Por
este andar está longe de se acabar com o folhetim da CGD (Caixa
Geral de Depósitos),
que Jerónimo de Sousa pretende que cesse. No entanto, Marques Mendes tem-se
mostrado militante exímio na sua sustentação. Isto parece indicar que quem
marca a agenda política no país nem é a governação nem a oposição, entendida esta
em termos formais clássicos. A agenda é marcada por eminências pardas
travestidas de franco-atiradores.
É
óbvio que a política faz-se com opções e os seus resultados espelham-se não
propriamente na realidade, mas na perceção, por vezes equívoca que se tem da
realidade.
***
Quanto
às opções e no atinente à CGD, a uma opção não concretizada da sua privatização
– opção não consensual em todos os componentes da ala ideológica que a defendia
e defende, pelo que não se concretizou – sucedeu uma opção de manutenção do
banco público. Para isto, foi necessário negociar a viabilização da sua
capitalização com o BCE (Banco Central Europeu) e com a Direção-Geral da
Concorrência da Comissão Europeia, bem como a aproximação da administração da CGD
ao perfil da banca privada, designadamente em termos de a sua comissão
executiva ser profissionalizada. Mas os partidários da privatização não
desarmam e arrastam consigo na crítica outros que se veem a criticar a postura
governamental por motivos diferentes.
É
normal que os convidados para integrarem a administração tenham evidenciado
pretensões como é percetível que o acionista Estado, através do competente membro
do Governo, tenha manifestado a vontade de aceitar as condições, desde que isso
se tornasse possível e vantajoso para ambas as partes.
É
discutível se as pretensões dos gestores deveriam ter sido aceites até ao ponto
de uma lei ou um decreto-lei poder vir a retirá-los do estatuto de gestor
público. Porém, ou por pressão de Domingues ou por pressão dos consultores jurídicos
badalados ou por iniciativa do Governo, o Conselho de Ministros aprovou o DL
n.º 39/2016, de 28 de julho, que o Presidente promulgou, que Santos Silva
referendou e o Diário da República publicou.
Em
vez de pensar como Marques Mendes, que o Governo andou a jogar com o tempo
entre a aprovação e a publicação do normativo para impedir que os deputados o conhecessem
e tivessem a possibilidade de suscitar a sua apreciação parlamentar, penso que
houve mais que tempo para Marcelo e depois Santos Silva ponderarem sobre a
eventual malícia do decreto e arrepiarem caminho, se necessário. A justificação
de Costa sobre as negociações em curso com as instâncias europeias, se
verdadeira, é descabida neste momento, pois deveria ter sido apresentada quando
a polémica eclodiu e não em resposta a um comentador ambicioso.
Porém,
Marques Mendes esqueceu-se de referir que o decreto-lei foi objeto de
apreciação parlamentar, embora sem efeitos palpáveis porque o tempo foi
ultrapassando a situação. Por isso, António Costa tem razão em vir agora dizer
que o DL foi apreciado do Parlamento.
Marcelo
Rebelo de Sousa veio com a sua declaração ex
catedra insuflar mais vento na fogueira. E custa-me a acreditar que tivesse
razão. Alega o Presidente que o teor do DL não significa que que os administradores
da CGD estejam desobrigados da apresentação da respetiva declaração de
rendimentos e de património junto do TC (Tribunal Constitucional), pois o normativo não revogou a
Lei n.º 4/83, de 2 de abril, cuja alteração mais recente foi operada pela Lei
n.º 38/2010, de 2 de setembro. E disse que, se persistissem dúvidas ou se o TC
tivesse outra interpretação, o próprio Parlamento poderia proceder ao seu esclarecimento
por via legislativa.
Do
meu ponto de vista, a dita lei mantém-se em vigor para todos os que fazem parte
do universo dos seus destinatários. Porém, se uma lei ou diploma com o mesmo
valor, vem eliminar alguém desse universo, a esse “alguém” deixa de se aplicar
a lei.
Ora,
segundo o n.º 2 do artigo 112.º da nossa CRP, têm igual valor as leis e os
decretos-leis, a não ser que estes versem matérias de reserva relativa de
competência da Assembleia da República ou sejam diplomas de desenvolvimento das
bases de regimes jurídicos – caso em que terão de se subordinar aos parâmetros
das leis de autorização ou das respetivas leis de bases. Não é o caso do estatuto
de gestor público que se enquadra na alínea b) do n.º 1 do artigo 198.º da CRP
que estabelece como competência legislativa do Governo “fazer decretos-leis em matérias não reservadas à Assembleia da
República”.
À
boleia do Presidente – uns por uns motivos, outros por outros – foram os partidos
e o Tribunal Constitucional, que ainda não tinha sido “estimulado”.
***
No
respeitante às perceções em que efetivamente se estribam os resultados
políticos, o cortejo engrossou a tal ponto que não sei se a habilidade de António
Costa resistirá.
Obviamente
que se percebeu que entre Centeno e Domingues, com a cumplicidade tácita ou
explícita do Primeiro-Ministro, se estabeleceu um acordo de cavalheiros.
Todavia, estes acordos de cavalheiros valem o que valem e a sua validade cessa
perante a impossibilidade de cumprimento, natural ou artificiosa. Tanta promessa
não cumprida e vota-se no promitente!
Domingues
e os seus confrades de ocasião estavam no seu direito de se sujeitarem ou não às
novas condições. Insistiram até às últimas na negativa ou na afirmativa condicional
da entrega das declarações, quando já tinham contra si as instituições e a
opinião pública.
O
TC, talvez em obediência ao superior interesse da credibilidade nacional (lido
na letra da Lei n.º 4/83, de 2 de abril, na sua redação atual, mandando à
malvas o DL n.º 39/2016, de 28 de julho, contestado unanimemente) urgiu a entrega das declarações
de rendimentos e de património referentes à situação existente à data da
assunção de funções e a mesma, igual ou alterada, referente à data do abandono
de funções.
No
âmbito da questão da obrigação declarativa, Domingues fez mal em remar contra a
perceção instalada e vir a destempo falar em eventual correspondência enviada
ao Ministério das Finanças a provar que houve um acordo. Na verdade, por mais
que o ceticismo queira instalar-se em sentido contrário, o acordo só é válido desde
que reduzido a escrito e subscrito pelas partes interessadas e por forma a
fazer fé. Não vale a pena falar em notários ou coisa parecida ao tratar-se de
caso em que, pelo menos, uma das partes é uma entidade pública.
Acredito
que Centeno tenha sofrido de alguma ambiguidade quando foi ouvido no Parlamento.
Não penso que se possa dizer que mentiu no sentido técnico. Pode faltar-se à
verdade por ignorância, erro, medo, distração, pudor e para contradizer a
verdade com a intenção de enganar (só no último caso é que
há mentira). Terá o
governante contornado a verdade, porém, não com intenção de enganar aquele órgão
de soberania, até porque não podia dar testemunho de um acordo que, do ponto de
vista formal, não existe. Quanto à intenção de aceder ao pedido de Domingues e companheiros,
só deputados hipócritas é que não a perceberam, que decorre do teor do
famigerado decreto-lei, sobretudo do plasmado no seu texto preambular.
Depois,
só acusou de mentira o Governo e Centeno quem efetivamente incorreu em erros
parecidos de contorno da verdade. Por outro lado, quem se colocou indefectivelmente
ao lado do Governo já se esqueceu de como atuais governantes funcionavam quando
estavam no terreno da oposição. E tão estapafúrdia, a meu ver, é a acusação de
que Centeno cometeu perjúrio (que só acontece quando se fazem
declarações categoricamente contra a verdade no contexto de ajuramentado) como a vitimização do Ministro por
alegadamente ter sido alvo de ataque de caráter.
A
demissão de ministros em situações destas está longe de ser a solução dos problemas.
E Costa, se acha que Centeno lhe é imprescindível para a governação, não tem
como não lhe manifestar explicitamente a confiança, embora todos percebam que o
combate político qua tali não é a praia
do atual Ministro das Finanças. Mas também Gaspar, Teixeira dos Santos, Bagão
Félix ou Campos e Cunha não se moviam bem nas águas da política pura. E talvez
por isso, por falta de tempo ou de habilidade, não levaram a carta a Garcia.
***
Finalmente,
Centeno veio explicar-se ao país, pelos vistos por indicação do Presidente da
República, que disse publicamente que, se não há qualquer acordo escrito de compromisso
do Ministro, acredita que o Primeiro-Ministro tem razão na confiança que protesta
no governante, não obstante as críticas que sofre da parte da área política
donde provém.
Marcelo terá comunicado ao Primeiro-Ministro (ausente do país) que queria falar com Centeno. E este
pediu audiência ao PR, tendo a conversa a dois durado cerca de meia hora e o
Presidente defendido a conveniência de o Ministro falar ao país quanto antes. Marcelo
sustentava que o governante não podia manter-se calado enquanto de vários
quadrantes políticos é acusado de estar a mentir sobre o alegado acordo com o
ex-presidente da CGD. Por outro lado, depois de ter dado cobertura pública a
Centeno, entendia que teria de ser o próprio ministro a dar a cara.
O Primeiro-Ministro reiterou, de imediato, total
confiança no titular da pasta das Finanças e disse estar a fazê-lo depois de
ter falado com o Chefe de Estado.
Por sua vez, Mário Centeno referiu-se ao Presidente na
conferência de imprensa que deu na tarde de hoje e garantiu nunca ter acordado
com Domingues que este ficaria isento de declarar o património, embora admitindo
terem falado informalmente sobre o assunto. Porém, veio com a afirmação estafada
de que tinha colocado o lugar à disposição do Primeiro-Ministro. Ora, é normal
em termos constitucionais os lugares dos membros do Governo estarem sempre à
disposição do Chefe do Governo, cabendo àqueles apresentar o pedido de demissão
e a este aceitar esse pedido e até promover a exoneração deles.
Marcelo, entretanto, parece achar uma loucura
pretender a queda do ministro quando Portugal se prepara para sair dos défices
excessivos e está a consolidar o sistema bancário – o que não quer dizer que o
Presidente não tenha fixado algumas raias a não ultrapassar.
Aos que (no PSD) o acusam de colaborar em demasia com o
Governo, Marcelo diz que não é presidente “de um partido ou sindicato, mas de
todos os portugueses”.
Será
que o Presidente, com a indução a que Centeno falasse aos portugueses,
conseguiu que o caso CGD fique travado e o folhetim CGD tenha o ponto final sugerido
por Jerónimo?
2017.02.13 – Louro de Carvalho
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