No passado
dia 30 de novembro, no contexto do encerramento do congresso da ANMP (Associação
Nacional dos Municípios Portugueses),
o Primeiro-Ministro revelou que a
eleição das Comissões de Coordenação Desenvolvimento Regional (CCDR) avançará no início de 2020, “para criar no país a
confiança necessária para os passos seguintes”, nomeadamente a eleição direta
das Áreas Metropolitanas e a Regionalização.
Ora, se as
duas áreas metropolitanas (de Lisboa e do Porto) podem constituir um ensaio de regionalização, as CCDR não passam de
instâncias do poder central com atribuições em determinadas porções do
território nacional. E referir que os presidentes das CCDR (e
eventualmente os outros elementos das respetivas comissões) trazem uma real mais-valia à causa do poder regional
não passa de balela a desvirtuar o fundamento basal dum poder regional. Aliás,
a diferença entre a legitimidade do exercício por força da eleição e a do exercício
por força da nomeação não é significativa: os deputados são eleitos e os diretores-gerais
são nomeados e seria interessante discutir quem tem mais poder real. Os juízes também
são nomeados, não?! E as decisões dos tribunais prevalecem sobre as dos demais órgãos
de poder e administração…
Por outro
lado, o PS e a ANMP querem a regionalização, mas não entendem que se deva
começar por eleger presidentes das CCDR ou começar por estes excluindo os
conselhos executivos ou juntas das áreas metropolitanas – o que pouco acrescenta.
Com efeito, como lembrou Marques Mendes no seu comentário televisivo do passado
dia 1 de dezembro, o
que o agora Chefe do Governo anunciou no Congresso dos Municípios já existiu
nos tempos do Governo de Durão Barroso e foi António Costa, quando era Ministro
da Administração Interna no 1.º Governo de Sócrates, quem acabou com esse regime
de eleição. E daí não resultou
nada de útil ou de inútil para a regionalização.
Agora o
Primeiro-Ministro mudou de ideias ou, como não consegue resistir à pressão do
seu partido e da ANMP – esta quer a regionalização na agenda do debate político
e a maior parte dos intervenientes querem novo referendo – desculpa-se com a
posição do Presidente da República, manifestamente avesso à regionalização,
aduzindo que não é prudente entrar em conflito com este órgão de soberania nem
cavar a divisão na sociedade portuguesa.
É de recordar
que já em 1976 a Constituição da República Portuguesa (CRP) estabelecia a criação das regiões administrativas no
Continente (o que se mantém com as sucessivas leis de revisão) e que a sua instalação em concreto deve ocorrer em
simultâneo.
Porém, não
obstante a vigência da Lei-Quadro das Regiões
Administrativas, aprovada pela Lei n.º 56/91, de 13 de Agosto, Marcelo Rebelo de Sousa, quando era líder do PSD, tentou
travar o avanço do processo da regionalização com a exigência do referendo (que a Constituição
passara a viabilizar), por via
do qual a regionalização foi rejeitada em 1998. E Marques Mendes pensa que ressuscitar,
neste momento, a regionalização iria dividir ainda mais o país, numa altura em
que precisa de coesão “e não de mais divisões”. Mais, segundo o comentador, regionalizar
agora “seria um exercício de hipocrisia política”, pois, se não está consumada
a descentralização do Estado, será contraproducente fazer já a regionalização,
até porque seria uma oportunidade de ouro para “os populistas” ganharem terreno
com duas acusações: mais despesa para o Estado, e o Estado a criar mais cargos
políticos.
Não penso
que descentralização e regionalização se impliquem ou excluam. Ao invés, nunca
tivemos nem descentralização nem desconcentração. Temos mais poderes nos municípios,
poderes que lhes ficam bem caros e abrem a porta para “negócios”. Temos serviços
regionais, mas as orientações e as grandes decisões vêm de Lisboa e tudo o que
cheire a dinheiro é apresentado ao poder central e por este controlado e
avaliado, mesmo as ditas autonomias crescentes. A maior parte das vezes os
serviços regionais – serviços desconcentrados do poder central – não passam de
caixas de correio. E, em termos de descentralização, além da transferência controlada
de competências para municípios e até freguesias, temos a segunda experiência
de umas secretarias de Estado deslocadas de Lisboa para outras cidades, com mais
custos para deslocações, porque tudo ou quase continua a decidir-se presencialmente
em Lisboa, apesar do correio eletrónico e da videoconferência.
Depois, o
que os portugueses rejeitaram em referendo não foi a regionalização qua tali, mas o mapa proposto pelo Governo
de Guterres com 8 regiões, ao arrepio das já experimentadas CCDR. Por isso,
como o referendo não incidiu na organização presumivelmente herdeira da experiência
dos territórios abrangidos pelas 5 CCDR, um novo referendo já vem com atraso de
décadas, o que apenas se entende porque tanto o Presidente da República que
promulgou a Lei-Quadro das Regiões
Administrativas como o Primeiro-Ministro de então, que era o Presidente do
partido que suportava o Governo maioritário, se vieram a revelar contrários à regionalização,
sem justificações públicas convincentes. Um ainda disse que não sabíamos que os
distritos tinham tanto peso; e alegadamente outro teria balbuciado que não se
podia perder o Alentejo para o PCP.
No entanto,
Marques Mendes, como outros, lança uma virtuosa farpa aos autarcas, quando diz
que o facto de esta discussão ter surgido no seio dos próprios autarcas também
não é positivo, pois fazem surgir a ideia crescente e iníqua de quererem
regionalizar porque, tendo limitação de mandatos nas autarquias, quererão
alcançar outros lugares na administração pública.
***
O que estabelece a CRP sobre a natureza e eleição dos órgãos
das regiões administrativas?
Os
órgãos representativos da região administrativa são a assembleia regional e a
junta regional (art.º 259.º).
A assembleia regional é o órgão
deliberativo da região e é constituída por membros eleitos diretamente e
por membros, em número inferior ao daqueles, eleitos pelo sistema da
representação proporcional e o método da média mais alta de Hondt, pelo colégio
eleitoral formado pelos membros das assembleias municipais da mesma área
designados por eleição direta (art.º 260.º). A junta regional é o órgão executivo colegial da
região (art.º 261.º).
Junto
de cada região pode haver um representante do Governo, nomeado em Conselho de
Ministros, cuja competência se exerce igualmente junto das autarquias
existentes na área respectiva
(art.º 262.º).
E a Lei-Quadro
da Regionalização repete, no seu art.º 3.º, o teor do art.º 259.º da CRP e estabelece,
no seu art.º 10.º, que “junto de cada região
administrativa haverá um representante do Governo, designado por governador
civil regional”. Vai mais além que a CRP que diz que “pode haver” um
representante do Governo e não que “deve haver”.
O art.º 14.º
estabelece que “a eleição dos membros da assembleia regional diretamente
eleitos tem lugar na data da eleição dos titulares dos demais órgãos
autárquicos” e que “os membros das
assembleias regionais a eleger pelas assembleias municipais são eleitos, por
escrutínio secreto e em simultâneo, por um colégio eleitoral constituído pelos
membros das assembleias municipais da mesma área designados por eleição direita”.
Nos termos do art.º 22.º, “a assembleia regional é o órgão
deliberativo da região administrativa e é constituída por representantes das
assembleias municipais, em número de 15 ou 20, e por membros diretamente
eleitos pelos cidadãos recenseados na área da respetiva região, em número de 31
ou 41, consoante se trate de região com menos de 1,5 milhões de eleitores ou de
1,5 milhões e mais”. E “os membros da assembleia
regional são designados deputados regionais”. E, segundo o art.º 23.º, “o presidente da assembleia regional cessante
procederá à instalação da nova assembleia regional no prazo máximo de 30 dias”
a contar da data da eleição referida supra, “em ato público de verificação da regularidade formal dos mandatos”.
Quanto à junta regional, o art.º 26.º dispõe que “a junta regional é o órgão executivo da região administrativa,
constituído por um presidente e por vogais, em número de seis nas regiões com
1,5 milhões ou mais de eleitores e em número de quatro nas regiões restantes”,
competindo ao seu presidente “representar a região”. E o art.º 27.º estipula que “a eleição da junta regional é feita segundo
o sistema de representação maioritária, por escrutínio secreto e por listas
plurinominais, na primeira sessão da assembleia regional e de entre os seus
membros”, sendo que o presidente “é o primeiro elemento da lista mais votada”
e que os membros eleitos para a junta “ficam
com o mandato suspenso na assembleia regional”. Por conseguinte, nos termos
do art.º 28.º, “os deputados regionais
eleitos para a junta serão substituídos na assembleia enquanto durar a suspensão
pelo cidadão imediatamente a seguir na ordem da respetiva lista ou pertencente
ao mesmo partido, em caso de coligação, ou pelo respectivo substituto, se se
tratar de deputado eleito pelo colégio” referido no artigo 22º.
***
Como facilmente se vê, quem diz que estão agora a pôr o carro à frente dos
bois tem razão à face da CRP e da Lei-Quadro. Em 1.º lugar, importa levar a
referendo a matéria depois de ela ser amplamente debatida no Parlamento e nas
diversas instâncias da sociedade civil ou rever a Constituição com vista à
necessária agilização; depois, proceder às consultas às assembleias municipais
dos municípios abrangidos pelas futuras regiões, nomeadamente dos fronteiriços;
em 3.º lugar, convocar as eleições para as assembleias regionais nos termos da
lei; em 4.º lugar, proceder à sua instalação e fazer que elas elejam os membros
das juntas. Ora, querer eleger presidentes ou direções cuja existência dimana
do órgão deliberativo eleito regularmente e constituídos por elementos eleitos diretamente
pelas bases e por elementos eleitos indiretamente é subverter a economia da
democracia representativa e dotar os órgãos executivos dum poder que só lhes
pertence se for outorgado pelas assembleias. E é fazer gato-sapato da CRP e da
Lei.
Não me comove o facto de o Chefe de Estado não concordar com a regionalização,
pois, não lhe competindo legislar, sujeita-se ao veredicto parlamentar. E, se
lhe cabe vetar uma lei, também lhe cabe o dever de a promulgar se o Parlamento
a confirmar nos termos constitucionais.
E temo que os políticos não ousem fazer a regionalização que dizem querer
para desenvolver o país ou que a queiram fazer sem provocar o emagrecimento drástico
do aparelho central e aproveitem o ensejo para replicar em cinco ou mais centros
territoriais a gigantesca máquina do Estado central ou para criar mais cinco ou
mais açoteias de amigos e compadres, sobretudo se cansados do poder municipal e
paroquial. O país merece ser tratado a sério!
2019.12.03 – Louro de
Carvalho
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