A eleição de
Trump como 45.º Presidente dos EUA e, por consequência, as medidas que vem
tomando à velocidade de cruzeiro estão a produzir efeitos de diversos matizes.
As manifestações
de rua, o posicionamento de alguns operadores da justiça americana, a reação
das lideranças e das diplomacias de alguns países são significativas. A firmeza
subtil do Papa Francisco e a declaração do secretário-geral da ONU em relação à
medida decretada sobre o barramento à entrada de estrangeiros revelam um posicionamento
sui generis de não rejeição em
absoluto, mas de crítica pontual a medidas e não à política global.
Em relação
às medidas tomadas contra os acordos de comércio, à promessa de taxação
alfandegária, ao ceticismo perante a NATO e à descrença no contorno das
alterações climáticas ou à desvalorização do compromisso contra a emissão de
gases para a atmosfera, é de notar a reação dos diversos Estados e de várias
ONG, bem como as declarações do líder da nação chinesa (por ironia
do destino, o único dos grandes – tradicionalmente o arauto da política
totalitária e da economia estatizante – a fazer a apologia do capitalismo
neoliberal).
Por outro
lado, a União Europeia parece ter percebido o perigo que para si advirá do
processamento sem freio da política trumpista e estará a enveredar por uma via
de fortalecimento, ainda que difícil, do desenvolvimento do projeto europeu. Só
me pergunto se tem políticos capazes neste momento de levarem a carta a Garcia.
O Presidente da Comissão Europeia já anunciou não se recandidatar a um segundo
mandato…
É, ademais, digna
de registo a posição dos britânicos que não querem a visita de Donald Trump ao
Reino Unido e a pretensão do líder da Câmara dos Comuns em vedar o discurso do Presidente
norte-americano no Parlamento, bem como os vídeo turísticos de vários países europeus
(incluindo a sempre
neutra Confederação Suíça) e nossas
regiões autónomas a saudarem Trump e dar-lhe conselhos.
E é
significativo que, perante a suspeita de que a Rússia terá minado o mecanismo informático
de apuramento de resultados eleitorais nos EUA, pelo menos um país europeu tenha
anunciado a intenção de proceder à contagem manual dos votos em eleições que se
avizinham.
***
Obviamente, não
me revejo nas declarações de Jaime Nogueira Pinto no DN de 9 de fevereiro que denunciam a “tão furiosa raiva e
intolerância como as que temos visto nos media e nos ‘comentadores de
referência’ desde a eleição de Donald Trump. É a reação natural a uma postura
eleitoralista e governativa de afronta aos valores da democracia e da moderna convivência
social e política; e não deixa de ser a reação do 4.º poder ao apoucamento que
o nervo duro do círculo presidencial vem desferindo contra os formatadores da opinião
pública.
Nem vale a pena
o ilustre pensador vir tapar o sol com a peneira dizendo-nos que “o 45.º Presidente
dos Estados Unidos não é propriamente um erudito ou um pensador político” ou
nem sequer um político. É estafada a ideia daqueles que se dizem apolíticos
quando chegam à vida política ou nela estão enfiados até às orelhas. Esse argumento
não passa de um ex-libris que dá
licença à dita “linguagem direta, às vezes brutal” e disposta a “fazer seguir o
ato à palavra”.
Não. A forma
dos discursos e declarações destes homens ou mulheres assenta numa ideologia –
aquela que se quer contrapor à que reinou até há bem pouco tempo. Se esta era
inclusiva, democrata-cristã, republicana e socialdemocrata ou até liberal, a
que pretende impor-se é exclusiva, ultraliberal e economicista, mas com rosto
soteriológico e populista. É o novel messianismo em ação – com marcas
acentuadas de populismo para combater o desemprego, a precariedade, o desinvestimento
público, a alegada míngua de recursos. Resta saber como ficará o espectro
social e económico depois de aplicadas as medidas de Donald Trump.
Também não
me parece verdade, como quer dizer Nogueira Pinto, que não incomode a esquerda
ou a direita dos países democráticos o conjunto de “erros, confusões ou medidas
precipitadas e mal articuladas” e de obstrução à entrada de cidadãos de determinados
países. Isso incomoda pela falta de respeito pelos valores da democracia e pela
convivência minimamente decente instalada no concerto das nações. Mas é óbvio que,
como diz o colunista do DN, o que “mais
incomoda, confunde e enfurece é que um programa contrário aos princípios e objetivos
políticos do internacionalismo liberal e da esquerda progressista tenha chegado
ao poder na nação mais poderosa da terra pela mão de um milionário populista e troglodita”.
Não obstante
– e há que dizê-lo –, o Presidente não é o troglodita que aparenta e o
populismo dele só o compra quem quer. Ele cresceu economicamente e fez empório
patrimonial na era da alternância republicana/democrata no poder. E sabe-se que
se dava bem com os Clinton. E, se chegou ao topo da política norte-americana,
foi porque tem apoios que o induzem a dizer o que tem dito e a fazer o que tem
feito ou quer fazer. Não é virgem nem inocente em política (foi
republicano, independente, democrata, reformista e republicano). É, antes um cultor do maquiavelismo mais boçal e
provinciano e, pelo menos, um político de empresa e que fez formação em academia
militar e na Wharton School, da Universidade da Pensilvânia.
Por isso, tem
razão Nogueira Pinto ao denunciar a campanha antiTrump que “incendeia os
pilares da comunidade intelectual e jornalística, as estrelas de Hollywood, as socialites de Upper Manhattan e os
esquerdistas que partem montras na 5.ª Avenida”. Não se pode combater Trump com
o estilo Trump. Há que ser mais inteligente e utilizar os meios disponíveis
para o fazer cair na conta do razoável e dar força aos que nas audições do
Senado defendem pontos de vista diferentes dos do patrão sem que ele os despeça
ou ao próprio Presidente para que tome posições mais equilibradas em relação à
Rússia, ao Irão, à China, à NATO ou mesmo a Israel – como, aliás já parece vir
a acontecer.
A situação é
de tal ordem que aqueles que que passaram o tempo “a denunciar a mentira e a incoerência
dos políticos que prometem uma coisa e fazem outra” agora acusam Trump de cumprir
“aquilo que prometeu em campanha”. E, perante este eixo do mal, o ídolo dos comentadores
passou a ser a chanceler alemã Angela Merkel e o presidente Xi Jinping da
China. Agora, o capitalismo merkeliano já não embaraça os esquerdistas como não
importuna já os direitistas o autoritarismo nacional da China centralista.
Mais do que
combater de forma gregária e acrítica o fenómeno norte-americano, importa tentar
perceber o porquê das coisas que assim aconteceram e porque esta ideologia subterrânea
triunfa contra forças sistémicas que pareciam invencíveis. É que a eficácia de
Trump não reside em comunicar por Twitter, nem no estilo desabrido de neutralizar
os rivais, nem na retórica de pacificar “americanos zangados com as elites”. O
mais determinante é a perceção que o povo americano teve ou tem do falhanço das
políticas que foram levadas a cabo quer a nível interno quer a nível externo –
e sobretudo a perceção de que a identidade nacional se eclipsou ou mesmo
anulou. É por isso que ele clama “A
América em primeiro lugar!”.
***
Também é do conhecimento público que um congressista disse que o Presidente
apresenta um comportamento errático e uma desconexão em relação à verdade, que
é um perigo. Na verdade, Ted Lieu, congressista democrata, apresentará um
projeto de lei que exige a presença dum psiquiatra residente na Casa Branca. A
moradia do presidente dos Estados Unidos já é obrigada por lei a ter um médico
residente (desde 1928), mas o congressista democrata
entende que não é o suficiente e que está preocupado com a saúde mental do Presidente.
Ted
Lieu, que representa a Califórnia na Câmara dos Representantes, disse ao
Huffington Post que é urgente a
adoção desta legislação, principalmente tendo em conta o comportamento errático
de Trump, que o torna “um perigo para a república”. No pressuposto de que “a
saúde mental é tão importante como a saúde física” e que qualquer presidente
deveria ter fácil acesso a um profissional em saúde mental devido à pressão do
cargo, Lieu perguntou:
“Se há questões sobre a
saúde mental do Presidente dos Estados Unidos, que melhor forma há de arranjar
um tratamento para o Presidente?”.
O
congressista apontava “desvinculação” da verdade por parte de Donald Trump,
espelhada no facto de o Presidente mentir várias vezes sobre factos que são
fáceis de comprovar e em alguns dos comportamentos erráticos. E explicou-se:
“Não é normal que o Presidente
dos Estados Unidos, em 24 horas, escreva sobre morte e destruição e notícias
falsas e no mal. […]. O mais perturbante disto tudo é que é muito claro que ele
tem uma desvinculação com a verdade. Na primeira conferência de imprensa da sua
administração, eles poderiam ter falado de empregos ou cuidados de saúde. Mas
eles falaram sobre o tamanho da multidão de espetadores e mentiram. Foi uma das
cenas mais bizarras que já testemunhei no mundo da política”.
À totalmente
perturbante desconexão da verdade Lieu acrescenta o seguinte comentário:
“Quando se junta a isso o
sufoco dos opositores, os ataques à imprensa livre e os ataques à legitimidade
judicial, então isso leva-nos pela estrada ao autoritarismo”.
É por
tudo isto que o congressista democrata conclui que “ele é um perigo para a
república”.
Já no
ano passado, alguns sugeriram que a saúde mental de Trump deveria ser avaliada
antes da tomada de posse. Um deles foi o congressista Jason Chaffetz. Pediu que
o Presidente fizesse um exame de saúde independente, inclusive com psiquiatras,
em janeiro, justificando:
“Se vai ter nas mãos
códigos nucleares, provavelmente devíamos saber como está a sua saúde mental”.
***
A
avaliação da saúde mental do Presidente dos EUA, como a de qualquer líder nacional
deveria ser uma medida regular e rotineira, não devendo ser objeto de lei a
elaborar e aprovar a propósito de Trump. Todos os países a deviam adotar. Porém,
não é necessário estabelecer a necessidade de residência de um psiquiatra junto
do líder. Por este andar precisaríamos de vários especialistas. Basta que o médico
residente saiba, queira e possa requisitar um especialista conforme as
necessidades que vá detetando.
A
política tem de cobrir as necessidades, mas deve ser razoável. E quer-me
parecer que o mal em Trump não é do foro psiquiátrico, mas da ambição e do descaramento.
Oxalá
que as eleições norte-americanas venham a constituir um poderoso antídoto para
os perigos para a democracia que espreitam em vários países da Europa.
2017.02.12 – Louro de Carvalho
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