Em seu artigo “Católicos
por defeito”, publicado no Diário de
Notícias de hoje, dia 6 de fevereiro, a jornalista Fernanda Câncio
insurge-se contra a Igreja Católica pela demasiada visibilidade de sacerdotes
nos escaninhos da vida pública, designadamente nos sítios onde se discutem
questões éticas.
Porém, começa mal, a meu ver, ao invocar matéria legislativa
e regulamentar cuja solução está mais que ultrapassada. Diz a jornalista, do
alto da sua sabedoria catedrática, que “o Tribunal Constitucional (TC) já declarou por duas vezes a inconstitucionalidade do caráter
obrigatório da disciplina de Religião e Moral católica nas escolas públicas” e
que o fizera em 1987 e em 2014, a propósito de diploma do Governo Regional da
Madeira que, à semelhança do Governo da República em 1983, “assumia o silêncio
dos encarregados de educação como aquiescência em relação às aulas daquela
disciplina”. Era – diz a jornalista – a obrigatoriedade “por defeito”.
Não precisava a jornalista de vir lembrar o caráter laico do
Estado, já que ela tem desse uma noção altamente ultrapassada, pois não descortina
que a secularidade que exorna o Estado moderno, democrático e social, não é
incompatível com a aceitação das prerrogativas que a sociedade, que é como é,
tem direito a exigir do Estado e com a obrigação deste em apoiar as iniciativas
da sociedade civil e dos cidadãos, sob pena de o todo-poderoso Estado não poder
com legitimidade obrigar ao cumprimento dos deveres para com o Estado tutelar,
nomeadamente nas dimensões fiscal e profilática. É bem diferente o
proselitismo, vedado ao Estado, da tolerância que o Estado se deve impor a si
próprio na relação com outrem.
Nesse aspeto, que está arrumado, da disciplina de Educação
Moral Religiosa nas escolas públicas, é preciso esclarecer a diferença entre a
obrigatoriedade da oferta pela escola – por força da concordata, para a Igreja
Católica, e para as outras Confissões por força da lei da liberdade religiosa,
em boa hora discutida, aprovada, promulgada e publicada – e a liberdade da sua
frequência por parte dos alunos. E aqui eu também não gosto do aproveitamento
do silêncio. Uma opção tem de ser declarada pela positiva e não por omissão.
Em todo o caso, devo lembrar à jornalista que a declaração de
inconstitucionalidade por parte do TC tinha a ver sobretudo com um vício de
inconstitucionalidade orgânica, já que a matéria de direitos, liberdades e
garantias é reserva relativa de competência da Assembleia da República, sendo
que um governo para legislar sobre tais matérias tem de se munir duma
autorização legislativa, que lhe define os contornos de atuação.
Depois, Fernanda Câncio, além de farpar os governos, parece comprazer-se
em farpar quem alegadamente “na Igreja Católica pugnou para que assim fosse”. E
atribui tal pugna à “vontade de dominar e evangelizar”, à “sua deliberação de
impor”. E cai no disparate de achar a Igreja Católica insegura, de mensagem
autossuficiente, avessa à liberdade, “sem respeito pelos princípios basilares
do regime democrático laico” ou “sobre a falta de ética da instituição”.
Primeiro, toma a nuvem por Juno, como se falhas de alguns operadores da Igreja
representassem falta de ética da instituição, com o que acompanha esse
pressuposto. A propósito, quero dizer que me recuso a avaliar o jornalismo com
a bitola do perfil de Fernanda Câncio. Ademais, bem poderia a jornalista evitar
a hipótese de a Igreja vir a precisar de tentar enfiar a sua mensagem “pela
goela das crianças”. Poupe-se e poupe-nos ao menos na linguagem!
***
É óbvio que este discurso da jornalista pretendia chegar
aonde chegou: à eutanásia.
A este propósito, começa por dizer:
“De cada
vez que cá se discute algo que se considera fazer parte do domínio da ética ou
das ‘escolhas morais’ lá aparecem os representantes da Igreja Católica a
perorar. Não é, note-se, que estas pessoas e esta organização não tenham todo o
direito de falar sobre o que lhes aprouver. Mas a ideia de que têm de ter lugar
cativo, de cátedra, em todas as questões vistas como ‘éticas’ não faz qualquer
sentido.”.
Vá lá. Por favor, reconhece “o direito de falar sobre o que
lhes aprouver”, mas tira-lhes espaço público. Não pensa a jornalista que o
principal dever e função do jornalista é informar, reportar, ouvir, olhar, dar
a palavra para que a informação seja o mais objetiva, isenta, imparcial e
verdadeira possível. Como é que a jornalista se contenta com o discurso ex cátedra e defende o seu lugar com
unhas e dentes? Porque não me dá a mim um oitavo de página no DN? O espaço de liberdade, o pluralismo só
funciona para alguns?
Ora, a eutanásia, como outros aspetos fraturantes na
sociedade, é um problema ético e não somente visto como ético (Tire lá as aspas, que só estorvam!), visto que tende a intervir nos
costumes.
Por outro lado, critica o facto de haver um padre metido nas
escolhas editoriais dos media e quejandas e nos organismos estatais (sic) “com a responsabilidade de dar pareceres sobre questões de
ética, como o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida”, que “têm,
não raro, não só representantes da ‘sensibilidade católica’, mas também
sacerdotes residentes”.
A isto, devo contrapor duas coisas. Primeiro, estes conselhos
nacionais não são organismos estatais, já que são constituídos por
representantes das forças vivas da sociedade para possibilitar o debate
enriquecedor. Será que o Conselho de Concertação Social, com representantes de
patrões e de trabalhadores é um organismo estatal? Vê Fernanda Câncio algum
padre no Conselho de Estado, no Conselho de Defesa Nacional, no Conselho
Superior de Magistratura, no TC e no TdC? Segundo, embora a Igreja seja
constituída por todos os batizados, é natural que a sua representação caiba,
muitas vezes, a sacerdotes, tal como as forças armadas, por exemplo, são
habitualmente representadas pelos chefes militares, pelos presidentes das
associações ou por indivíduos devidamente credenciados. Além disso, há
sacerdotes que se notabilizaram em setores da ciência e da atividade – facto
que lhes deu visibilidade. Devem ser impedidos por motivos religiosos, ao
arrepio da Constituição?
Quanto às comissões de ética nos hospitais, a jornalista, que
perceberá de jornalismo, não percebe de acompanhamento de pessoas em situação
de fragilidade e carência. Com quem pretende “zelar pela observância de padrões
de ética no exercício das ciências médicas, por forma a proteger e garantir a
dignidade e a integridade humanas, procedendo à análise e reflexão sobre temas
da prática médica que envolvam questões de ética? Não digo que o sacerdote
católico ou outros tenham de ter uma palavra condicionante, mas devem ter o
poder da palavra como outros agentes sociais e profissionais: médicos, psicólogos,
juristas, servidores sociais, antropólogos, etc.
Aqui recordo-me do lamento de Daniel Serrão quando dizia que
muitos (sobretudo
políticos e religiosos)
se querem apoderar da ética nas diversas matérias e situações. Porém, Deus nos
livre que ela fique no exclusivo de jornalistas ou de políticos!
No atinente à eutanásia, há uma coisa em que concordo com a
jornalista. Não pode a discussão ser condicionada ao tempo da vinda do Papa,
nem é o facto de a discussão ser feita antes ou depois que incomodará Sua
Santidade. Quanto ao mais, tenho que dizer que os sacerdotes têm de declarar
que não desistem das pessoas. Isto não significa impor uma visão. Também não
creio que Câncio me queira condicionar com o seu discurso opinativo.
Além disso, algumas das ideias que suportam o debate sobre
eutanásia são discutíveis. Primeiro, quem diz que a Constituição consagra o
direito a vida, mas não o dever, pode não ter razão. Com efeito, o n.º 1 do
artigo 24.º da CRP diz que “a vida humana é inviolável” (sic). Isto quer dizer que não pode violar a minha vida a
autoridade, o agressor, o próximo nem eu próprio. É o direito-dever, que é
diferente de outros direitos em que a minha prerrogativa de os exercer acarreta
o dever de outrem de os respeitar, não os impedindo, e obriga o Estado a
protegê-los.
É também discutível se a pessoa é senhora da sua vida, da sua
morte e do seu corpo ou se a sua vontade incide em absoluto sobre estes campos.
Por outro lado, é de questionar se a vontade pode ser devidamente informada e
deliberar com liberdade em situação de fragilidade.
E o que é morrer com dignidade? Prolongar a vida
artificialmente não o é certamente. E sê-lo-á fazendo-a terminar em nome duma
qualidade de vida que não se tem? Não cabe aos operadores de saúde explorar os
diversos meios de apoio à vida (enquanto há vida, há esperança) e motivar os familiares e amigos para o acompanhamento do
doente a quem falta a esperança e cuja decisão, alegadamente livre, pode
resultar do facto de não querer dar trabalho aos outros, ser um estorvo a familiares,
condicionar a vida dos demais.
Importa dizer que não prolongar a vida artificialmente não é eutanásia.
Esta acontece quando alguém, a pedido, opera o termo da vida de alguém ou
coopera nessa tarefa.
Obviamente que os formadores religiosos não se podem alhear
desta problemática. E cabe ao poder político, antes de eventualmente legislar,
promover o debate e ouvi-lo. E, se fizer lei, deverá zelar para que ela não se
transforme em arma económica ou psicossocial e deve promover o respeito pela
objeção de consciência.
Creio que, nesta matéria, ninguém pode falar ex catedra. Podem e devem, no caso, a
Igrejas estabelecer as bases de orientação e promover ao máximo a formação das
consciências.
E, mesmo a questão do referendamento ou não da matéria
levanta problemas. Os iluminados têm medo do referendo; os defensores do
referendo não atentam na índole limitada da pergunta ou perguntas a referendar.
É de anotar que, mesmo que a CRP não acautelasse o problema
como acautela, ele não deixava, por isso, de ser pertinente. A ética ultrapassa
a própria constitucionalidade.
Por fim, não se pode passar um atestado de menoridade às
pessoas como se não tivessem o discernimento e autonomia necessários para
decidir com independência, estando esmagadas
pela mão dominadora e maléfica da Igreja Católica ou das outras religiões.
Tanto assim não é que no último referendo sobre o aborto o “sim” a favor da
despenalização ganhou.
Aliás, não faltam no país e no mundo cérebros condicionadores
da liberdade das pessoas. Olhe-se para a publicidade, para as telenovelas e
para a moda. E os negócios com a saúde e com a educação e amparo das
criancinhas?
2017.02.06 –
Louro de Carvalho
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