O Papa Francisco
recebeu, no dia 21, na Sala Clementina para as tradicionais felicitações de
Natal, os seus colaboradores mais próximos da Cúria Romana. Falou do Natal e
das mudanças na Cúria Romana.
Do Natal disse, entre outras coisas, citando um místico do
nosso tempo (o monge
egípcio do século XX, Matta el Meskin – Mateus, o pobre), que “o nascimento de Cristo é
o testemunho mais forte e eloquente de quanto Deus amou o homem”. Amou-o com um
amor pessoal. É por isso que tomou um corpo humano, ao qual Se uniu e assumiu
para sempre. “O nascimento de Cristo é, em si mesmo, uma “aliança de amor”
estipulada para sempre entre Deus e o homem”. E, pegando em palavras de
São Clemente de Alexandria, afirmou:
“Para isto Ele [Cristo] desceu; para isto Se revestiu de humanidade;
para isto sofreu voluntariamente o que padecem os homens, para que, depois de
Se ter confrontado com a nossa fraqueza que amou, pudesse em troca confrontar-nos
com a sua força.”.
Antes de
levar o discurso ao ponto que lhe está no coração, o Pontífice convidou os
presentes a sintonizarem-se numa convicção que lhe subjaz e o acompanha desde o
início do magistério pontifical, ou seja: a época atual “não é simplesmente uma
época de mudanças, mas é uma mudança de época”. E, acrescentando, que o
comportamento saudável é o de “se deixar interrogar pelos desafios do tempo
presente”, com discernimento e coragem, e não se deixar seduzir pela moda de
tudo mudar nem pela cómoda inércia de deixar tudo como é, observou:
“Muitas vezes vive-se uma mudança
limitando-se a vestir uma roupa nova, mas na realidade permanece-se como era
antes. Recordo a expressão enigmática que se lê num famoso romance italiano:
“Para que as coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude.” (O
Leopardo, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa).
Assim, deve
assumir-se a resposta ao desafio e vencer a inércia sem se deixar levar pela
onda apelante da moda, que pouco leva a mudar (só mudam as aparências).
Neste encontro
com a Cúria Romana para as felicitações natalinas de 2019, menos crítico do que
em anos anteriores, o Papa fala sobre as transformações em curso nas
instituições vaticanas, reiterando necessidades e objetivos dos novos dicastérios,
frisando que a mudança é para vencer rigidez e medos e anunciar melhor o
Evangelho para um mundo descristianizado.
Ora num mundo em contínua mudança, a Cúria Romana não
muda simplesmente para “seguir modas”. Na verdade, a Igreja vive o
desenvolvimento e o crescimento a partir da perspetiva de Deus e a história da
Bíblia é toda “um caminho marcado por começos e recomeços”. Era por isso que um
dos novos Santos, o Cardeal Newman, quando falava de “mudança” na realidade
queria dizer “conversão” e dizia do Natal:
“Este é o tempo da inocência, da
pureza, da mansidão, da alegria, da paz”.
A articulada
premissa do tema da reforma da Cúria Romana, no dizer do Bispo de Roma, “nunca
teve a presunção de fazer como se antes nada tivesse existido”, mas apostou no
contrário “em valorizar tudo o que foi feito de bom na complexa história da
Cúria”. É a evolução pertinente na continuidade da fidelidade (pois a
sadia tradição é garantia do futuro) que exige a
mudança de mentalidade e olhar, coração e escuta, atitude, métodos e técnicas
com vista a uma atividade mais centrada no essencial e acolhedora da liberdade
no acessório. É a conversão de fundo para a ação na visibilidade. E ensina o
Papa:
“É obrigatório valorizar a sua história [a
da Cúria] para construir um futuro que tenha bases sólidas, que tenha raízes e nos
possa levar a um futuro fecundo. Apelar-se à memória não quer dizer ancorar-se
na autoconservação, mas ‘reconvocar’ a vida e a vitalidade de um percurso em
contínuo desenvolvimento. A memória não é estática, é dinâmica. Por sua
natureza implica o movimento.”.
E Francisco
passa em revista “algumas novidades da organização curial, como a criação, no
final de 2017, da Terceira Seção da Secretaria de Estado (Secção para
os funcionários diplomatas da Santa Sé), juntamente
com outras mudanças nas “relações entre Cúria Romana e Igrejas particulares” e
na “estrutura de alguns Dicastérios, em particular o das Igrejas Orientais e
outros para o diálogo ecuménico e inter-religioso, nomeadamente com o
Judaísmo”. Mas foi principalmente a constatação – já evidente no tempo de São João
Paulo II e de Bento XVI – de um mundo que não é consciente do Evangelho como no
passado, a requerer profundas reestruturações de dicastérios históricos ou a
sugerir o nascimento de novos. Daí, como sabemos resultou a criação do
Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização.
Ao referir-se
à Congregação para a Doutrina da Fé (CDF) e à Congregação
para a Evangelização dos Povos (CEP), o Papa fala da evidência de que, quando estas congregações “foram
instituídas, era uma época na qual era mais simples distinguir entre dois divisores
definidos: de um lado, o mundo cristão; e, do outro, um mundo ainda a
evangelizar”. Hoje a situação não é essa. As populações que ainda não receberam
o anúncio do Evangelho não vivem apenas nos continentes não ocidentais, mas
estão em todos os lugares, especialmente nas grandes concentrações urbanas, as
quais requerem uma pastoral específica. Nas grandes cidades precisamos de
outros “mapas”, de outros paradigmas, que nos ajudem a reposicionar o nosso
modo de pensar e as nossas atitudes: não estamos mais na cristandade.
Por isso, a
remodelação operada e a operar nas instituições vaticanas resulta de um ímpeto
renovador que impulsione um renovado anúncio do Evangelho, em conformidade com
o que o Papa já tinha esclarecido na Evangelii
gaudium: costumes, estilos, horários e linguagem, tudo deve ser
“um canal adequado à evangelização do mundo atual, mais que à autopreservação”.
E a esta necessidade corresponde o nascimento do Dicastério para a Comunicação,
entidade que une 9 setores dos meios de comunicação do Vaticano que antes eram
separados entre si. Não são agora um simples “agrupamento coordenativo”, mas um
modo de “harmonizar” para “produzir uma melhor oferta de serviços” numa cultura
amplamente digitalizada”.
Considerando
que a nova cultura, marcada por fatores de convergência e multimedialidade,
exige resposta adequada por parte da Sé Apostólica a nível comunicacional (hoje, nos
serviços diversificados, prevalece a forma multimedial, o que marca o modo de os
criar, pensar e atuar), disse o
Papa que tudo isso implica, juntamente com a mudança cultural, uma conversão
institucional e pessoal para passar dum trabalho completamente isolado – que
nos casos melhores tinha alguma coordenação – a um trabalho conectado, em
sinergia.
Também o
Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral, criado para
tornar mais coerente e unitário o trabalho que estava dividido entre os
Pontifícios Conselho Justiça e Paz, Cor Unum, Pastoral dos Migrantes e Pastoral
no Campo da Saúde, precisou de reformulação. Diz o Santo Padre a este respeito:
“A Igreja é chamada a recordar a todos que
não se trata apenas de questões sociais ou migratórias, mas de pessoas humanas,
de irmãos e irmãs que hoje são o símbolo de todos os descartados da sociedade
globalizada. É chamada a testemunhar que para Deus ninguém é ‘estrangeiro’ ou
“excluído’. É chamada a despertar as consciências adormecidas na indiferença
diante da realidade do Mar Mediterrâneo que se tornou para muitos, demasiados,
um cemitério.”.
E aqui o Sumo Pontífice introduz um tema natalino ao
dizer que o Natal se torna presente nos mais pobres, evocando os
migrantes que perderam a vida a atravessar o Mediterrâneo, e apelar:
“Não nos esqueçamos que o Menino
deitado no presépio tem o rosto dos nossos irmãos e irmãs mais necessitados,
dos pobres que são os privilegiados deste mistério”.
Assim, entre
os “grandes desafios” e “necessários equilíbrios”, o que conta é que a Igreja,
a Cúria Romana por primeiro, olhe à humanidade na qual todos são “filhos de um
único Pai”. E Francisco não esconde a dificuldade de mudanças tão grandes, a
necessidade de gradualismo, “o erro humano”, com os quais “não é possível, nem
justo não considerar”, pois “a este difícil processo histórico está sempre
ligada a tentação de se fechar no passado” (mesmo usando novas formulações), porque é visto como mais garantido, conhecido e
menos conflitual. E vincou:
“Neste ponto é preciso colocar
em alerta a tentação de assumir um comportamento rígido. A rigidez nasce do
medo da mudança e termina por disseminar limites e obstáculos no terreno do bem
comum, fazendo com que se torne um campo minado de incomunicabilidade e de
ódio. Recordemos sempre que por trás de toda a rigidez jaz algum desequilíbrio.
A rigidez e o desequilíbrio alimentam-se mutuamente em círculo vicioso.”.
A concluir,
citou o Cardeal Carlo Maria Martini que afirmou pouco antes da sua morte:
“A Igreja ficou para trás 200 anos. Porque não se mexe? Temos medo? Medo
ao invés de coragem? De qualquer modo a fé é o fundamento da Igreja. A fé, a
confiança, a coragem. […] Só o amor vence o cansaço.”.
E frisou que o Natal é a festa do amor de Deus por nós. O amor divino que
inspira, dirige e corrige a mudança e vence o medo humano de deixar o “seguro”
para se lançar no “mistério”.
***
Não podemos esquecer que Francisco desejou
que a troca de votos natalícios seja uma oportunidade para acolher o mandamento
do amor, a Deus e ao próximo, precisando:
“Jesus não nos pede para O amarmos a
Ele em resposta ao seu amor por nós; mas, sim, para nos amarmos uns aos outros
com o seu próprio amor. Por outras palavras, pede-nos para sermos semelhantes a
Ele, porque Ele Se fez semelhante a nós.”.
Por
outro lado, reiterou a importância do caráter integral do
desenvolvimento referindo que São Paulo VI afirmou que “o desenvolvimento não
se reduz a um simples crescimento económico”, mas, “para ser autêntico, deve
ser integral, quer dizer, promover todos os homens e o homem todo” (vd Populorum Progressio, 14). Ou seja, a Igreja, enraizada na sua tradição de
fé e apelando-se nas últimas décadas ao magistério do Concílio Vaticano II, “sempre
afirmou a grandeza da vocação de todos os seres humanos, que Deus criou à sua
imagem e semelhança a fim de formarem uma única família; e, ao mesmo tempo,
procurou abraçar o humano em todas as suas dimensões”. E é esta exigência de
integralidade que hoje nos repropõe a humanidade que nos une como
filhos de um único Pai. “Em todo o seu ser e obrar, a Igreja está chamada a
promover o desenvolvimento integral do homem à luz do Evangelho” (vd Humanam Progressionem,17/12/2016, exórdio). O Evangelho não cessa
de trazer a Igreja à lógica da encarnação, segundo a qual Cristo que assumiu a
nossa história, a história de cada um de nós. Isto lembra-nos o Natal. Em suma,
a humanidade é a chave com que ler a reforma.
E,
recordando que, na preparação para o Natal, as pregações escutadas foram sobre
a Santa Mãe de Deus, pediu que rezassem todos a Ave Maria, que recitaram, e pronunciou a bênção. Depois,
deu como prenda dois livros. O primeiro é o “documento” que exarou para
o mês missionário extraordinário [outubro de 2019], aparecendo sob a forma de entrevista e
com o título Sem Ele nada podemos fazer. Inspirou-o uma frase que
dizia: “quando o missionário chega a um lugar, já está lá o Espírito Santo à
espera dele”. E o segundo é um retiro dado aos sacerdotes, há pouco tempo, pelo
Padre Luís Maria Epicoco: um retiro para os sacerdotes, Alguém por
modelo. E ofereceu-os para servirem a toda a comunidade.
Enfim,
um Papa que recebe críticas, que critica, que muda e que dá prendas, sempre
movido pelo Espírito e com vista ao serviço da comunidade.
2019.12.22 – Louro de Carvalho
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