmou que “o desenvolvimento não se reduz a um simples crescimento económico”, mas, “para ser autêntico, deve ser integral, quer dizer, promover todos os homens e o homem todo” (vd Populorum Progressio, 14). Ou seja, a Igreja, enraizada na sua tradição de fé e apelando-se nas últimas décadas ao magistério do Concílio Vaticano II, “sempre afirmou a grandeza da vocação de todos os seres humanos, que Deus criou à sua imagem e semelhança a fim de formarem uma única família; e, ao mesmo tempo, procurou abraçar o humano em todas as suas dimensões”. E é esta exigência de integralidade que hoje nos repropõe a humanidade que nos une como filhos de um único Pai. “Em todo o seu ser e obrar, a Igreja está chamada a promover o desenvolvimento integral do homem à luz do Evangelho” (vd Humanam Progressionem,17/12/2016, exórdio). O Evangelho não cessa de trazer a Igreja à lógica da encarnação, segundo a qual Cristo que assumiu a nossa história, a história de cada um de nós. Isto lembra-nos o Natal. Em suma, a humanidade é a chave com que ler a reforma.
E, recordando que, na preparação para o Natal, as pregações escutadas foram sobre a Santa Mãe de Deus, pediu que rezassem todos a Ave Maria, que recitaram, e pronunciou a bênção. Depois, deu como prenda dois livros. O primeiro é o “documento” que exarou para o mês missionário extraordinário [outubro de 2019], aparecendo sob a forma de entrevista e com o título Sem Ele nada podemos fazer. Inspirou-o uma frase que dizia: “quando o missionário chega a um lugar, já está lá o Espírito Santo à espera dele”. E o segundo é um retiro dado aos sacerdotes, há pouco tempo, pelo Padre Luís Maria Epicoco: um retiro para os sacerdotes, Alguém por modelo. E ofereceu-os para servirem a toda a comunidade.
Enfim, um Papa que recebe críticas, que critica, que muda e que dá prendas, sempre movido pelo Espírito e com vista ao serviço da comunidade.
2019.12.22 – Louro de Carvalho

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