Li,
como outras muito boas pessoas, a mensagem do Papa Francisco para esta Quaresma
de 2017. E ao pensar no enunciado da sua epígrafe “A Palavra é um dom. O
outro é um dom”, dei comigo a pensar no desafio de Jesus à
samaritana junto ao poço de Jacob: “Se
conhecesses o dom que Deus tem para dar e quem é que te diz, ‘dá-me de beber’, tu é que lhe pedirias,
e Ele havia de dar-te água viva!” (Jo
4,10).
Na verdade, o dom a que se refere Jesus é Ele próprio, que é
a Palavra do Pai, o Verbo de Deus, que nos dá a verdadeira água viva, mas que
na sua passagem terrena mostrou ter sede perante a samaritana (cf Jo 4,7) e no alto da cruz (cf Jo
19,28).
E, de facto, quem bebe da água do poço de Jacob ou da água de outras nascentes
e fontes continuará a ter sede, mas quem bebe da água que Jesus dá nunca mais
terá sede. E a água que Ele nos der há de tornar-se para nós e em nós fonte de
água que dá a vida eterna (cf Jo 4,13-14).
Desta abundância de água da vida em Cristo, fala-nos Jesus no
capítulo 7 do Evangelho de João:
“No último dia, o mais solene da festa,
Jesus, de pé, bradou: ‘Se alguém tem
sede, venha a mim; e quem crê em mim que sacie a sua sede! Como diz a Escritura, hão de correr do
seu coração rios de água viva.’. Ora Ele disse isto, referindo-se ao
Espírito que iam receber os que nele acreditassem” (Jo 7,37-39).
Então, este Outro é também o
Espírito Santo, dom de Deus para nós, pois procede do Pai e do Filho e recebe a
mesma adoração e a mesma glória.
***
Mas este dom é também o outro – o que sofre a fome e a sede,
o nu, o sem-abrigo, o sem eira nem beira, o peregrino, o acidentado, o que
sofre crise aguda, o enfermo ou o portador de doença incurável, o encarcerado, o
moribundo, o defunto, o descartado, o oprimido, o usado, o explorado, o vendido
e o mutilado, o pecador, o ignorante, o fraco. Neste está projetado o rosto de
Cristo: “Sempre que fizestes isto a um
destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes” (Mt 25,40); e “Sempre que
deixastes de fazer isto a um destes pequeninos, foi a mim que o deixastes de
fazer” (Mt 25,45).
E o que devemos fazer? Satisfazer o preceito do Senhor
seguindo o critério que Ele traçou:
“Tive fome e destes-me
de comer, tive sede e destes-me de beber, era peregrino e recolhestes-me, estava nu e destes-me que vestir, adoeci
e visitastes-me, estive na prisão e fostes ter comigo” (Mt 25,35-36).
Mas o cardápio dos deveres que fazem a revolução de vida é
mais nítido no cap. 5 de Mateus:
Não basta não matar. Quem
se irar contra o irmão será réu perante o tribunal; quem lhe chamar imbecil
será réu ante o Conselho; e quem lhe chamar louco será réu da Geena do fogo (vv.21-22).
Não
basta que não se tenha na da contra o irmão. Mas, “se fores apresentar a oferta
sobre o altar e ali te recordares de que o teu irmão tem alguma coisa contra
ti, deixa lá a tua oferta diante do
altar [não
desistas da oferta, que ela já não é tua]
e vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão; depois, volta para apresentares
a tua oferta. Com o teu
adversário mostra-te conciliador, enquanto caminhardes juntos. (vv.23-25).
Não basta não cometer adultério. Todo aquele
que olhar para uma mulher, desejando-a, já cometeu adultério com ela no seu
coração. Aquele
que se divorciar da sua mulher expõe-na a adultério, e quem casar com a
divorciada comete adultério (vv.27-28.32).
Não basta não perjurar e cumprir ante do Senhor os juramentos. É
preciso não jurar de maneira nenhuma: nem
pelo Céu, que é o trono de Deus, nem pela
Terra, que é o estrado dos seus pés, nem por Jerusalém, que é a cidade do grande Rei. O nosso modo de falar deve ser: Sim,
sim; não, não. (vv.33-35.37).
É preciso não
opor resistência ao mau. “Mas, se alguém te bater na face direita, oferece-lhe
também a outra; se alguém quiser litigar contigo para te tirar a túnica, dá-lhe
também a capa. E, se alguém te
obrigar a acompanhá-lo durante uma milha, caminha com ele durante duas. Dá a quem te pede e não voltes as costas a
quem te pedir emprestado.” (vv.39-42).
É necessário
amar os inimigos e orar pelos que nos perseguem. Fazendo assim, tornar-nos-emos filhos
do nosso Pai que está no Céu, pois Ele faz com que o Sol se levante sobre os
bons e os maus e faz cair a chuva sobre os justos e os pecadores. Porque, se amamos os que nos amam, que
recompensa hemos de ter? Não fazem já isso os cobradores de impostos? E, se saudamos apenas os irmãos, que
fazemos de extraordinário? Não o fazem também os pagãos? Temos de ser perfeitos
como é perfeito o nosso Pai celeste. (cf vv. 44-48).
E Paulo
ensina: “Carregai as cargas uns dos outros e assim cumprireis plenamente
a lei de Cristo” (Gl 6,2). E é
mais explícito a seguir:
“Que o vosso amor seja sincero.
Detestai o mal e apegai-vos ao bem. Sede
afetuosos uns para com os outros no amor fraterno; adiantai-vos uns aos outros
na estima mútua. Não sejais preguiçosos na vossa dedicação; deixai-vos inflamar pelo
Espírito; entregai-vos ao serviço do Senhor. Sede
alegres na esperança, pacientes na tribulação, perseverantes na oração. Partilhai com os santos que passam
necessidade; aproveitai todas as ocasiões para serdes hospitaleiros. Bendizei
os que vos perseguem; bendizei, não amaldiçoeis. Alegrai-vos
com os que se alegram, chorai com os que choram.” (Rm 12,9-15).
O Apóstolo,
além de outros aspetos, prescreve o antídoto para a preguiça e para a inveja.
Contra a preguiça, temos a dedicação no afeto, na caridade na ação. Não se
trata só de combater a modorra de quem não quer sair da cama ou do canapé, mas de
não cair na omissão de praticar o bem ou de não ter a coragem de fugir da
ocasião de pecado (estes
é que são os contornos da verdadeira preguiça). E, quanto à inveja, recordo que o pior não é
desejar desalojar o outro do balouço ou querer ter carro ou dinheiro como ele.
O pior da inveja é ficar triste se os outros têm sucesso, se se alegram, e ficar
radiante se os outros caem em desgraça, se choram – enfim, quando não os
ajudamos. E não é preciso muito para ajudar. Às vezes basta ouvir ou até estar
apenas.
Lembro-me de
uma história de almanaque, que reza sucintamente que um pobre homem chorava por
ter perdido a esposa em consequência de doença grave. Passou por ele uma
senhora com um seu filho de tenra idade. Ao ver o homem a chorar, o menino
saltou para o colo do estranho e a mãe reparou que as lágrimas do homem iam
diminuindo até as faces ficarem perfeitamente enxutas. Entretanto, o miúdo
voltou para a mãe, que lhe perguntou:
– Que lhe disseste?
– Eu não lhe disse nada – respondeu a
criança – eu só estive a ajudá-lo a
chorar!
***
Qualquer tipo
de ajuda “que ajude mesmo” será uma boa forma de celebrar a Quaresma, que o Papa
entende como “um novo começo, uma estrada que leva a um destino seguro: a
Páscoa de Ressurreição, a vitória de Cristo sobre a morte”. É um tempo favorável
em que o cristão é chamado, de modo especial, a voltar para Deus “de todo o
coração” (Jl 2,12), não se ficando
pela mediocridade da vida, mas “crescendo na amizade do Senhor”. Ele “é o amigo
fiel que nunca nos abandona, pois, mesmo quando pecamos, espera pacientemente
pelo nosso regresso”.
Na base das
práticas que enformam a intensificação da vida espiritual (o jejum, a oração e a esmola), está a Palavra de Deus, que ora “somos
convidados a ouvir e meditar com maior assiduidade”.
E, para
ilustrar a mensagem pontifícia para a Quaresma, Francisco optou, desta vez,
pelo episódio lucano do pobre e do rico avarento (Lc 16,19-31). E salienta que a parábola inicia
com a apresentação de dois homens contrastantes, sendo que o pobre vem descrito
de forma mais detalhada no âmbito dum quadro sombrio, “como o homem degradado e
humilhado”.
O nome do
pobre – sublinha o Pontífice – é promissor, pois significa “Deus ajuda”.
Se “Lázaro é como que invisível para o rico, a nossos olhos aparece como um ser
conhecido e quase de família”. Assim, Lázaro ensina-nos que o outro é um dom. Mesmo “à
porta do rico não é um empecilho fastidioso, mas um apelo a converter-se e
mudar de vida”. E esta é uma boa nota para a Quaresma: “abrir a porta do nosso
coração ao outro, porque cada pessoa é um dom, seja ela o nosso vizinho ou o
pobre desconhecido”. E é a Palavra de Deus que nos ajuda “a abrir os olhos para
acolher a vida e amá-la, sobretudo quando é frágil”, pelo que “é necessário
tomar a sério também aquilo que o Evangelho nos revela a propósito do homem
rico”.
E o que nos
ensina o perfil deste homem rico, que aqui não tem um nome, é que o pecado no
cega e nos embute o espírito. Diz-nos O Papa:
“A sua opulência manifesta-se nas
roupas, de um luxo exagerado, que usa. De facto, a púrpura era muito apreciada,
mais do que a prata e o ouro e, por isso, se reservava para os deuses (cf Jr 10,9) e os reis (cf Jz 8,26). O linho fino era um linho
especial que ajudava a conferir à posição da pessoa um caráter quase sagrado.
Assim, a riqueza deste homem é excessiva, inclusive porque exibida
habitualmente: «Fazia todos os dias esplêndidos banquetes» (Lc 16,19).
Entrevê-se nele, dramaticamente, a corrupção do pecado, que se realiza em três
momentos sucessivos: o amor ao dinheiro, a vaidade e a soberba.”.
Por seu
turno, Paulo põe na ganância do dinheiro a raiz de todos os males (cf 1Tm 6,10), a qual gera a corrupção, a inveja,
a contenda e a suspeita. O dinheiro, em vez de instrumento ao nosso dispor para
o bem e a solidariedade, “pode-nos subjugar a nós e ao mundo inteiro numa
lógica egoísta que não deixa espaço ao amor e dificulta a paz”; e “pode chegar
a dominar-nos até ao ponto de se tornar um ídolo tirânico”. Mais: a vida do
endinheirado e do arrogante “está prisioneira da exterioridade, da dimensão
mais superficial e efémera da existência”.
Depois, vem a
soberba como o degrau mais baixo da deterioração moral, levando o homem a
vestir-se como se fosse rei, a simular a posição dum deus, esquecendo que é um
simples mortal. Por isso, quem o rodeia não cai sob a alçada do seu olhar. O
apego ao dinheiro e o egoísmo cegam: “o rico não vê o pobre esfomeado, chagado
e prostrado na sua humilhação”. É por isso que o Senhor nos diz claramente, na
condenação do dinheiro como objeto de idolatria:
“Ninguém pode servir a dois senhores:
ou não gostará de um deles e estimará o outro, ou se dedicará a um e desprezará
o outro. Não podeis servir a Deus e ao dinheiro” (Mt 6,24).
***
E com a Palavra de Deus, aceite como
dom e escutada a partir da palavra de homens – os novos Moisés e os novos
profetas (os Pastores, os catequistas ou os simples
cristãos) – que vivem ao pé de nós e não esperando que
venha Lázaro ao mundo, nós compreenderemos a urgência da conversão a Deus e,
consequentemente, à solidariedade fraterna, a partir do reconhecimento da nossa
condição humana: “tanto
o rico como o pobre morrem” e dum momento para o outro, os dois reconhecem que “nada
trouxemos ao mundo e nada podemos levar dele” (1Tm 6,7). E, no longo
diálogo que o rico tece, no Além, com Abraão, percebe que, “na sua vida, não
havia lugar para Deus, sendo ele mesmo o seu único deus” e reconhece Lázaro de
quem requer alívio dos sofrimentos, tal como devia ter feito com ele em vida. Era
tarde. A raiz do seu mal esteve em não
dar ouvidos à Palavra de Deus, levando-o a não amar a Deus e a desprezar o
próximo.
***
Assim, a
Quaresma há de ajudar-nos a afeiçoar-nos ao dom Palavra e a acolhê-lo com vista
à conversão ao dom de Deus e ao dom do outro, na oração e sacramentos, na caridade
pela justiça e no apostolado, ainda que seja só ajudando o próximo a chorar. Deus adiuvet!
2017.02.28 – Louro de Carvalho
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