quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Se fosse hoje em Portugal, o Bom Samaritano seria julgado

Muitas vezes e de muitos modos se lê, proclama e medita a parábola do Bom Samaritano vertida para o Evangelho de Lucas (Lc 10,29-37), que explana o sentido da palavra “próximo”, a pedido do doutor da Lei que interpelara Jesus, para o experimentar, sobre o que deveria fazer para possuir a vida eterna.
À dupla pergunta interpelativa do Mestre sobre o que diz a Lei e como é que o doutor a estava a ler, este sentiu que foi “por lã” e ia a sair “tosquiado”. Com efeito, quando respondeu, “Amarás ao Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todas as tuas forças e com todo o teu entendimento, e ao teu próximo como a ti mesmo”, Jesus retorquiu: “Respondeste bem; faz isso e viverás”. (cf Lc 10,25-27).
A resposta de Jesus comporta uma aprovação e uma ordem. Porém, o doutor da Lei não desarmou e, querendo justificar-se, perguntou insidiosamente: “E quem é o meu próximo?”. 
E Jesus, com a paciência divina e a pedagogia de grande mestre, tomou a palavra:
“Um homem que descia de Jerusalém para Jericó caiu nas mãos dos salteadores que, depois de o despojarem e encherem de pancadas, o abandonaram, deixando-o meio morto. Por acaso, descia pelo caminho um sacerdote que, vendo-o, passou ao largo. Passou também um levita e, ao vê-lo, seguiu adiante. Mas um samaritano, que ia de viagem, chegou-se ao pé dele e, vendo-o, encheu-se de compaixão, aproximou-se, ligou-lhe as feridas, deitando nelas azeite e vinho, colocou-o sobre a sua própria montada, levou-o para uma estalagem e cuidou dele. No dia seguinte, deu ao estalajadeiro dois denários, dizendo: ‘Trata bem dele e o que gastares a mais pagar-to-ei quando voltar.’ Qual destes três te parece ter sido o próximo daquele homem que caiu nas mãos dos salteadores?”.
O doutor da Lei não teve fuga e respondeu: “O que usou de misericórdia para com ele”. Jesus então sentenciou: “Vai e faz tu também o mesmo”.
Temos enfatizado a postura condoída do samaritano (estrangeiro e de má nota entre os judeus) com sentimentos de compaixão e proximidade, assumindo uma postura de intervenção e ação e a envolver os outros (nomeadamente o estalajadeiro) no cuidado para com aqueles que estão feridos e abandonados na valeta da estrada. Este samaritano é, a todos os títulos, parecido com Jesus e é uma prefiguração evangélica do ministro da Igreja que leva para a estalagem mais próxima (ressalta aqui a ideia vicentina da Igreja como a divinal estalajadeira) em que pontifica o estalajadeiro.
E Jesus, no seu enunciado-resposta, não esclarece “quem é o meu próximo”, mas se eu sou ou não próximo de quem precisa – invertendo assim a questão do interpelante doutor.
Doutra guisa temos atirado as nossas pedras ao sacerdote e ao levita por excessivamente preocupados com a contaminação com sangue de estranhos, a priorização do serviço do Templo e a não observância da Lei, que mandava priorizar o cuidados dos desvalidos e abandonados, afastando-se da suspeita de agressão, do sangue derramado e não querendo ver o óbvio.
***
Se o caso acontecesse atualmente em Portugal, a apreciação e as consequências seriam bem diferentes e estranhas – alegadamente próximas da ciências e distantes dos homens.
O sacerdote e o levita tinham que acorrer ao Templo: era lá que tinham que fazer o seu trabalho. Padres e sacristães não têm de se meter na vida das pessoas: não sabem, não estão preparados, não é essa a sua função. Porém, alguns pensam que, se não se metem, são inúteis e parasitas.
O samaritano foi imprudente porque, não tendo credenciais académicas e profissionais, tratou o sinistrado de forma empírica, movido pela curiosidade. Podia ter acabado por matar ou inutilizar para sempre o homem semimorto. Aliás, tratar as feridas com azeite e vinho era a coisa mais abstrusa de que podia lançar mão e nem utilizou compressas feitas de material esterilizado. Ademais, sem se preocupar com a maneira como pegar no ferido e sem chamar o socorro – ambulância, médicos e enfermeiros – atirou desajeitadamente com o indefeso para cima da montada transportando-o como se fosse um borrego.
O estalajadeiro provavelmente não tinha promovido a vistoria do seu estabelecimento, não tinha curso de hotelaria e turismo. Ai, se a ASAE ali fosse, como estariam as condições de higiene e segurança?! Não passou fatura, não comunicou à Autoridade Tributária.
Todo este arrazoado contrasta com aquele filme em que uma criança de 9 a 10 anos, em apuros devido a problemas de álcool e similares, como se pode ler no almanaque “Boa Nova 2010”, gritava: “Ajudem-me! Ajudem-me para eu poder ajudar. Ajudem um para ele ajudar três e estes, outros três, e ajuda chegar a toda a gente.”.
Ora, em Portugal, ninguém pode ajudar sem autorização. Com exemplos, podemos evocar a complicação burocrática que enfrentam os promotores da criação dum Centro Social, dum Lar de Terceira Idade ou dum Estabelecimento de Cuidados Continuados; podemos aduzir a necessidade dos pais para na escola os alunos disporem de efetivo apoio pedagógico acrescido em aulas suplementares, de estudo acompanhado e atividades de enriquecimento curricular; uma visita de estudo tem de ser autorizada pelos pais; o indivíduo doente tem de assinar um termo de responsabilidade para se proceder a uma intervenção cirúrgica.
Depois, como poderá querer ajudar a alguém uma pessoa que não é formada em psicologia, serviço social, medicina, psicoterapia, psicanálise, terapia ocupacional? E, se a pessoa até é licenciada, mas não tem uma pós-graduação, um lugar no quadro da empresa ou serviço público ou privado, se não tem um título académico, como pode ajudar? Familiares em relação ao doente, pais em relação aos filhos podem ajudar como, se não têm experiência vivida consolidada e se são quase analfabetos?
Se o episódio relatado por Jesus e transcrito em Lucas sucedesse em Portugal hoje, o sacerdote o levita, se não conseguissem evitar a visualização do arredado para a valeta, diriam: “Não se aflija, tenha calma, reze. Os técnicos especializados virão aí; nós temos que ir para a missa e para a procissão de Nossa Senhora. Tinham razão, pois não eram formados na área da saúde.
O samaritano alegaria que era estrangeiro, não tinha curso de medicina, enfermagem socorrismo, serviço social. Mandaria que se mantivesse imóvel, porque não conhecia técnicas de recolha e transporte da vítima. Não faria, como é óbvio, a promessa de ir tirar um curso e pedir ao sinistrado que esperasse com atenção e paciência, mas telefonaria para o 112 a contar o sucedido, teria de se identificar e eventualmente aguardar que da central lhe ligassem para confirmação da veridicidade do ocorrido. Viriam os técnicos especializados, que o levariam para o hospital onde seria tratado, não sem o preenchimento da ficha do costume e indagação a posteriori das condições económicas para efeito de pagamento de taxas moderadoras.
Se o samaritano se comportasse como o do Evangelho, pagaria caro a sua ousadia, pois, não sendo médico nem enfermeiro nem socorrista, não podia ter ajudado aquele homem semimorto. Seria julgado e possivelmente condenado por exercício ilegal de profissão, que não tinha, e por ter utilizado um meio de recolha e transporte de vítima inadequado, pondo assim em causa a integridade e até a vida duma pessoa. Além disso, ministrou remédios não convencionais produzidos por laboratório autorizado e validados pelo Infarmed e valeu-se de medicinas tradicionais não homologadas pela Direção-Geral de Saúde.
E o articulista do almanaque citado pergunta se ainda continuará válida a recomendação do Senhor ao doutor da Lei: “Vai e faz tu também o mesmo”.
Ora, se é certo que o mundo precisa muito de técnicos qualificados, precisa muito mais de amor, solidariedade e entreajuda.
Receio que a febre da excessiva especialização e a demasiada confiança nas técnicas provoquem esperas prejudiciais e venham a criar a indesejada desumanização dos cuidados para com as pessoas. Na verdade, feridos, doentes e pobres não podem esperar! E as especializações que não partam dos e para os problemas das pessoas levam a negócio, especulação, burocracia (modelos P1, fichas, procura obrigatória de unidades de saúde da área da residência) e menos afeto e solidariedade. E a falta de rega dos sofrimentos e abandonos com afeto e solidariedade é fonte de discriminações, esperas infindáveis e injustiças.
Quem é o meu próximo? Tenho que o encontrar e me deixar encontrar por ele. De quem sou eu próximo? Tenho de estar com atenção às bermas das estradas, às portas dos templos, aos perímetros dos casebres e barracas e ao anonimato das grandes cidades. É preciso que se instaure o Evangelho da Vida, o de Cristo, o das pessoas – e menos o das técnicas aprimoradas, mas longe das pessoas.

2017.02.23 – Louro de Carvalho

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