sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

“Ninguém deve estar em sofrimento destrutivo ou intolerável”


Quem o afirma é Isabel Galriça Neto, médica e ex-deputada do CDS, em entrevista à Renascença e à Ecclesia publicada hoje, dia 20 de dezembro, falando da sua experiência como profissional de saúde na área dos cuidados paliativos e equacionando a relação com o sofrimento, as prioridades que devem anteceder qualquer debate sobre a eutanásia e os perigos duma discussão “emocional” que ignore as alternativas à morte medicamente assistida (provocada – diz), com pressão social sobre as pessoas em situação de maior fragilidade.
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Não sabe dizer bem o que a levou a dedicar-se a esta área dos cuidados paliativos, mas aponta para o caso dum avô seu que precisava de ser tratado e ela não ter nada para lhe oferecer. Por outro lado, conheceu, nessa altura, em Inglaterra, uma unidade de cuidados paliativos e percebeu que “havia doentes que a medicina não curava, mas que precisavam de outro tipo de respostas, e que a medicina e a saúde não podiam deixar para trás”. Além disso, diz encarar a medicina “como área de serviço, e de serviço ao outro”. E formula o seguinte enunciado, que deve fazer pensar profissionais e doentes:
A medicina congrega e combina muito bem a questão da ciência e do rigor com o humanismo, e com valores como a compaixão. Temos, de uma vez por todas, de acabar com esta ideia de que ser compassivo não é ser bom médico, ou da menorização que se faz de valores como a compaixão e o serviço, que estão na génese da medicina.”.
Evocando a sua hodierna experiência profissional numa unidade cuidados paliativos num dos grandes hospitais privados de Lisboa, acautela a necessidade de “clarificar de que é que falamos quando falamos de cuidados paliativos”. Trata-se de “cuidados de saúde”, não de caridade nem de apoio social, mas de “uma área de especialização”, como a dermatologia ou a gastrenterologia, “prestados por uma equipa que se dedica a ajudar a viver – e não a ajudar a morrer, como tantas vezes se diz – pessoas em situação de doença grave ou incurável”. E avisa:
Isso pode acontecer ao longo de meses ou anos, não necessariamente à beira da morte. Os doentes são pessoas de todas as idades, com cancro e sem cancro, com demências, com AVC, com o que nós chamamos ‘insuficiências de órgão’. O nosso alvo é a intervenção no sofrimento. A fundadora desta área de especialização, a Cicely Saunders, dizia, no século XX, que ‘intervimos no sofrimento’, e é isso que posso corroborar com milhares de doentes apoiados para tornar esse sofrimento tolerável.”.
Frisa que “temos experiências de sofrimento na nossa vida, não necessariamente ligadas à doença”, mas “o que ninguém quer é que o sofrimento se torne disruptivo e destrutivo” – coisa que não existe nos cuidados paliativos. E esclarece que, embora os paliativos não acabem com o sofrimento, eles “intervêm ativamente no sofrimento, em muitos casos fazendo com que ele desapareça, noutros trazendo-o para níveis toleráveis”.
Responde à objeção da perspetiva do paciente de que a medicina é para curar e os paliativos fixam-se na linha do cuidar, assegurando que o cuidar “é também um tratamento”. E avança:
O objetivo da medicina, ao contrário do que as pessoas tantas vezes dizem, não é curar todas as pessoas, e o século XXI vai-nos trazer isso. Curiosamente ainda ontem li um artigo de um especialista espanhol sobre a cronicidade das múltiplas doenças, o que chamamos a multipatologia, que dizia que só iríamos reagir (à cronicidade) como em relação à crise climática, quando as coisas nos caírem em cima, sendo que muitas pessoas (…) têm escrito há décadas que é preciso olhar para este problema da ‘não cura’. É isto que é a cronicidade, as pessoas vivem mais tempo e com mais doenças crónicas.”.
Não chama a isto problema, mas realidade da vida que é preciso encarar discutindo “soluções para esta situação das doenças que não se curam”. E insiste em falar da finalidade da medicina:
É bom lembrar que o fim da medicina é acompanhar todos, quer se curem, quer não se curem. Infelizmente no século XX, isso foi desvirtuado, porque se introduziram os antibióticos e achou-se que o fim da medicina era curar todas as doenças, porque isso aconteceu em relação a muitas doenças infetocontagiosas. Ora, isso não é verdade, o fim da medicina é acompanhar todas as pessoas para que o seu sofrimento seja mitigado. Se pudermos curar, tanto melhor. No século XXI estamos a ver que muitas doenças não se curam, as pessoas convivem com elas durante um período muito prolongado, e acontece sofrimento.”.
Contesta que, tendo a maior parte das pessoas dificuldade em lidar com a dor, se diga que “os cuidados paliativos põem as pessoas adormecidas, tira-se a dor porque adormecem”. Com efeito, como discorre, “a dor física, orgânica, é apenas um dos múltiplos sintomas que as pessoas podem ter, e nem sequer é o mais frequente, mas é de facto um daqueles que tem mais impacto em todos”. E aponta: 
Mas existe o cansaço, a falta de ar, a insónia, as náuseas, portanto, quando se iguala ‘cuidados paliativos’ a ‘tratar a dor’ isso revela algum tipo de omissão em relação à realidade. As pessoas não sofrem só por problemas físicos, sofrem por várias perdas em várias dimensões, sociais, espirituais – e há uma grande confusão entre espiritual e religioso. Nós intervimos no sofrimento, não apenas na dor física. Para tratar a dor física, de facto utilizamos muitos medicamentos, mas que não têm como objetivo pôr a pessoa a dormir.”.
Fala de doentes tratados em cuidados paliativos a dar entrevistas (e não os entrevistam drogados) e de pessoas filmadas e entrevistadas 5 a 6 dias antes de falecer, pelo que “é falso que as pessoas estejam adormecidas por causa do tratamento da dor”. Mas deve ser dito, porque é verdade, que “a maioria de nós, quando morre, morre no decurso de um processo de debilidade crescente, e esta debilidade não é sofrimento”; é, antes, comparável “a um pavio de uma vela que vai diminuindo” e é acompanhada da perda de capacidade funcional, não induzida, mas típica dum organismo que está a desligar, fazendo-nos “perder a capacidade de interagir com o outro, de engolir, de levantar e sair da cama”. “É a debilidade extrema”. E acusa:
É lamentável que, às vezes por desconhecimento, se diga que aquilo que os paliativos fazem é pôr as pessoas a dormir. Isso é falso e desafio quem o diz, porque de facto não se pode confundir qualquer efeito secundário de um regime terapêutico com esta debilidade de que estou a falar, de as pessoas no fim da sua vida não terem a mesma vitalidade e a mesma capacidade.”.
Depois, lamenta que isto que devia ser uma prioridade não o seja. Não é necessariamente de falta de camas que se trata, mas “há 70% de portugueses que não têm acesso a cuidados paliativos”. Diz ser desejável que sejam equipas domiciliárias, equipas na comunidade a prestar este serviço, e também que haja camas obviamente. Interroga-se “se não é prioritário investir mais, com empenho político maior, porque a escassez é grande, para que as pessoas efetivamente tenham acesso a estes cuidados, e não trocar as prioridades. E constata:
O que estamos a ver é que existe uma tamanha pressa, que se põe como prioridade política o debate naquilo que supostamente até os seus defensores apresentam como medida de exceção”.
Ora, considerando que os paliativos são um direito humano, um cuidado básico de saúde, chama a atenção para o equívoco de se pôr em debate primeiro a medida de exceção frente ao que é um direito humano. E lança o repto à sociedade civil: 
A própria sociedade tem de reclamar e tem de se incomodar, e ser mais informada, porque há preconceito. É muito interessante ver: as pessoas não querem estar em sofrimento, a gente diz e explica que há cuidados paliativos, mas depois dizem ‘não, não, ainda é muito cedo para ir para os cuidados paliativos’. Há este amor/ódio e esta ambivalência que prejudica as pessoas.”.
Recusa que a dificuldade de acesso a estes cuidados seja de ordem financeira ou que se trate de serviço público ou de serviço privado, como recusa dizer que “privado é bom” e público é mau” e vice-versa, pois “temos bons serviços públicos e bons serviços privados”. Para a entrevistada, a questão é “geográfica” e “quase que de sorte”. E explica:
A questão infelizmente (…) é de assimetria. (…) Há distritos em que há uma escassez grande de resposta. E não se trata essencialmente de questões financeiras, mas de questões geográficas e de se ter a sorte de viver em determinados locais onde há acesso mais rápido. É muito importante ter a noção de que aquilo que pode acontecer em alguns sítios privados (…) tem que ver com o rácio de profissionais. É uma preocupação garantir o número de profissionais que possa responder com qualidade, profissionais devidamente qualificados. (…) Não é apenas criar camas, é sobretudo trazer profissionais que sejam devidamente credibilizados e preparados. Não faz cuidados paliativos quem quer, só quem pode e está capacitado.”. 
Concede que “há mais médicos a formarem-se como especialistas em cuidados paliativos” e que “esta é uma área deficitária porque não há recursos, de todo, ou porque não há investimento nos meios que já existem”. E, sendo certo que “tem havido algum esforço por parte de algumas administrações (hospitalares) para formar pessoas”, diz que falham as “condições para elas trabalharem”, porque “genericamente na saúde há falta, e nunca se atribui a devida prioridade aos cuidados paliativos. Ora, “as pessoas têm capacidades finitas, do ponto da resistência…”. Por exemplo, não podem estar a fazer urgências e a prestar cuidados paliativos.
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Não tendo a legalização da Eutanásia sido aprovada na última legislatura, não compreende que se insista no tema tão rapidamente: não está garantido o acesso aos cuidados de saúde; e, na campanha eleitoral, os partidos, em geral (sobretudo PS e PSD), ou calaram o tema ou o remeteram para a consciência dos deputados (não se vota nas consciências, mas em programas). 
Confrontada com três projetos em vias de debate parlamentar – um do PS, outro do PAN e outro do BE – refere que “são basicamente iguais àquilo que foi apresentado anteriormente”, pelo que se trata de pressão política, pois “isto não corresponde a nenhum repto ou necessidade social” mas “a um repto político de um grupo de partidos que estão na Assembleia da República e que têm neste momento uma determinada representação”. E a especialista pergunta pela pressa quanto aos cuidados paliativos, aos cuidados de saúde de que precisa quem está em sofrimento. E acusa avessa a eufemismos:
Há uma agenda política que é o motor desta pressa, e acho que isto não vai ao encontro das necessidades das pessoas, porque, se é uma medida de excecionalidade, se não é para ser uma medida de primeira linha, não se comprometem recursos humanos que podem estar afetos a outras áreas com este tipo de atividades. É por isso que falamos de legalização, porque os meios do Serviço Nacional de Saúde vão ser afetados. E não é uma ‘despenalização’, como também suavemente se quer fazer passar.”.
Sobre uma eventual legalização da eutanásia, diz que não é disto que precisam os doentes, nem as suas famílias; e alvitra que, ao não garantimos o básico e estarmos a dar uma medida destas, “de alguma forma estamos a condicionar a liberdade das pessoas” e, por outro lado, “estamos a criar a pressão social, porque as pessoas não têm outra alternativa”.
Diz que o debate se torna complexo por termos de deixar o nível emotivo que lhe é inerente e apresentar argumentos com racionalidade, dado o assunto ser tão delicado que, se não for com alguma racionalidade, corre-se o risco de “tomar más decisões”. E insiste:
A sociedade civil tem de se fazer ouvir, há movimentos da sociedade civil que são representativos e que podem e devem fazer ouvir a sua voz no sentido de estarem contra. A Igreja foi um dos movimentos, e eu até estou bastante à vontade, enquanto crente, para dizer que este assunto começa por não ser religioso. Coisa distinta é dizer que a Igreja não se pode manifestar.”.
Considerando que a legalização da eutanásia pode pôr em causa a relação de confiança médico-doente e altera “o jogo social e a cultura, o ‘banho’ em que as coisas se inserem”, lembra a posição da Associação Médica Mundial (AMM), referindo: 
Esta questão da relação médico-doente é muito importante, e quando nós pomos (…) o ‘carro à frente dos bois’, aquilo que estamos a fazer é a pressionar e a empurrar pessoas que muitas vezes não têm outra escolha. Se eu estivesse num sofrimento atroz e não tivesse escolha, poderia dizer ‘Podem-me eutanasiar, podem-me matar?’. Porque é disso que estamos a falar, não é de morte assistida, é de morte provocada, que é muito diferente. Morte assistida é o que nós temos com os cuidados paliativos, portanto, estes branqueamentos, estes eufemismos não são clarificadores.”.
No atinente a eventual referendo, diz não ser “prioridade”, sendo esta o debate com as forças vivas da sociedade, para o que “não precisamos necessariamente de um referendo”.
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Falou da presença em Portugal, em março do próximo ano, do Presidente da AMM para participar nas jornadas a organizar com a Pontifícia Academia da Vida e falar da relação médico/doente em cuidados paliativos. E à questão dos entrevistadores se as jornadas podem ser “uma ajuda para o debate interno em Portugalrespondeu:
A Igreja apoia a ciência, o progresso e o humanismo, e os cuidados paliativos são cuidados de saúde, baseados em ciência, boa ciência. Portanto, a Igreja e os movimentos da Igreja o que estão a fazer ao promoverem estas jornadas – que são científicas e para profissionais de saúde, e também para agentes pastorais – é dizer: ‘nós estamos ao lado da boa ciência, daquilo que consideramos que são os bons cuidados de saúde, para estas pessoas’. O que a Igreja está a dizer é que quer que as pessoas não estejam em sofrimento e recebam os cuidados que devem receber.”.
E, quanto à dimensão espiritual dos cuidados paliativos, diz que estes bons cuidados, “que são intervenção no sofrimento, integram, obviamente, uma intervenção na dimensão espiritual”. E, denunciando a “confusão existente entre dimensão espiritual e dimensão religiosa”, explica:
A dimensão espiritual é algo que cada homem, crente ou não, tem. (…) Um não crente, um ateu, tem uma dimensão espiritual. O que é que é esta dimensão espiritual? É aquilo que nos projeta para o que está para além de nós, o que nos ultrapassa: a natureza, o belo, as relações, e eventualmente uma dimensão religiosa que ocupa parte desta dimensão espiritual. Mas espiritual e religioso não são necessariamente coincidentes.”.
Por isso, observa que o trabalhador em cuidados paliativos tem de perceber como abordar a espiritualidade, sendo necessário treino para ajudar as pessoas no “sentido da esperança, da promoção da dignidade”. E tudo isto – diz – “faz parte da intervenção dos cuidados paliativos”. Na verdade, como assegura, “os cuidados paliativos veem a pessoa como um todo, e estamos a falar de cuidados centrados na pessoa”. Ora, se a pessoa sofre, tem que se ver em que dimensões está a sofrer e proporcionar-lhe a ajuda adequada.
Não escondendo a sua condição de católica, diz que esta a tem ajudado na vida, não porque tenha de constituir um a bengalinha ou muleta e, por isso, se tornar mais fácil, mas porque é um apelo constante e exigente. Homenageia os grandes doentes que têm sido os seus exemplos e inspiradores. E, não acentuando a vertente de consolo, sublinha o fator esperança, verificando:       
Muitos dos nossos doentes fazem travessias onde parece que nada faz sentido, e nós, enquanto pessoas que os apoiamos, queremos estar à altura, e sofremos muitas vezes as mesmas dúvidas, as mesmas questões – onde está Deus quando existe esta travessia? Deus está lá, às vezes não estamos a vislumbrar.”.
Tem sentido a mão de Deus, não se sentindo sozinha, e diz que “a fé é um motor exigente que ajuda a encontrar sentido num percurso difícil” e que é “um privilégio poder servir estas pessoas, poder ajudá-las numa fase complicada”, pensando que “elas vêm a terminar os seus dias tranquilamente, umas com fé, outras sem fé”. É – diz – “corolário da nossa fé, conseguir ver no paciente outro Cristo, e isso às vezes é muito desafiante”, sendo desafiante a pergunta: “Se eu estivesse a tratar Cristo, o que é que eu lhe fazia?”. E o certo é que está mesmo a tratar Cristo. Basta reler o capítulo 25 do Evangelho de Mateus para vermos Cristo no outro.
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Sem discutir aqui a (i)moralidade e a praticidade da eutanásia, relevo a finalidade da medicina aqui tão bem equacionada, a abjuração dos eufemismos em saúde e o apelo à definição de priorizações consoante a relevância dos problemas. Poderia ter-se denunciado a mercantilização da saúde, a coisificação/numeralização do paciente ou o império dum falso humanismo e dum crónico facilitismo. Porém, o que foi dito espicaça a reflexão e deveria levar a levar a políticas de saúde mais a sério. Contudo, enquanto a banca for a prioridade dos decisores políticos…
A vida humana é tão enigmática que já vi pessoas a respirar saúde e finarem-se de repente e doentes que julgava quase passado ao Além e como que reviveram por longo tempo.
2019.12.20 – Louro de Carvalho

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