O
“Nunc dimittis, o último dos quatro
cânticos do Evangelho da Infância de Jesus – os outros são o Magnificat, de Maria (Lc
1,46b-55), o Benedictus, de Zacarias (Lc
1,68-79), e o Gloria
in excelsis, dos anjos (Lc
2,14) –, foi
proferido por Simeão (Lc 2,29-32) aquando da apresentação de Jesus no Templo ao ter
chegado o momento da purificação, segundo a Lei de Moisés.
Simeão
era um velhinho justo e piedoso (em grego: eulabês) que esperava a consolação de
Israel e em quem estava o Espírito Santo, pelo que também era considerado um
profeta. A sua piedade e justiça consistiam na preocupação de cumprir os
deveres morais da Lei graças à piedade filial e ao saudável temor do Senhor (cf
At 2,5; 8,2; 22,12).
A consolação de Israel era a salvação messiânica no quadro do livro da
consolação de Isaías (Is 40,1; 51,12; 61,2). Esta consolação havia de
chegar ao povo eleito como conforto divino em compensação de todas as aflições
de que foi objeto ao longo dos séculos (cf Is 66,13; Zc 1,13). Segundo os rabinos, referiam-se
a ela as últimas palavras do diálogo entre Elias e Eliseu (cf
2Rs 2,11), não
conhecidas porque não expressas, e que seriam conhecidas quando reaparecesse
Elias, como sugerem as palavras do anjo sobre o filho de Zacarias que iria ser
concebido:
“Irá à frente, diante do Senhor, com o espírito e
o poder de Elias, para fazer voltar os corações dos pais a seus filhos e os
rebeldes à sabedoria dos justos, a fim
de proporcionar ao Senhor um povo com boas disposições” (Lc 1,17).
O
Espírito Santo tinha revelado a Simeão que não morreria sem ter visto o Cristo do Senhor. A expressão que
significa Espírito Santo (hipò toû pnéumatos toû hagíou) está robustecida com o artigo
definido no grego; e para revelar
temos o verbo grego khrematízô,
também utilizado por Mateus (Mt 2,12) quando os magos são avisados em
sonho. Por seu turno, Cristo do Senhor
é uma expressão grega (Christòn
toû Kyríou) que
traduz literalmente o hebraico meshia’
JHWH (“ungido ou consagrado de/por Javé), título tradicional no Antigo
Testamento, que designava também os juízes e os reis teocráticos de Israel, mas
diferente do de Cristo Senhor, próprio do Novo Testamento (vd
Lc 2,11), com que
Lucas porfia que Jesus é o Salvador esperado, sugerindo o caráter divino da sua
realeza (cf
At 2,36) e o título
de Senhor sentado à direita de Deus Pai (cf Sl 110,1).
Simeão
reconheceu o Salvador no menino apresentado por Maria e José para consagração
ao Senhor e por cujo resgate foi entregue o óbolo dos pobres (duas
rolas ou duas pombas, em vez do cordeiro de um ano). E, pegando nele, louvou a Deus com as palavras… O
narrador introduz assim o cântico, que constitui o nervo da perícopa evangélica
da festa da apresentação do Senhor, a 2 de fevereiro, e que a Liturgia das
Horas faz repetir quase no fim do Ofício de Completas:
“Agora, Senhor, segundo a
tua palavra, deixarás ir em paz o teu servo, porque
meus olhos viram a Salvação que ofereceste a todos os povos, Luz
para se revelar às nações e glória de Israel, teu povo” (Lc 2,29-32).
***
Este
cântico sobre Jesus está em linha com o de Zacarias sobre o filho João. O velho
Simeão, o último dos profetas do Antigo Testamento, pegou no menino: o termo
grego edéxato implica que o profeta
recebeu o que se lhe apresentava. Os rabinos tomavam nos braços os meninos para
os abençoarem. E Simeão, fazendo como outros rabinos, pegou no menino e inspirou-se
em Isaías para proclamar a salvação de Deus já presente (cf
Is 40,5; 42,6; 45,25; 46,13; 49,6; 52,10).
Nestes termos, saúda a chegada do Salvador e revela alguns traços
caraterísticos da sua missão.
O
cântico está estruturado em duas partes: a satisfação de plenitude do profeta
para com Deus (v.29);
e os motivos dessa satisfação que revelam o ser e a missão do menino (vv.
30-32).
Simeão
diz ao Senhor que já pode deixar ir em paz o seu servo, porque viu a salvação.
Nas
palavras “ir em paz” parece ressoar a garantia de Deus a Abraão: “Irás para
junto de teus pais (morrerás) em paz e boa velhice” (Gn
15,15). Provavelmente,
este profeta pertencia à classe sacerdotal ou estava estreitamente relacionado
com ela, pelo que terá sofrido imenso durante a sua espera ao presenciar as
múltiplas traições praticadas pelos sacerdotes no cumprimento das suas obrigações
sagradas. A espera é coroada pelo fim que ele tanto ansiava. Para “Senhor”
Lucas usa o vocábulo grego déspotes (patrão), termo muito raro no Novo
Testamento, mas aqui em contraste com doûlos
(servo). Por um lado, a aplicação do
termo doûlos a Simeão significará a
dificuldade com que o servo de Deus cumpriu o seu serviço no Templo; por outro,
dá a entender que o evangelista quer marcar o distanciamento entre Deus e
Simeão, a contrabalançar com a familiaridade deste com o Espírito Santo (cf
v. 27) e pela
afetuosa familiaridade com que toma nos braços o menino como “Salvação de Deus”
(cf
v. 28). Aquela
referência ao Espírito Santo evidencia que Deus atua para a Salvação do seu
povo em todas as eras, mas sobretudo na era escatológica (cf
Jl 3; At 2). Se
Moisés, quando a glória do Senhor desceu sobre a Arca, não a pôde contemplar
sob o risco de vida (vd Ex 33,18-20; 40,35), agora Simeão, depois de ver a
glória do Senhor, não morre por isso, mas pode morrer em paz. O termo utilizado
pelo evangelista para salvação é o grego sotérion
(em
latim, salutare) a significar propriamente um
meio de salvação. É um termo utilizado na versão dos LXX para traduzir o
hebraico jeshû ‘ah (Sl
13,6; Is 12,3),
semelhante foneticamente ao termo Jeshûa’,
que designa o próprio nome de Jesus.
Como
em toda a Bíblia, o termo luz também
aqui simboliza o bem, a vestimenta de Deus; e poderia significar vida,
trabalho, riqueza, alegria, felicidade, prosperidade, salvação. Em suma, a luz
profetizada por aquele que tomou o menino em seus braços é a luz messiânica que
ilumina, guia e salva, que dá a vida e a dá em abundância. Para a compreensão
do conceito, é preciso reler Isaías:
“Não basta que sejas meu servo, só para
restaurares as tribos de Jacob e reunires os sobreviventes de Israel. Vou fazer
de ti luz das nações, para que a minha salvação (jeshû ‘atî) chegue até aos confins da terra.” (Is 49,6).
A revelação sob a imagem da luz é caraterística
da literatura de João (vd Jo 8,12;
12,46; 1Jo 1,5 – 2,27), em sintonia com a fé e a verdade. Parar revelação é utilizado o termo grego apokálupsis (a única recorrência do termo nos 4
evangelhos), típico
de Paulo. É de notar que no livro do Apocalipse é usado apenas uma vez (Ap
1,1), servindo de
título.
Como
o Magnificat e o Benedictus, o “Nunc dimittis”
também utiliza amplamente textos bíblicos do Antigo Testamento (nomeadamente,
Is 52,10; 42,6; 49,6).
No entanto, este cântico marca um passo significativo no seu messianismo em
comparação com o do Benedictus. Se no
cântico de Zacarias a poderosa salvação se dirige a Israel e nele se realiza,
no cântico de Simeão a salvação messiânica é também para os povos pagãos (ad
revelationem gentium),
para todos os povos. O senhor oferece a todos a salvação através de Israel, o
que é motivo de glória, que não de orgulho ou de soberba e altivez. O sentido
da expressão “glória de Israel, teu povo”, indica o Salvador como presença
ativa de Deus em prol de Israel e, através deste, de toda a humanidade.
O
messianismo celebrado por Simeão ultrapassa os estreitos limites das conceções
messiânicas da época, mas ligava-se à conceção dos profetas. Com efeito, o
judaísmo coevo achava que a graça messiânica não atingia as nações pagãs, mas
excluía os odiados goîm, inimigos de
Deus e do seu povo. Na melhor das hipóteses, poderia ser-lhes concedida a graça
da sobrevivência para que, passando ao judaísmo, se colocassem ao serviço do
Senhor.
Porém,
a salvação das nações pagãs, um dos temas caros a Lucas, é anunciada aqui pela
primeira vez de forma explícita. É certo que Maria percebe que todas as
gerações a proclamarão bem-aventurada e que a misericórdia de Deus se estende
de geração em geração sobre aqueles que o
temem e, aquando do nascimento de Jesus, é proclamada pelos anjos a paz na
terra aos homens de boa vontade. Porém, Cristo como lumen gentium é explicitamente indicado pela primeira vez aqui por
Simeão. E esta proclamação torna-se um dos núcleos fundamentais da revelação
pascal a integrar o mandato do discipulado e do apostolado:
“Está escrito que o Messias havia de sofrer e
ressuscitar dentre os mortos, ao terceiro dia; que havia de ser anunciada, em seu nome, a
conversão para o perdão dos pecados a todos os povos, a começar por Jerusalém”
(Lc 24,46-47).
Depois, é recorrentemente repetida nos Atos dos
Apóstolos e nas cartas.
***
A
seguir ao “Nunc dimittis”, vem a
bênção de Simeão aos pais do menino e o vaticínio profético, pois “o pai e a mãe estavam admirados com o que se
dizia do menino” (Lc 2,33). Lucas não hesita em chamar a
José “pai” de Jesus, denominação a entender na sua conotação legal e putativa,
nutrícia e afetiva. Se habitualmente Lucas, no Evangelho da Infância e ao invés
de Mateus, deixa a figura de José na penumbra, como guardião e protetor da
família, porém, aqui e no v. 48, coloca-o antes de Maria. Diz-nos que os pais estavam maravilhados. É uma expressão
tipicamente lucana (a modo de refrão), que ocorre duas vezes na
infância de João Batista (Lc 1,21.63) e duas vezes na infância de Jesus (Lc
2,18.33). É a
maravilha suscitada pelo contacto com o divino e torna-se natural porque todo o
dom de Deus encerra uma riqueza que supera toda a expectativa da criatura. Ora,
tratando-se da pessoa de Jesus, dom supremo do Pai, comporta uma riqueza
insondável (cf Ef 3,8).
Nestes termos, Maria e José, animados por uma fé viva, mostram-se abertos a uma
outra revelação em que se desenrola a seus olhos horizontes sempre novos da
grandeza misericordiosa de Deus.
Simeão abençoou-os, ou seja, proclamou o
cumprimento neles dos bens messiânicos e julgou-os implicados na difusão destas
bênçãos entre os demais seres humanos. Porém, referindo-se ao menino, vaticinou,
dizendo a Maria que ele estava para queda
e ressurgimento (em grego: anastasis, termo utilizado por Lucas exclusivamente para traduzir ressurreição dos mortos: 14,14;
20,27.33.35s) de
muitos em Israel e como sinal de
contradição (em grego: sémeion antilegómenon – à letra, sinal que sofre contradição).
Provavelmente,
com as ideias de queda e ressurgimento, alude-se a uma ideia contida em Isaías
(8,14;
28,16). Os ideais e a
bondade que o Messias vive e prega obrigam todos os homens a confrontar-se com
a sua pecaminosidade (queda) e este conhecimento é capaz de destruir o soberbo
e fará que o humilde se volte para o Messias, elevando-se a uma vida nova,
graças a ele. Como Simeão, Paulo sintetiza o mesmo pensamento noutros termos a
ideia de queda e ressurgimento:
“Nós
pregamos um Messias crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os
gentios. Mas, para os que são
chamados, tanto judeus como gregos, Cristo é poder e sabedoria de Deus.” (1Cor 1,23-24).
O
sinal de contradição (sinal
recusado, negado, contraditado, refutado)
remete-nos para a bandeira contra a qual e em torno da qual se combaterá (antilegómenon é
particípio presente com valor de futuro, como sucede frequentemente no Novo
Testamento). O verbo
antilégô é utilizado por Lucas (vd
4,23-29; 11,14-28.29-32),
mas não por Mateus e Marcos, e João só o utiliza uma vez (Jo
19,12), quando os
judeus dizem a Pilatos que “todo aquele que se faz rei está a recusar César” –
o que leva o Governador a entregar Jesus à morte.
Sendo
Jesus um farol luminoso, o homem pode, contudo, ficar apegado aos seus frequentemente
contraditórios pensamentos, aspirações e projetos, achando-se em oposição à
doutrina salvífica do Evangelho, rejeitando-a ou ficando-lhe indiferente. Daqui
resultam, as oposições, as lutas e as perseguições que o autor do Evangelho e
os seus discípulos terão de enfrentar. A este respeito, os Atos dos Apóstolos,
na reta final, fazem aflorar esta opinião discordante sobre Jesus. Dizem os
judeus a Paulo:
“Desejamos, porém, ouvir da tua boca o que
pensas, pois, quanto à seita a que pertences, sabemos todos que, por toda a parte,
encontra oposição. Marcaram, então, o
dia e vieram ter com ele, em maior número, ao seu alojamento. Desde a manhã até
à tarde, Paulo não cessou de lhes dar testemunho do Reino de Deus e procurou
convencê-los do que diz respeito a Jesus, invocando a Lei de Moisés e os
Profetas. Alguns deixaram-se persuadir
com as suas palavras; outros, porém, mantiveram-se incrédulos.” (At
29,22-24).
“Todavia, Paulo permaneceu dois anos inteiros no
alojamento que alugara, onde recebia todos os que iam procurá-lo, anunciando o Reino de Deus e ensinando o
que diz respeito ao Senhor Jesus Cristo, com o maior desassombro e sem
impedimento” (At 28,30.31).
Mas Simeão também falou de Maria: “Uma espada de dor trespassará a tua alma e assim
revelar-se-ão os pensamentos de muitos corações” (Lc 2,35). Alguns Padres da Igreja interpretaram esta espada
no sentido de dúvida ou vacilação na fé, o que não parece verosímil num
contexto de exaltação da figura da mãe de Jesus (nem vez alguma se percebeu qualquer vacilação em Maria). Dor
é dor. Poderia significar o peso que experimenta a pessoa humilde face às
exigências duma vocação elevada, a pessoa reflexiva ante o mistério da salvação
(Lc 1,29; 2,19.50-51; 11,28). Porém,
a dor aqui vaticinada é de cortar o coração materno e significará a compaixão
da mãe ao ver infligido o castigo atroz ao filho inocente (vd Jo 19,25-27). A partícula
introdutória do segmento (hópôs an) “revelar-se-ão os pensamentos de muitos
corações” refere-o a tudo o que o antecede, associando assim Maria à Paixão
redentora de Jesus. Nestes termos, Maria ficará associada ao Filho não apenas
na vertente jubilosa da obra messiânica (vd Lc 1,28-33), mas também na vertente dolorosa (vd Jo 19,25-27). Neste aspeto,
torna-se evidente que a penetrante espada que atravessará a alma desta mulher significa
a oposição violenta contra a pessoa e a obra de Cristo. E tanto esta oposição
como a adesão do coração à pessoa e obra do Messias são revelação dos
pensamentos/sentimentos dos corações e das suas obras – tantas vezes escondidas
pelo homem no íntimo do seu coração e que importa que se revelem.
Anote-se que o coração na Bíblia é a sede dos
sentimentos humanos, o sítio onde se guarda o que há de melhor e o que há de
mais censurável no homem.
***
Neste
sentido, o cântico de Simeão, que dá a paz ao profeta, é um poema que brota do
coração dum santo, mas é simultaneamente um lugar teológico do messianismo
universal a que os homens todos terão acesso gratuito. Porém, deixa o aviso: a
liberdade do homem pode rejeitar este messianismo salvador; e esta rejeição é a
espada que se crava no coração de Maria. Em todo o caso, o balanço do cumprimento
deste messianismo fica presente como um farol potente na atitude mística e
profética de Ana, filha de Fanuel: “Pôs-se a louvar a Deus e a falar do menino
a todos os que esperavam a redenção de Jerusalém” (Lc 2,38).
Que não deixemos de falar dele, oportuna e
inoportunamente!
2017.02.05 – Louro de
Carvalho
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