O Santuário de Fátima
festeja, neste ano do centenário das aparições, o dia litúrgico dos dois
pastorinhos já beatificados com um programa especial para crianças.
Assim, mais de 600 crianças participarão na festa que evoca os
Beatos Francisco Marto e Jacinta Marto, entre 19 e 20 de fevereiro. A
organização do evento sustenta tratar-se de “uma experiência única de encontro
e descoberta” da vida dos dois pastorinhos, que “permitirá acolhê-los como
modelo e referência de vida”.
O programa
especial começará no dia 19 de fevereiro, às 15,30 horas, com um momento
musical evocativo da vida e espiritualidade dos dois beatos. O já tradicional Concerto Evocativo dos Três Pastorinhos de
Fátima é, nesta 3.ª edição, assegurado pela Cappella Musical Cupertino de
Miranda, sob a direção de Luís Toscano, com a estreia absoluta da obra de
Eugénio Amorim encomendada pelo Santuário. Este momento musical, inserido no Ciclo Louvor Perfeito, no âmbito das
celebrações do Centenário das Aparições, terá lugar na Basílica de Nossa
Senhora do Rosário de Fátima. A composição de Eugénio Amorim, a ouvir em
estreia absoluta tem por título “Em Teu
Ventre” e foi composta para 8 vozes a
cappella, sobre o texto literário, da mesma denominação, de José Luís
Peixoto (JLP).
As
celebrações litúrgicas propriamente ditas iniciam-se no mesmo dia 19, domingo,
com o terço às 21,30 horas na Capelinha das Aparições, onde estarão os ícones
dos beatos Francisco e Jacinta, seguido de procissão para a Basílica de Nossa Senhora
do Rosário de Fátima, onde será feita a veneração junto dos túmulos dos
Pastorinhos.
O programa prossegue,
depois, no dia 20, com o terço às 10 horas na Capelinha das Aparições, seguido
de procissão com os ícones dos pastorinhos para a Basílica da Santíssima
Trindade, onde permanecerão todo o dia. Pelas 14 horas, será a concentração e o
acolhimento das crianças na Basílica da Santíssima Trindade, onde a irmã Ângela
Coelho, religiosa da Aliança de Maria, médica e postuladora da causa de
canonização dos dois pastorinhos, fará uma catequese para as crianças às 14,30
horas, a que se seguirá a oração do terço do rosário, concluindo-se o encontro,
pelas 15,30 horas, com o cântico do Hino dos Pastorinhos.
***
A Cappella
Musical Cupertino de Miranda é composta por oito elementos com formação
académica específica e criada com o objetivo de divulgar o riquíssimo
património da música renascentista portuguesa. Com uma média superior a 15
apresentações por ano, desde a sua estreia em março de 2010, esta agremiação
musical apresentou já várias dezenas de obras inéditas. Numa abordagem
performativa sem precedentes, alguns destes inéditos têm sido transcritos a
partir das fontes originais pelos próprios elementos da Cappella Musical sob a
supervisão do seu diretor artístico, Luís Toscano, e do Prof. Doutor José
Abreu.
Após ter
iniciado a sua atividade como coralista no Coro dos Pequenos Cantores de
Coimbra, Luís Toscano prosseguiu os estudos musicais no Conservatório de Música
de Coimbra, obtendo simultaneamente a licenciatura em Economia na Universidade
de Coimbra.
Concluiu, em
2009, o mestrado em Música na Universidade de Aveiro. Especializando-se na
música vocal, tanto a solo como em conjunto, dos períodos Renascentista e
Barroco, fundou, com Tiago Matias, o grupo La
Farsa (com enfoque no repertório para voz e instrumentos de corda pulsada) e foi bolseiro da Fundação para a Ciência e a
Tecnologia num projeto de investigação, edição e interpretação de música
portuguesa dos séculos XVI e XVII.
***
Uma vez que a obra de Amorim tem por título “Em Teu Ventre” e
incide sobre o texto literário de José Luís Peixoto, faz-se referência ao
romance e ao escritor de Galveias, Ponte de Sor.
Segue-se,
por comodidade, o conteúdo da entrevista do próprio autor à Rádio Renascença em
27 de outubro de 2015. Segundo JLP, o romance tem como protagonista a Irmã
Lúcia e os acontecimentos de 1917 (de maio a outubro), sendo que o conhecimento de
Fátima transformou em muito a visão do escritor sobre Fátima, levando-o a
“lançar luz sobre o assunto e contribuir modestamente para um esclarecimento e
reflexão coletiva” sobre a questão fatimita.
Das aparições de Fátima diz tratar-se
de “um tema tão
impressionante e sedutor para quem escreva e para quem se interessa por
História” que sente a “vontade de fazer a pergunta ao contrário: Como não escrever sobre este assunto?”. Com efeito, é história que, em
Portugal, toda a gente conhece, mas que o surpreendeu bastante “enquanto a
aprofundava”.
Por isso, tentou fazer “um trabalho de
investigação”, mas, porque se trata de um momento sobre o qual há muitas fontes,
acabou por se cingir a duas fontes imprescindíveis: as Memórias da Irmã Lúcia e o livro do padre João Marchi, “Era uma Senhora mais Brilhante do que o Sol”.
Achou-as suficientes “para contar aquela história que queria contar”, embora
não seja tudo o que há para dizer sobre este assunto, “até porque o período a
que a narrativa se cinge é de maio a outubro de 1917, justamente o período das
aparições”. Delimitou o tema a aspetos históricos, relativos a Lúcia, a
protagonista do romance, e também à questão das aparições.
O livro é muito centrado em outras
figuras femininas. Além de Lúcia, há também a sua mãe biológica e Nossa Senhora.
É um livro a várias vozes, que acaba por ter duas dimensões: uma, mais coletiva, já que esta
história, “sendo do mundo, é muito particularmente nossa”; e outra, mais
individual, centrada na questão das mães. Existem várias no livro,
designadamente a mãe biológica de Lúcia, a Mãe de Jesus, Nossa Senhora, e a mãe
do autor. Esta é, por ironia, a mãe mais ficcional do romance por não ter grande
ligação com a própria mãe de JLP. “É a mãe crítica, consciência, é quase a voz
que nós temos na nossa cabeça quando nos preparamos para fazer alguma coisa e
temos dúvidas”.
Na interpretação de JLP, a mãe de Lúcia “é uma figura que sofre ciúmes, tem a
tal ‘ferida aberta’ com a filha quando esta parece tê-la substituído por Nossa
Senhora”. É a
mãe algo complexa, que se contradiz em certos momentos, como as demais pessoas.
Se, muitas vezes, tem posturas consideradas duras para com a filha, também se vê
em muitos momentos como gosta dela, sobretudo a tentar poupá-la daquilo que
acha que pode ser difícil para Lúcia.
Já a “Irmã Lúcia é um bastião de fé,
uma mulher de grande firmeza”. Entre os três videntes, a criança Lúcia é a protagonista do tempo
que está retratado no livro, é a personagem natural, por diversos motivos: era
a única que via, ouvia e falava com Nossa Senhora; era a mais velha; e foi ela
que realmente deu esta narrativa ao mundo.
E o livro é enriquecido com momentos poéticos escritos em versículos, momentos que
lembram orações e texto bíblico. Tem sonoridade bíblica, sobretudo por uma questão estética. É
uma estética que “transporta um imaginário, mas que aqui se apresenta na sua
perspectiva mais literária”. Assim, o autor adverte:
“Não são textos religiosos, nem tentam
ser, mas tentam captar essa forma e essa beleza que existe nos textos
religiosos. É uma forma de pedir emprestada alguma solenidade e profundidade
presentes nesses textos.”.
Sobre a relação com Fátima que restou
para o escritor depois do livro, confessa:
“Escrever um livro transforma sempre
muito a relação que se tem com qualquer assunto. Depois de ter vivido estas
páginas, depois de me colocar neste lugar, transformou-se bastante a minha
visão. Não o consigo descrever em palavras. É uma vivência íntima. Talvez fosse
necessário outro livro para o explicar.”.
O autor sentiu mesmo o peso da
responsabilidade de estar a tocar num assunto como Fátima. Diz que, “a nível pessoal, talvez tenha sido
esse o maior desafio presente na escrita deste livro”, pois “trata-se de algo
muito precioso para milhões de pessoas e que em momento nenhum tive a intenção
de melindrar, pelo contrário”. O interesse de JLP com este livro “foi sempre lançar
luz sobre o assunto, contribuir modestamente para o esclarecimento e para uma
reflexão coletiva” e “contribuir para uma vivência deste tema de um modo mais
sólido que tenha também esta ajuda de todo este mundo contido nestas páginas”.
***
Miguel Real,
no Jornal de Letras, de 6 de dezembro
de 2015, faz assentar a crítica ao romance em 10 âncoras de leitura, o que se
ilustra, a seguir, de forma sintética.
Quanto ao estatuto do narrador,
trata-se de narrador clássico,
múltiplo e diferenciado segundo as perspetivas individualizadas das personagens
Deus, Lúcia e Maria. Segundo Miguel Real, Deus é um “narrador sentencioso,
atemporal, universal, judicativo”; Lúcia é “narradora inocente” (fala com
animais e objetos); Maria é “narradora
múltipla, […] emotiva e sofrida – exemplo cultural paradigmático da mulher/mãe.
Do lado da narrativa cinematográfica, o romance segue “como uma tela visual” em que “as
imagens avulsas da vida de Lúcia e da sua família e os acontecimentos
principais, com exceção do relato das Aparições, se vão sucedendo, descritas
liricamente como fluxos de consciência, fantasmas da realidade, criando a
ilusão da verosimilhança”. Trata se da “imaginação de um universo modelado pela
diferente realidade acontecida”.
No âmbito da
vertente de memória histórica, um dos
mais importantes elementos enquadradores do romance é a história de Fátima no
quadro da “multiplicidade da sua hermenêutica religiosa e ateia”. JLP optou, de
um modo original, por não ceder à facilidade do realismo; por respeitar as
Aparições sem as envolver no dilema maniqueísta e dicotómico da verdade e da falsidade
e por apostar no lirismo como manto envolvente da narrativa,
espiritualizando-a.
O texto bíblico é, segundo
Real, um “texto-matriz alimentador do
romance” ou um “texto-arca” com que o autor “dialoga continuamente na sua obra”,
um “texto inspirador, no plano da expressão, que sustenta o estilo bíblico da
intervenção de Deus como narrador”, que ganha aqui “o estatuto ficcional do ser
do texto e não como transposição religiosa verdadeira”.
O estilo é lírico, integrado no habitual do autor, em que as
palavras enquadram sentimentos, “cultivando uma perceção ou sensualidade
emotiva, que desperta no leitor uma comoção estética”. Todo o parágrafo como
que nasce da sua primeira frase “como se esta fosse a única e as seguintes seus
desdobramentos, explorando-a descontinuamente, não deixando de impor, no
entanto, um ritmo sintático contínuo e harmónico, fortemente musical”.
Na categoria de tempo, é de considerar o ano de 1917, sendo que Fátima, a casa
e a aldeia de Lúcia configuram “uma temporalidade específica”. Porém, a
vertente estilística lírico-poética, similar, no ritmo, à união de versos num
poema, eleva o primeiro nível de temporalidade a uma beleza estética atemporal,
condicionante da “leitura da ação e do enredo particulares a um modo de
expressão universal”. Ora “se está em casa de Lúcia, com a panela do almoço ao
lume”, ora “se reflete, sobretudo nos versículos sentenciais de Deus, sobre a
criação do mundo, a liberdade, o destino e a angústia humana”.
O espaço é o da serra d'Aire, Fátima. E,
como o tempo se abstratiza e atemporaliza, também o espaço profano se transmuta
em espaço sagrado devido à hierofania
das Aparições, mas nunca narrado, só sugerido pelos efeitos: Maria da
Capelinha, multidão, intervenção do padre… A roupagem lírica combina com a mundivisão
do espaço sagrado e o evento hierofânico das Aparições combina com a
sacralidade territorial das revelações. No final, anuncia-se, pelo afã de Maria
da Capelinha, a instauração do sagrado através da edificação duma capela.
Os sentimentos de medo e espanto
(o tremendum e o fascinans) encontram-se em Em Teu Ventre subordinados à descrição da emoção,
do medo como sentimento que tanto desperta o pavor do desconhecido como fascina
pelo maravilhoso. A multidão, desorientada e narcotizada por se sentir privilegiada
pelo evento e querendo “tocar” os Pastorinhos, é movida pelos sentimentos de
medo e espanto: violenta a casa de Lúcia, ameaça a vidente e constrange Jacinta
e Francisco.
Com a
postura de adoração mistura-se uma espécie de veneração exagerada, que a alguns
parece idolatria. Com efeito o
referido duplo sentimento de
medo e espanto sagrados cria uma onda de veneração entre a multidão expressa em
curiosidade infantil, rogos e preces, novos vestidos e coroas de flores para
Lúcia e Jacinta; elevação de Lúcia ao estatuto de intermediária entre o profano
e o sagrado. São estes movimentos iniciais de veneração exagerada que hão de converter Fátima num local de autêntica
oração e penitência para milhões de devotos.
Mas o romance é um verdadeiro hino
à Mãe, a qual é, nas diferentes
concretizações, a grande personagem de Em Teu Ventre. A mãe de
Lúcia surge como símbolo da mulher “sofredora, resignada, protetora da filha e
socorro da família”. Não se revolta nem quando o marido a procura a desoras. Mas
repreende Lúcia, presumindo que esta mente ou quando Lúcia brinca fingindo ser
Nossa Senhora. Encara o destino, que a fez mulher como ser humano de segunda
categoria; a fatalidade, que a marcou como mãe duma vidente; e o silêncio que
se ergue em torno do clamor das mães. E os últimos versículos da fala de Deus “retratam
a Mãe do Céu, que é a mãe da Humanidade, a mãe de todos, e, portanto a mãe de
Lúcia”. É a Mãe singular a unir-se “à Mãe cósmica em forma de laço que tudo
une, o Amor de Mãe, a Esperança dos Homens”.
***
Que
o olhar beatífico de Jacinta e de Francisco seja um farol de orientação das 600
crianças que receberão a catequese da postuladora. Que a música de Amorim e o
romance de Peixoto se congracem de modo que os crentes se entranhem no ventre
materno de Maria, a Senhora Orante da Inocência e desfrutem dos gozos da
Eucaristia vivamente celebrada e participada. E que os descrentes encontrem
cada vez mais na iluminação fatimita a pedra de toque para a abertura da mente
à via da fé, sendo o rosário de tantos recurso poderoso para este encaminhamento.
2017.02.16 – Louro de Carvalho
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