Domingos
Andrade assina no JN de hoje, dia 18
de fevereiro, um artigo de opinião a que deu o título “As memórias de Cavaco”. E nele fala de estranheza a vários níveis.
Porém, a mim
só me surpreende o título “Quinta-feira e
outros dias”, porquanto esperava que o ex-Presidente quisesse falar do seu
desempenho como titular de um órgão de soberania unipessoal e na sua relação
com os demais órgãos do poder (aspetos positivos e aspetos negativos) e com o povo, já que fez questão de o adorar com os
seus “roteiros”.
Afinal, o
que o anterior inquilino do Palácio de Belém quis evidenciar foi a relação
desconfiada e algo tumultuosa nos encontros de quinta-feira com um
Primeiro-Ministro para o cumprimento do dever do Chefe do Governo de informar o
Presidente acerca dos assuntos respeitantes à condução da política interna e
externa do país, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 201.º da
Constituição, e uma palavra de censura a algumas tomadas de posição do Governo
de Sócrates em relação a questões como negócios da PT e da TVI. A nível secundário,
critica os encontros que teve na qualidade de Primeiro-Ministro com o Presidente
Soares como aligeirados e sonolentos; refere que Passos Coelho não levantava a
voz e esperava que Aníbal iniciasse a conversa (quando o dever de informar recai sobre
o Primeiro-Ministro e não sobre o Presidente), não o criticando alegadamente por agora ser o chefe da oposição; e quase
nada diz aos costumes (a não ser uns ferroezinhos) sobre o relacionamento com António Costa, que
praticamente não teve história, a não ser na colagem do Governo a Cavaco, antes
duramente vilipendiado pelo então Presidente, a temas caros como o do mar e um
convite inusitado de Costa a Aníbal para presidir a um Conselho de Ministros,
nos termos da alínea i) do artigo 133.º da CRP.
Não me
parece estranha a rapidez da publicação do livro. Ele estava a ser preparado ainda
nos idos de março de 2015 e Fernando Lima publicara um livro de memórias
parciais ainda estava em Belém com Aníbal e por este arredado de funções.
É certo que “não
é tradição em Portugal que os ex-presidentes da República escrevam sobre as suas
relações no exercício do poder e que sejam tão detalhados nos pormenores”, mas
também não o é em relação aos Primeiros-Ministros e Cavaco publicou dois
volumes de autobiografia política sobre o seu desempenho primo-ministerial. Trabalhara
com dois Presidentes: Eanes e Soares. E trabalhou com três Primeiros-Ministros,
mas só um estava debaixo de olho (e também esta particularidade não é
surpreendente). E Cavaco
orgulha-se do que publicou abundantemente ao longo da sua vida política.
Ainda não
temos passado um ano sobre a emigração de Aníbal para fora do Palácio de Belém.
E parece que sentia urgência em se justificar perante o país, cônscio da sua má
saída do exercício do cargo, com níveis de popularidade demasiado baixos. Acha
que não pode passar assim para a História. Por isso é que fala quase sempre na primeira
pessoa, suplantando os outros, impondo-lhes deveres e não aceitando sugestões. Tudo
isto – e concordo com o colunista do JN
– revela um “sentimento que o leva a revelar conversas, chamadas de atenção,
contactos com o antigo primeiro-ministro José Sócrates, com quem mais coabitou”.
Também o
livro não contará validamente para a História porque não respeita o distanciamento
que permita um rigor, uma frieza e uma imparcialidade na análise dos acontecimentos.
E Aníbal limita-se a fazer um relato autoencomiástico sobre os factos e a
interpretação aligeirada dos mesmos sem um mínimo de análise de conteúdo e de circunstâncias.
Além disso,
o livro pretende ser um dado para a História arquitetado por um autoproclamado protagonista
dos acontecimentos, esquecido de que os caminhos que levaram àquela austeridade
para a qual supostamente não havia alternativa foram gizados por vários
operadores.
Do ponto de
vista político, representa uma intervenção primária, já que não deu tempo para
o amadurecimento secundarizante da iniciativa. E a prestação de contas facilmente
se converte em ajuste de contas. E, se queria vingar-se, devia saber que “a
vingança serve-se fria”.
Por outro
lado, Cavaco Silva revela uma coerência pertinaz de convicções e de postura. Ninguém
o pode acusar de escrever uma coisa de que não tenha já falado e de fazer
revelações sobre algo de que não tenha avisado a lusa pátria.
Ele esteve
sempre bem e quer mostrar o contraponto: teve pela frente um Primeiro-Ministro que
subvalorizava compromissos, mentia e liderava uma “máquina tenebrosa” – para os
cidadãos portugueses saberem que foi esse o calcanhar de Aquiles dos seus
mandatos presidenciais.
Esta
publicação, atendendo a que se tratava de dois homens poderosos que sabiam
muito bem esgrimir as armas de que dispunham, poderia dar um rico filme de
personagem ou uma boa peça teatral de cariz trágico-dramático.
Sendo linear
no que exibe da coabitação entre um Presidente e um Primeiro-Ministro e tendo
Cavaco estado de um e de outro lado da barricada em momentos diferentes, o livro
acaba por expor inabilidades, erros e inações dos seus mandatos, deixando pairar
a interrogação sobre se, sendo o Chefe de Estado a reserva moral e política da
nação, não deveria ter sido mais firme e mais duro, denunciando no exercício de
mandato os factos que agora vem a apontar, já sem remédio. Porque não dissolveu
o Parlamento (alínea e do art.º 133.º da CRP) em finais
de 2008, por exemplo? Porque esperou por 2011 para fazer frente a Sócrates,
aproveitando a noite da vitória eleitoral nas presidenciais e sobretudo o ato
de posse a 9 de março? Porque não quis demitir o Governo “para assegurar o funcionamento
das instituições democráticas” (art.º 195.º/2 da CRP)?
***
Sabe-se que
muitos se preparam para levar em ombros o ex-Presidente pela publicação e pela
ação que ela revela na convicção séria ou fingida de que a crise e o desgoverno
foi obra de um Primeiro-Ministro que usou e abusou do poder para proveito próprio
e de amigos sem lei ou por trás da lei, esquecendo a ação e a omissão dos
demais.
Em contraponto,
é pena que o principal visado – José Sócrates – não tenha hoje autoridade moral
e política para enfrentar a publicação de Cavaco e opor-lhe um contraditório credível.
Em todo o caso, merecem atenção alguns disparos que o hoje indiciado (não acusado,
muito menos condenado) de três crimes,
o antigo Primeiro-Ministro (aquele com quem Aníbal trabalhou durante mais tempo), desferiu em artigo de opinião no DN de hoje.
Na verdade, “nunca
um presidente ou primeiro-ministro relatou as conversas tidas entre ambos
enquanto exerceram funções”. Além da boa educação que Sócrates sublinha na
ordem das razões que sustentam a sua alegação, sublinha com razão o “necessário sentido de Estado”.
Não valoriza
“as vulgares opiniões políticas expressas no livro” ou “outras conversas, na
sua maioria distorcidas e falsas, que não passam de vulgar exercício de
mesquinhez disfarçado de relato histórico”. Todavia, pronuncia-se sobre o “episódio
das escutas”, que não teve “outro propósito que não seja o de distorcer e
falsear a verdade histórica”. Parece demasiado ousada a postura de contradizer
o ex-Presidente neste aspeto. Mas Sócrates refere:
“Houve, é certo, uma reunião no dia 16 de setembro de 2009, que recordo
muito bem. Como poderia esquecê-la? Nessa reunião exprimi ao então Presidente o
meu protesto por não ter visto desmentida uma grave acusação de escutas que o
meu gabinete teria feito ao Palácio de Belém e que o Presidente sabia ser
falsa. O Presidente respondeu-me, como aliás faria noutras ocasiões, que não
interromperia as suas férias para responder aos deputados do meu partido que tinham
criticado a participação de membros da casa civil do Presidente na elaboração
do programa de governo do PSD.”
É óbvio que
o então Presidente terá desviado a questão das escutas para a alegada colaboração
de elementos da sua Casa Civil na confecção do programa eleitoral do PSD. Mas Sócrates
não tem razão em alegar que “não percebia a ligação entre os dois assuntos”. E,
se lembrou que os deputados “não eram do meu partido” (sic), mas deputados à Assembleia da República, membros de
um órgão de soberania, e que só eles poderiam responder por eles”, também
deveria ter admitido que o Presidente também não teria ascendente para impedir
que membros da sua Casa Civil colaborassem com quem entendessem, fora de
serviço.
Era excrescente
lembrar a Sócrates que “estava a falar com o Presidente da República”, mas
também era inadequada a lamúria de que a questão das escutas prejudicava o PS e
era redundante lembrar ao Presidente que “estava ali a falar-lhe como
primeiro-ministro, eleito democraticamente e contra o qual se tinha lançado uma
falsa e maldosa campanha para que perdesse as eleições”.
É óbvio que,
lido o livro de Fernando Lima, é líquida a conclusão de que a suspeita de escutas
terá vindo de ordem superior ou então a verdade não foi apurada. E fico sem
saber da real veracidade do que Sócrates afirma a seguir:
“Pela primeira vez na história democrática do país ficou provado que um
Presidente concebeu e executou uma conjura baseada numa história falsa, por
forma a deitar abaixo um governo legítimo em funções”.
Porém,
muitas vezes, em política o que parece é. Aplicar-se-á ao caso o que o ex-Primeiro
Ministro ressentido comenta:
“Todos os que acompanharam a vida política na altura da crise política
sabem bem que a única preocupação do Senhor Presidente era aquela que revelou
na noite da sua reeleição: vingança e desforra. O seu discurso de posse foi o
sinal de que a direita precisava para atirar o governo abaixo e provocar
eleições. Na Assembleia da República, e pela primeira vez na história
democrática, chumbou-se um acordo e um compromisso com as instituições
europeias que um governo legítimo tinha conseguido para que o país não fosse
forçado a pedir ajuda externa.”?
E ressalta
dos comentários de Sócrates na RTP1 antes da sua detenção:
“Na crise política de 2011, ele [Cavaco Silva] sempre foi a mão por detrás
dos arbustos”.
***
Em suma, relativizando
as afirmações de Cavaco e as de Sócrates, penso que o ex-Presidente deveria ter
resguardado a excelência da Presidência da República e o prestígio do Estado e
das suas instituições. O livro, produzido a quente, não vale como peça
estilística e acaba por constituir um mau serviço ao país, diabolizando a classe
política perante os cidadãos. Não faz História e revela coisas que não deviam
ser reveladas. E Cavaco Silva era considerado um institucionalista!
Veria melhor
algumas declarações do antigo Chefe de Estado numa futura remota entrevista. Mas
não lhe posso negar o direito à liberdade de expressão. Que assuma as consequências!
2017.02.18 – Louro de Carvalho
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