Quem o afirma é Isabel Galriça Neto, médica e ex-deputada do CDS, em entrevista à Renascença e à Ecclesia publicada hoje, dia 20 de dezembro, falando da sua experiência
como profissional de saúde na área dos cuidados paliativos e equacionando a
relação com o sofrimento, as prioridades que devem anteceder qualquer debate
sobre a eutanásia e os perigos duma discussão “emocional” que ignore as
alternativas à morte medicamente assistida (provocada – diz), com pressão social sobre as pessoas em situação de
maior fragilidade.
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Não sabe dizer bem o que a levou a dedicar-se a
esta área dos cuidados paliativos, mas aponta para o caso dum avô seu que
precisava de ser tratado e ela não ter nada para lhe
oferecer. Por outro lado, conheceu, nessa altura, em Inglaterra, uma unidade de
cuidados paliativos e percebeu que “havia doentes que a medicina não curava,
mas que precisavam de outro tipo de respostas, e que a medicina e a saúde não
podiam deixar para trás”. Além disso, diz encarar a medicina “como área de
serviço, e de serviço ao outro”. E formula o seguinte enunciado, que deve fazer
pensar profissionais e doentes:
“A medicina congrega e combina muito bem a
questão da ciência e do rigor com o humanismo, e com valores como a compaixão.
Temos, de uma vez por todas, de acabar com esta ideia de que ser compassivo não
é ser bom médico, ou da menorização que se faz de valores como a compaixão e o
serviço, que estão na génese da medicina.”.
Evocando a sua hodierna experiência profissional numa unidade cuidados paliativos num dos
grandes hospitais privados de Lisboa, acautela a necessidade de
“clarificar de que é que falamos quando falamos de cuidados paliativos”.
Trata-se de “cuidados de saúde”, não de caridade nem de apoio social, mas de “uma
área de especialização”, como a dermatologia ou a gastrenterologia, “prestados
por uma equipa que se dedica a ajudar a viver – e não a ajudar a
morrer, como tantas vezes se diz – pessoas em situação de doença grave ou
incurável”. E avisa:
“Isso pode acontecer ao longo de meses ou
anos, não necessariamente à beira da morte. Os doentes são pessoas de todas as
idades, com cancro e sem cancro, com demências, com AVC, com o que nós chamamos
‘insuficiências de órgão’. O nosso alvo é a intervenção no sofrimento. A
fundadora desta área de especialização, a Cicely Saunders, dizia, no século XX,
que ‘intervimos no sofrimento’, e é isso que posso corroborar com milhares de
doentes apoiados para tornar esse sofrimento tolerável.”.
Frisa que “temos experiências de sofrimento na nossa
vida, não necessariamente ligadas à doença”, mas “o que ninguém quer é que o sofrimento se torne disruptivo e destrutivo”
– coisa que não existe nos cuidados paliativos. E esclarece que, embora os
paliativos não acabem com o sofrimento, eles “intervêm ativamente no
sofrimento, em muitos casos fazendo com que ele desapareça, noutros trazendo-o
para níveis toleráveis”.
Responde à objeção da perspetiva do paciente de que a
medicina é para curar e os paliativos fixam-se na linha do cuidar, assegurando
que o cuidar “é também um tratamento”. E avança:
“O objetivo da medicina, ao contrário do que
as pessoas tantas vezes dizem, não é curar todas as pessoas, e o século
XXI vai-nos trazer isso. Curiosamente ainda ontem li um artigo de um
especialista espanhol sobre a cronicidade das múltiplas doenças, o que chamamos
a multipatologia, que dizia que só iríamos reagir (à cronicidade) como em
relação à crise climática, quando as coisas nos caírem em cima,
sendo que muitas pessoas (…) têm escrito há décadas que é preciso olhar para
este problema da ‘não cura’. É isto que é a cronicidade, as pessoas vivem
mais tempo e com mais doenças crónicas.”.
Não chama a isto problema, mas realidade da vida que é
preciso encarar discutindo “soluções para esta situação das doenças que
não se curam”. E insiste em falar da finalidade da medicina:
“É bom lembrar que o fim da medicina é
acompanhar todos, quer se curem, quer não se curem. Infelizmente no século
XX, isso foi desvirtuado, porque se introduziram os antibióticos e achou-se que
o fim da medicina era curar todas as doenças, porque isso aconteceu em relação
a muitas doenças infetocontagiosas. Ora, isso não é verdade, o fim
da medicina é acompanhar todas as pessoas para que o seu sofrimento seja
mitigado. Se pudermos curar, tanto melhor. No século XXI estamos a ver que
muitas doenças não se curam, as pessoas convivem com elas durante um período
muito prolongado, e acontece sofrimento.”.
Contesta que, tendo a maior parte das pessoas dificuldade em lidar com a dor, se diga
que “os cuidados paliativos põem as pessoas adormecidas, tira-se a dor porque
adormecem”. Com efeito, como discorre, “a dor física, orgânica, é apenas
um dos múltiplos sintomas que as pessoas podem ter, e nem sequer é o mais frequente,
mas é de facto um daqueles que tem mais impacto em todos”. E aponta:
“Mas existe o cansaço, a falta de ar, a
insónia, as náuseas, portanto, quando se iguala ‘cuidados paliativos’ a ‘tratar
a dor’ isso revela algum tipo de omissão em relação à realidade. As pessoas não
sofrem só por problemas físicos, sofrem por várias perdas em várias dimensões,
sociais, espirituais – e há uma grande confusão entre espiritual e religioso.
Nós intervimos no sofrimento, não apenas na dor física. Para tratar a dor física,
de facto utilizamos muitos medicamentos, mas que não têm como objetivo pôr a
pessoa a dormir.”.
Fala de doentes tratados em cuidados paliativos a dar
entrevistas (e não os entrevistam drogados) e de
pessoas filmadas e entrevistadas 5 a 6 dias antes de falecer, pelo que “é falso
que as pessoas estejam adormecidas por causa do tratamento da dor”. Mas deve
ser dito, porque é verdade, que “a maioria de nós, quando morre, morre no
decurso de um processo de debilidade crescente, e esta debilidade não é sofrimento”;
é, antes, comparável “a um pavio de uma vela que vai diminuindo” e é
acompanhada da perda de capacidade funcional, não induzida, mas típica dum organismo
que está a desligar, fazendo-nos “perder a capacidade de interagir com o outro,
de engolir, de levantar e sair da cama”. “É a debilidade extrema”. E acusa:
“É lamentável que, às vezes por
desconhecimento, se diga que aquilo que os paliativos fazem é pôr as pessoas a
dormir. Isso é falso e desafio quem o diz, porque de facto não se pode
confundir qualquer efeito secundário de um regime terapêutico com esta
debilidade de que estou a falar, de as pessoas no fim da sua vida não
terem a mesma vitalidade e a mesma capacidade.”.
Depois, lamenta que isto que devia ser uma prioridade
não o seja. Não é necessariamente de falta de camas que se trata, mas “há
70% de portugueses que não têm acesso a cuidados paliativos”. Diz ser
desejável que sejam equipas domiciliárias, equipas na comunidade a prestar este
serviço, e também que haja camas obviamente. Interroga-se “se não é prioritário
investir mais, com empenho político maior, porque a escassez é grande, para que
as pessoas efetivamente tenham acesso a estes cuidados, e não trocar as
prioridades. E constata:
“O que estamos a ver é que existe uma
tamanha pressa, que se põe como prioridade política o debate naquilo que
supostamente até os seus defensores apresentam como medida de exceção”.
Ora, considerando que os paliativos são um direito
humano, um cuidado básico de saúde, chama a atenção para o equívoco de se pôr
em debate primeiro a medida de exceção frente ao que é um direito humano. E
lança o repto à sociedade civil:
“A própria sociedade tem de reclamar e tem
de se incomodar, e ser mais informada, porque há preconceito. É muito
interessante ver: as pessoas não querem estar em sofrimento, a gente diz e
explica que há cuidados paliativos, mas depois dizem ‘não, não, ainda é muito
cedo para ir para os cuidados paliativos’. Há este amor/ódio e esta
ambivalência que prejudica as pessoas.”.
Recusa que a dificuldade de acesso a estes cuidados
seja de ordem financeira ou que se trate de serviço público ou de serviço
privado, como recusa dizer que “privado é bom” e público é mau” e vice-versa,
pois “temos bons serviços públicos e bons serviços privados”. Para a entrevistada,
a questão é “geográfica” e “quase que de sorte”. E explica:
“A questão infelizmente (…) é de assimetria.
(…) Há distritos em que há uma escassez grande de resposta. E não se trata
essencialmente de questões financeiras, mas de questões geográficas e de se ter
a sorte de viver em determinados locais onde há acesso mais rápido. É muito
importante ter a noção de que aquilo que pode acontecer em alguns sítios
privados (…) tem que ver com o rácio de profissionais. É uma preocupação garantir o número de profissionais
que possa responder com qualidade, profissionais devidamente qualificados. (…)
Não é apenas criar camas, é sobretudo trazer profissionais que sejam
devidamente credibilizados e preparados. Não faz cuidados paliativos quem quer,
só quem pode e está capacitado.”.
Concede que “há mais médicos
a formarem-se como especialistas em cuidados paliativos” e que “esta é uma área
deficitária porque não há recursos, de todo, ou porque não há investimento nos
meios que já existem”. E, sendo certo que “tem havido
algum esforço por parte de algumas administrações (hospitalares) para formar pessoas”, diz que falham as “condições
para elas trabalharem”, porque “genericamente na saúde há falta, e nunca se
atribui a devida prioridade aos cuidados paliativos. Ora, “as pessoas têm
capacidades finitas, do ponto da resistência…”. Por exemplo, não podem estar a
fazer urgências e a prestar cuidados paliativos.
***
Não tendo a legalização da Eutanásia sido aprovada
na última legislatura, não compreende que se insista no tema tão rapidamente:
não está garantido o acesso aos cuidados de saúde; e, na campanha eleitoral, os
partidos, em geral (sobretudo PS e PSD), ou calaram o tema ou o
remeteram para a consciência dos deputados (não se vota nas consciências, mas em
programas).
Confrontada com três
projetos em vias de debate parlamentar – um do PS, outro do PAN e outro do BE –
refere que “são basicamente iguais àquilo que foi apresentado
anteriormente”, pelo que se trata de pressão política, pois “isto não
corresponde a nenhum repto ou necessidade social” mas “a um repto político de
um grupo de partidos que estão na Assembleia da República e que têm neste
momento uma determinada representação”. E a especialista pergunta pela pressa
quanto aos cuidados paliativos, aos cuidados de saúde de que precisa quem está
em sofrimento. E acusa avessa a eufemismos:
“Há uma agenda política que é o motor desta
pressa, e acho que isto não vai ao encontro das necessidades das pessoas,
porque, se é uma medida de excecionalidade, se não é para ser uma medida de
primeira linha, não se comprometem recursos humanos que podem estar afetos a
outras áreas com este tipo de atividades. É por isso que falamos de
legalização, porque os meios do Serviço Nacional de Saúde vão ser afetados. E
não é uma ‘despenalização’, como também suavemente se quer fazer passar.”.
Sobre uma eventual
legalização da eutanásia, diz que não
é disto que precisam os doentes, nem as suas famílias; e alvitra que, ao não
garantimos o básico e estarmos a dar uma medida destas, “de alguma forma
estamos a condicionar a liberdade das pessoas” e, por outro lado, “estamos a
criar a pressão social, porque as pessoas não têm outra alternativa”.
Diz que o debate se torna complexo por termos de
deixar o nível emotivo que lhe é inerente e apresentar argumentos com
racionalidade, dado o assunto ser tão delicado que, se não for com alguma
racionalidade, corre-se o risco de “tomar más decisões”. E insiste:
“A sociedade civil tem de se fazer ouvir, há
movimentos da sociedade civil que são representativos e que podem e devem fazer
ouvir a sua voz no sentido de estarem contra. A Igreja foi um dos movimentos, e
eu até estou bastante à vontade, enquanto crente, para dizer que este assunto
começa por não ser religioso. Coisa distinta é dizer que a Igreja não se pode
manifestar.”.
Considerando que a
legalização da eutanásia pode pôr em causa a relação de confiança médico-doente
e altera “o jogo social e a cultura, o
‘banho’ em que as coisas se inserem”, lembra a posição da Associação Médica
Mundial (AMM), referindo:
“Esta questão da relação médico-doente é
muito importante, e quando nós pomos (…) o ‘carro à frente dos bois’, aquilo
que estamos a fazer é a pressionar e a empurrar pessoas que muitas vezes não
têm outra escolha. Se eu estivesse num sofrimento atroz e não tivesse escolha,
poderia dizer ‘Podem-me eutanasiar, podem-me matar?’. Porque é disso que
estamos a falar, não é de morte assistida, é de morte provocada, que é muito
diferente. Morte assistida é o que nós temos com os cuidados paliativos,
portanto, estes branqueamentos, estes eufemismos não são clarificadores.”.
No atinente a eventual referendo, diz não ser “prioridade”,
sendo esta o debate com as forças vivas da sociedade, para o que “não
precisamos necessariamente de um referendo”.
***
Falou da presença em Portugal,
em março do próximo ano, do Presidente da AMM para participar nas jornadas a
organizar com a Pontifícia Academia da Vida e falar da relação médico/doente em
cuidados paliativos. E à questão dos entrevistadores se as jornadas podem ser “uma ajuda para o
debate interno em Portugal” respondeu:
“A Igreja apoia a ciência, o progresso e o
humanismo, e os cuidados paliativos são cuidados de saúde, baseados em ciência,
boa ciência. Portanto, a Igreja e os movimentos da Igreja o que estão a fazer
ao promoverem estas jornadas – que são científicas e para profissionais de
saúde, e também para agentes pastorais – é dizer: ‘nós estamos ao lado da boa
ciência, daquilo que consideramos que são os bons cuidados de saúde, para estas
pessoas’. O que a Igreja está a dizer é que quer que as pessoas não estejam em
sofrimento e recebam os cuidados que devem receber.”.
E, quanto à dimensão
espiritual dos cuidados paliativos, diz que estes bons cuidados, “que são intervenção no sofrimento, integram,
obviamente, uma intervenção na dimensão espiritual”. E, denunciando a “confusão
existente entre dimensão espiritual e dimensão religiosa”, explica:
“A dimensão espiritual é algo que cada
homem, crente ou não, tem. (…) Um não crente, um ateu, tem uma dimensão
espiritual. O que é que é esta dimensão espiritual? É aquilo que nos projeta
para o que está para além de nós, o que nos ultrapassa: a natureza, o belo, as
relações, e eventualmente uma dimensão religiosa que ocupa parte desta dimensão
espiritual. Mas espiritual e religioso não são necessariamente coincidentes.”.
Por isso, observa que o trabalhador em cuidados paliativos
tem de perceber como abordar a espiritualidade, sendo necessário treino para
ajudar as pessoas no “sentido da esperança, da promoção da dignidade”. E tudo isto
– diz – “faz parte da intervenção dos cuidados paliativos”. Na verdade, como
assegura, “os cuidados paliativos veem a pessoa como um todo, e estamos a falar
de cuidados centrados na pessoa”. Ora, se a pessoa sofre, tem que se ver em que
dimensões está a sofrer e proporcionar-lhe a ajuda adequada.
Não escondendo a sua condição
de católica, diz que esta a tem ajudado na vida, não porque tenha de constituir
um a bengalinha ou muleta e, por isso, se tornar mais fácil, mas porque é um apelo
constante e exigente. Homenageia os grandes doentes que têm sido os seus
exemplos e inspiradores. E, não acentuando a vertente de consolo, sublinha o
fator esperança, verificando:
“Muitos dos nossos doentes fazem travessias
onde parece que nada faz sentido, e nós, enquanto pessoas que os apoiamos,
queremos estar à altura, e sofremos muitas vezes as mesmas dúvidas, as mesmas
questões – onde está Deus quando existe esta travessia? Deus está lá, às vezes
não estamos a vislumbrar.”.
Tem sentido a mão de Deus, não se sentindo sozinha, e
diz que “a fé é um motor exigente que ajuda a encontrar sentido num percurso
difícil” e que é “um privilégio poder servir estas pessoas, poder ajudá-las
numa fase complicada”, pensando que “elas vêm a terminar os seus dias
tranquilamente, umas com fé, outras sem fé”. É – diz – “corolário da nossa fé,
conseguir ver no paciente outro Cristo, e isso às vezes é muito desafiante”,
sendo desafiante a pergunta: “Se eu
estivesse a tratar Cristo, o que é que eu lhe fazia?”. E o certo é que está
mesmo a tratar Cristo. Basta reler o capítulo 25 do Evangelho de Mateus para vermos
Cristo no outro.
***
Sem discutir aqui a (i)moralidade e a praticidade da eutanásia,
relevo a finalidade da medicina aqui tão bem equacionada, a abjuração dos
eufemismos em saúde e o apelo à definição de priorizações consoante a
relevância dos problemas. Poderia ter-se denunciado a mercantilização da saúde,
a coisificação/numeralização do paciente ou o império dum falso humanismo e dum
crónico facilitismo. Porém, o que foi dito espicaça a reflexão e deveria levar
a levar a políticas de saúde mais a sério. Contudo, enquanto a banca for a prioridade
dos decisores políticos…
A vida humana é tão enigmática que já vi pessoas a
respirar saúde e finarem-se de repente e doentes que julgava quase passado ao
Além e como que reviveram por longo tempo.
2019.12.20 – Louro de Carvalho
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