O
historiador Rui Ramos fez publicar no Observador,
a 31 de janeiro pp., um artigo sob o título
“Silêncio: a salvação pela dúvida”
em jeito de comentário ao livro Silêncio,
de Shusaku Endo, que inspirou o filme
de Scorsese com o mesmo título.
Dou de barato a asserção do articulista historiador de
que o livro não é um romance histórico sobre a descristianização do Japão em 1640,
mas uma alegoria sobre a recristianização das sociedades modernas”. Obviamente,
não interessa ao romancista nem ao realizador de cinema a escalpelização das
razões por que o cristianismo foi banido naquele tempo pelas autoridades
imperiais nipónicas. Talvez essa seja a função do historiador, se a quiser
assumir, vindo essa a constituir um contributo que Ramos poderia prestar à
sociedade portuguesa e ao mundo, nomeadamente ao mundo cristão. É claro que, do
meu ponto de vista, o romance – e sobretudo o filme por abranger um universo
maior de recetores – pretende equacionar o problema da cristianização e, mesmo
recristianização, das sociedades face à proliferação dos Estados que se afirmam
laicos e àqueles que se afirmam próximos do Estado teocrático embora de sinal
diferente do apresentado pelo cristianismo. E esta é a dimensão do romance e do
filme que o teólogo, o antropólogo e o sociólogo podem bem explorar para
utilidade da causa cultural e civilizacional. Ora, é por via do desígnio
afirmativo de Ramos de recristianização que se estranha a sua admiração pela
contribuição da dúvida metódica para a aquisição da fé, que salva, levando-o a
abreviar a conclusão de que hipoteticamente a dúvida levará à salvação.
Mais:
considera ironia que, “em Lisboa, a fachada da
igreja de São Roque” esteja “há dias coberta por uma faixa com a imagem
cinematográfica de Cristóvão Ferreira”, chamando ao facto “a medida do sucesso
de Silêncio” para “o
filme de Martin Scorsese”. Isto, porque Ferreira alegadamente “representou para
os seus contemporâneos a negação da fé”.
Não sei se o historiador leu o romance e viu o filme
com olhar agudo a atentar na mensagem problematizadora. Ora é na discussão
provocada pelo levantamento de questões e colocação de problemas e dúvidas que
resulta a luz. E também a fé, que é dom de Deus, não dispensa o esforço do
entendimento do homem que se questiona e busca a verdade. É que a fé ultrapassa
a razão, mas não a contraria. A fé não consiste na crença ab absurdo. Com efeito, os filósofos teólogos tanto colocam em
evidência o requisito “fides quaerens
intelectum (a fé a postular o entendimento) como o imperativo augustiniano “crede ut intellegas” (crê para que entendas). Santo Anselmo de Cantuária justapõe as duas
fórmulas: Credo ut intellegam (Creio
para que possa entender) e intellego ut
credam (Penso
para que possa crer). É a exigência da desejável
articulação e consonância entre os mundos da fé e da razão.
***
Obviamente que foi chocante, na Europa do século XVII,
a notícia de que Ferreira não resistira à tortura e apostatara. Poupou a vida,
mas foi obrigado a viver com a viúva de um prisioneiro que fora executado. No
entanto, pairou no ar a ideia que junto ao fim da vida se reconciliara com o
cristianismo. Se assim foi – e não há razão para que se arrede de vez essa
hipótese –, Ferreira não fica apenas como o mau exemplo na rota do martírio,
mas também como um, ao menos, hipotético varão que ultrapassa a situação de
impenitência final, esta, sim, um pecado contra o Espírito Santo. Dele quereria
dizer o que digo de Tomé, que não foi o apóstolo da dúvida e da negação, mas o
da fé orante: “Meu Senhor e meu Deus” (Jo 20,28).
Ramos escandaliza-se pelo facto de, 4 séculos depois,
o apóstata figurar onde deveria figurar o mártir, estranha que se fale de
religião a propósito dele e questiona se a apostasia inspira a santidade. Ora
bem. Parece mais lógico que se parta do martírio para falar de religião e que
seja este como semente de cristianismo a inspirar e a estimular a santidade de
vida. No entanto, a Palavra de Deus, que é a norma da fé parte tantas vezes da
fraqueza e do pecado do ser humano. O Antigo Testamento está cheio de casos de
pecado e nunca nenhum biblista ousou sugerir a depuração de páginas bíblicas. É
o pecado de Adão, de Caim, de Saul, do santo rei David e do sábio Salomão que
dá para contrapor à santidade dos patriarcas, juízes, reis e profetas. O
próprio Jonas quis fugir ao desígnio divino. E, no Novo Testamento, temos as
hesitações dos apóstolos, a negação de Pedro, a traição de Judas, o pecado da
adúltera, a dúvida de Tomé. E que dizer das tentações de Cristo, que não
chegaram a levá-lo ao pecado, ou da hesitação no Horto?
Nada disto
chega para ofuscar a eloquência do desígnio amoroso e misericordioso do coração
de Deus, de que Jesus Cristo é imagem e rosto perfeito. E é Cristo que é a
fonte de santidade. Mas esta fonte, porque vem de Deus para o mundo, jorra por
entre os pobres, os fracos e os pecadores e não fica manchada pelas fraquezas e
deslizes destes.
O
historiador prefere falar do romance. Dá a impressão de que este o desvia (ele diz
“poupa”) de “algumas discussões provocadas
pelo filme”. Mas não há que fugir à discussão como rota para a dissipação de
dúvidas. Não é pecado ter dúvidas de fé. O que tradicionalmente se considerava
pecado por dúvida da fé era a dúvida que voluntariamente se deixava instalar e
que se acalentava no ânimo do crente, ou seja, era a comodidade de engordar a
dúvida para se esquivar às responsabilidades decorrentes do ato de fé pessoal
com incidências fortes e permanentes na comunidade e que podia levar à
desesperação de salvação (também pecado contra o Espírito Santo). De resto, a dúvida metódica, inspirada em René
Descartes, para buscar a beleza da fé, as razões da esperança e o sustento da
caridade que leva à justiça, é a via certa para a abertura à fé. Como diz Ramos,
nem o livro nem o filme são “uma história da perda da fé, mas do seu reencontro”.
E tem razão
o historiador colunista quando assegura que o silêncio do título não se refere
apenas ao silêncio de Deus”, mas
sobretudo ao silêncio do crente. Contudo, não podemos estranhar que Deus se
mostre calado a ponto de parecer ter abandonado o crente. Fê-lo no Calvário a
ponto de Jesus no alto da cruz lançar o clamor “Meu Deus, meu Deus, porque me
abandonaste?” (Mt,27,46). Como se
estranhará que o faça com o homem do século XVII ou com o do século XXI. A fé
do justo só fica consolidada de pois de ter passado pelo cadinho da provação.
Ora, fala-se
de religião a propósito da vida de fé, do martírio, da atividade apostólica,
como se pode falar, para a ultrapassar, a partir do pecado, da fraqueza, da
indiferença e mesmo da apostasia. Cristo veio chamar os pecadores, veio em
busca do que estava perdido.
No entanto,
Ramos agarra “o silêncio do guia japonês que os missionários recrutam em
Macau”. De facto, “ Kichijiro, bêbado e cobarde, cala-se sobre a sua fé e
recusa-se a confirmar que é cristão”. Este é o caso que o missionário Sebastião
Rodrigues – um dos padres que foi investigar o que se passara com Ferreira e
animar os cristãos em dificuldade – considera como a “negação de tudo o que ele
pretende ser e que um cristão deve ser”. Na verdade, “Rodrigues aspira ao
martírio”, enquanto “Kichijiro quer apenas salvar a vida”; “Rodrigues afirma a
sua fé e vai anunciá-la aos outros”, mas “Kichijiro cala-se e nega”. É o
confronto dos apostos.
Rodrigues –
personagem fictícia baseada
no jesuíta italiano Giuseppe Chiara – identifica-se
com Cristo e naturalmente induz a equiparação de Kichijiro a Judas. Um, próximo
de Deus, é o herói e o salvo, enquanto o outro, o afastado, é o negador e
traidor que se perde. É tentador ver esta dicotomia crua a preto e branco, sem
anotar que a dicotomia – proximidade/afastamento, heroísmo/negação,
salvação/perdição – apossa-se da mesma pessoa na contradição do tempo e do
sentir. Também Sebastião Rodrigues, que ia animar os cristãos perseguidos e
torturados, se vê acossado pela perseguição e vítima da tortura e tudo dá a
entender que, pelo menos, num primeiro momento vacilou e resvalou para a
apostasia, aliás como Kichijiro e Ferreira.
Será verdade
que Rodrigues estava mais perto de Cristo quando pregava e animava os cristãos
perseguidos do que nos momentos de tortura? Não será, antes, que também nos
momentos de tortura se sentiu próximo do Cristo sofredor, apenas não tendo
sentido o conforto do anjo do Senhor (cf Lc 22,43) e a presença terna da Mãe de Jesus e do seu
discípulo (cf Jo 19,25-27)? Na verdade,
o Cristo da Paixão é o mesmo da pregação e dos milagres.
Não parece,
pois, que se possa afirmar que, ao invés da “salvação pela força, pela glória,
pela fé e pelo impacto da palavra”, o livro ou filme legitimem “a possibilidade
da salvação pela fraqueza, pela abjecção, pela dúvida, pelo silêncio”. Porém, a
problematização, a dúvida, a fraqueza e a abjeção são fatores existenciais que condicionam
e até modelam o homem e, por consequência, o crente. E é a fé, provinda da
graça de Deus como dom para o homem aberto ao transcendente, que transforma as
limitações do homem em rampa de lançamento para a justificação em Cristo.
O romance
tem, no dizer de Ramos, mais portas de entrada, sugerindo a aproximação a Heart
of Darkness, de Joseph
Conrad, novela em que o narrador parte da Europa para esclarecer rumores
inquietantes sobre o colapso moral dum arauto da fé. Mr. Kurz é o Ferreira do
humanismo do progresso, o agente da “civilização” que acaba por perder
confiança no mesmo progresso e optar pelo extermínio dos “selvagens”. O escopo
de Kurz sobre o absurdo de civilizar África ressoa no discurso de Ferreira
sobre a impossibilidade de evangelizar o Japão, o “pântano”. Na verdade, o
esforço da conversão pode descambar no relativismo, mas o relativismo não é
necessariamente um caminho da tolerância, mas bem pode ser o da desumanização.
***
Shusaku Endo nasceu
em Tóquio. Os pais partiram pouco depois para a Manchúria. E, quando se
separaram em 1933, Endo e a mãe voltaram para Kobe, cidade natal da mãe. Esta converteu-se
ao catolicismo vindo a educar o filho na sua religião. Por conseguinte, Endo
recebeu o Batismo, em 1935, aos 12 anos, passando a usar o nome cristão de Paul.
Estudou literatura francesa na Universidade de Lyon de 1950 a 1953.
A sua ficção
reflete muita da experiência de infância, que inclui o estigma de forasteiro, a
experiência de estrangeiro, a vida de paciente em hospital, a luta contra a
tuberculose. Mas reflete também a sua fé católica, que se torna uma
caraterística notória da obra. A maioria das suas personagens lutam contra
complexos dilemas morais e as suas escolhas provocam, por vezes, resultados trágicos.
A sua obra é comparável à de Graham Greene, autor que o enalteceu como um dos maiores
escritores do século XX.
***
É, pois,
natural que o livro tenha azado um filme altamente problematizador na via da fé.
2017-.02.02 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário