sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

A Salvação pela fé, não pela dúvida

O historiador Rui Ramos fez publicar no Observador, a 31 de janeiro pp., um artigo sob o título
Silêncio: a salvação pela dúvida” em jeito de comentário ao livro Silêncio, de Shusaku Endo, que inspirou o filme de Scorsese com o mesmo título.
Dou de barato a asserção do articulista historiador de que o livro não é um romance histórico sobre a descristianização do Japão em 1640, mas uma alegoria sobre a recristianização das sociedades modernas”. Obviamente, não interessa ao romancista nem ao realizador de cinema a escalpelização das razões por que o cristianismo foi banido naquele tempo pelas autoridades imperiais nipónicas. Talvez essa seja a função do historiador, se a quiser assumir, vindo essa a constituir um contributo que Ramos poderia prestar à sociedade portuguesa e ao mundo, nomeadamente ao mundo cristão. É claro que, do meu ponto de vista, o romance – e sobretudo o filme por abranger um universo maior de recetores – pretende equacionar o problema da cristianização e, mesmo recristianização, das sociedades face à proliferação dos Estados que se afirmam laicos e àqueles que se afirmam próximos do Estado teocrático embora de sinal diferente do apresentado pelo cristianismo. E esta é a dimensão do romance e do filme que o teólogo, o antropólogo e o sociólogo podem bem explorar para utilidade da causa cultural e civilizacional. Ora, é por via do desígnio afirmativo de Ramos de recristianização que se estranha a sua admiração pela contribuição da dúvida metódica para a aquisição da fé, que salva, levando-o a abreviar a conclusão de que hipoteticamente a dúvida levará à salvação.  
Mais: considera ironia que, “em Lisboa, a fachada da igreja de São Roque” esteja “há dias coberta por uma faixa com a imagem cinematográfica de Cristóvão Ferreira”, chamando ao facto “a medida do sucesso de Silêncio” para “o filme de Martin Scorsese”. Isto, porque Ferreira alegadamente “representou para os seus contemporâneos a negação da fé”.
Não sei se o historiador leu o romance e viu o filme com olhar agudo a atentar na mensagem problematizadora. Ora é na discussão provocada pelo levantamento de questões e colocação de problemas e dúvidas que resulta a luz. E também a fé, que é dom de Deus, não dispensa o esforço do entendimento do homem que se questiona e busca a verdade. É que a fé ultrapassa a razão, mas não a contraria. A fé não consiste na crença ab absurdo. Com efeito, os filósofos teólogos tanto colocam em evidência o requisito “fides quaerens intelectum (a fé a postular o entendimento) como o imperativo augustiniano “crede ut intellegas” (crê para que entendas). Santo Anselmo de Cantuária justapõe as duas fórmulas: Credo ut intellegam (Creio para que possa entender) e  intellego ut credam (Penso para que possa crer). É a exigência da desejável articulação e consonância entre os mundos da fé e da razão.
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Obviamente que foi chocante, na Europa do século XVII, a notícia de que Ferreira não resistira à tortura e apostatara. Poupou a vida, mas foi obrigado a viver com a viúva de um prisioneiro que fora executado. No entanto, pairou no ar a ideia que junto ao fim da vida se reconciliara com o cristianismo. Se assim foi – e não há razão para que se arrede de vez essa hipótese –, Ferreira não fica apenas como o mau exemplo na rota do martírio, mas também como um, ao menos, hipotético varão que ultrapassa a situação de impenitência final, esta, sim, um pecado contra o Espírito Santo. Dele quereria dizer o que digo de Tomé, que não foi o apóstolo da dúvida e da negação, mas o da fé orante: “Meu Senhor e meu Deus” (Jo 20,28).
Ramos escandaliza-se pelo facto de, 4 séculos depois, o apóstata figurar onde deveria figurar o mártir, estranha que se fale de religião a propósito dele e questiona se a apostasia inspira a santidade. Ora bem. Parece mais lógico que se parta do martírio para falar de religião e que seja este como semente de cristianismo a inspirar e a estimular a santidade de vida. No entanto, a Palavra de Deus, que é a norma da fé parte tantas vezes da fraqueza e do pecado do ser humano. O Antigo Testamento está cheio de casos de pecado e nunca nenhum biblista ousou sugerir a depuração de páginas bíblicas. É o pecado de Adão, de Caim, de Saul, do santo rei David e do sábio Salomão que dá para contrapor à santidade dos patriarcas, juízes, reis e profetas. O próprio Jonas quis fugir ao desígnio divino. E, no Novo Testamento, temos as hesitações dos apóstolos, a negação de Pedro, a traição de Judas, o pecado da adúltera, a dúvida de Tomé. E que dizer das tentações de Cristo, que não chegaram a levá-lo ao pecado, ou da hesitação no Horto?
Nada disto chega para ofuscar a eloquência do desígnio amoroso e misericordioso do coração de Deus, de que Jesus Cristo é imagem e rosto perfeito. E é Cristo que é a fonte de santidade. Mas esta fonte, porque vem de Deus para o mundo, jorra por entre os pobres, os fracos e os pecadores e não fica manchada pelas fraquezas e deslizes destes.
O historiador prefere falar do romance. Dá a impressão de que este o desvia (ele diz “poupa”) de “algumas discussões provocadas pelo filme”. Mas não há que fugir à discussão como rota para a dissipação de dúvidas. Não é pecado ter dúvidas de fé. O que tradicionalmente se considerava pecado por dúvida da fé era a dúvida que voluntariamente se deixava instalar e que se acalentava no ânimo do crente, ou seja, era a comodidade de engordar a dúvida para se esquivar às responsabilidades decorrentes do ato de fé pessoal com incidências fortes e permanentes na comunidade e que podia levar à desesperação de salvação (também pecado contra o Espírito Santo). De resto, a dúvida metódica, inspirada em René Descartes, para buscar a beleza da fé, as razões da esperança e o sustento da caridade que leva à justiça, é a via certa para a abertura à fé. Como diz Ramos, nem o livro nem o filme são “uma história da perda da fé, mas do seu reencontro”.
E tem razão o historiador colunista quando assegura que o silêncio do título não se refere apenas ao silêncio de Deus”, mas sobretudo ao silêncio do crente. Contudo, não podemos estranhar que Deus se mostre calado a ponto de parecer ter abandonado o crente. Fê-lo no Calvário a ponto de Jesus no alto da cruz lançar o clamor “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?” (Mt,27,46). Como se estranhará que o faça com o homem do século XVII ou com o do século XXI. A fé do justo só fica consolidada de pois de ter passado pelo cadinho da provação.
Ora, fala-se de religião a propósito da vida de fé, do martírio, da atividade apostólica, como se pode falar, para a ultrapassar, a partir do pecado, da fraqueza, da indiferença e mesmo da apostasia. Cristo veio chamar os pecadores, veio em busca do que estava perdido.
No entanto, Ramos agarra “o silêncio do guia japonês que os missionários recrutam em Macau”. De facto, “ Kichijiro, bêbado e cobarde, cala-se sobre a sua fé e recusa-se a confirmar que é cristão”. Este é o caso que o missionário Sebastião Rodrigues – um dos padres que foi investigar o que se passara com Ferreira e animar os cristãos em dificuldade – considera como a “negação de tudo o que ele pretende ser e que um cristão deve ser”. Na verdade, “Rodrigues aspira ao martírio”, enquanto “Kichijiro quer apenas salvar a vida”; “Rodrigues afirma a sua fé e vai anunciá-la aos outros”, mas “Kichijiro cala-se e nega”. É o confronto dos apostos.
Rodrigues – personagem fictícia baseada no jesuíta italiano Giuseppe Chiara – identifica-se com Cristo e naturalmente induz a equiparação de Kichijiro a Judas. Um, próximo de Deus, é o herói e o salvo, enquanto o outro, o afastado, é o negador e traidor que se perde. É tentador ver esta dicotomia crua a preto e branco, sem anotar que a dicotomia – proximidade/afastamento, heroísmo/negação, salvação/perdição – apossa-se da mesma pessoa na contradição do tempo e do sentir. Também Sebastião Rodrigues, que ia animar os cristãos perseguidos e torturados, se vê acossado pela perseguição e vítima da tortura e tudo dá a entender que, pelo menos, num primeiro momento vacilou e resvalou para a apostasia, aliás como Kichijiro e Ferreira.
Será verdade que Rodrigues estava mais perto de Cristo quando pregava e animava os cristãos perseguidos do que nos momentos de tortura? Não será, antes, que também nos momentos de tortura se sentiu próximo do Cristo sofredor, apenas não tendo sentido o conforto do anjo do Senhor (cf Lc 22,43) e a presença terna da Mãe de Jesus e do seu discípulo (cf Jo 19,25-27)? Na verdade, o Cristo da Paixão é o mesmo da pregação e dos milagres.
Não parece, pois, que se possa afirmar que, ao invés da “salvação pela força, pela glória, pela fé e pelo impacto da palavra”, o livro ou filme legitimem “a possibilidade da salvação pela fraqueza, pela abjecção, pela dúvida, pelo silêncio”. Porém, a problematização, a dúvida, a fraqueza e a abjeção são fatores existenciais que condicionam e até modelam o homem e, por consequência, o crente. E é a fé, provinda da graça de Deus como dom para o homem aberto ao transcendente, que transforma as limitações do homem em rampa de lançamento para a justificação em Cristo.
O romance tem, no dizer de Ramos, mais portas de entrada, sugerindo a aproximação a Heart of Darkness, de Joseph Conrad, novela em que o narrador parte da Europa para esclarecer rumores inquietantes sobre o colapso moral dum arauto da fé. Mr. Kurz é o Ferreira do humanismo do progresso, o agente da “civilização” que acaba por perder confiança no mesmo progresso e optar pelo extermínio dos “selvagens”. O escopo de Kurz sobre o absurdo de civilizar África ressoa no discurso de Ferreira sobre a impossibilidade de evangelizar o Japão, o “pântano”. Na verdade, o esforço da conversão pode descambar no relativismo, mas o relativismo não é necessariamente um caminho da tolerância, mas bem pode ser o da desumanização.
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Shusaku Endo nasceu em Tóquio. Os pais partiram pouco depois para a Manchúria. E, quando se separaram em 1933, Endo e a mãe voltaram para Kobe, cidade natal da mãe. Esta converteu-se ao catolicismo vindo a educar o filho na sua religião. Por conseguinte, Endo recebeu o Batismo, em 1935, aos 12 anos, passando a usar o nome cristão de Paul. Estudou literatura francesa na Universidade de Lyon de 1950 a 1953.
A sua ficção reflete muita da experiência de infância, que inclui o estigma de forasteiro, a experiência de estrangeiro, a vida de paciente em hospital, a luta contra a tuberculose. Mas reflete também a sua fé católica, que se torna uma caraterística notória da obra. A maioria das suas personagens lutam contra complexos dilemas morais e as suas escolhas provocam, por vezes, resultados trágicos. A sua obra é comparável à de Graham Greene, autor que o enalteceu como um dos maiores escritores do século XX.
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É, pois, natural que o livro tenha azado um filme altamente problematizador na via da fé.

2017-.02.02 – Louro de Carvalho

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