sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

O Concílio Vaticano II e o Índice dos Livros proibidos

O semanário Ecclesia, de hoje, dia 17 de fevereiro, na esteira dos números anteriores, que exibem uma local sobre os 50 anos do Vaticano II, publica uma nota a que dá o título II Concílio do Vaticano: Quando acabou o clima de asfixia intelectual”, evidenciando uma importante consequência da magna assembleia dos bispos católicos chegada ao seu termo em dezembro de 1965. É a abolição do índice dos livros proibidos (Index Librorum Prohibitorum), mas efetivada só a 14 de junho do ano seguinte.
A manutenção de um catálogo geral de obras proibidas, por alegadamente beliscarem a teologia, a exegese bíblica e a doutrina orientadora dos costumes, não era compatível com o ambiente e a postura da Igreja plasmada na Gaudium et Spes (Constituição Pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo), o Decreto Inter Mirifica, sobre os Meios de Comunicação Social, a Declaração Nostra Aetate, sobre a Igreja e as Religiões não Cristãs ou a Declaração Dignitatis Humanae, sobre a Liberdade Religiosa, bem como com a encíclica de Paulo VI Ecclesiam Suam, sobre o diálogo. Por outro lado, o Concílio tomou uma postura diferente da tradicional, a de deixar de encarar como automaticamente excomungados os que professam outras religiões e doutrinas.
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A Igreja Católica sempre teve preocupações culturais, mas também levou sempre a peito velar contra a difusão de ideias que contrariassem a sua doutrina, ensinamentos, dogmas, organização e interesses. Tal preocupação antecede a criação de quaisquer órgãos eclesiásticos específicos encarregados da censura e proibição de livros e escritos em geral. Assim, o I Concílio de Niceia, convocado no ano de 325 pelo Imperador Constantino, com o assentimento do Papa Silvestre I, entre outras decisões, proscreveu a obra de Ario, considerado herege e condenado. E muitos outros exemplos se lhe seguiram.
Antes da invenção da imprensa, em meados do século XV, era relativamente fácil o controlo das produções dos escritores, cuja elaboração e reprodução eram manuscritas, trabalho de que se ocupavam os copistas. Acresce que, na Idade Média, a grande maioria dos copistas eram frades, o que facilitava a fiscalização exercida pela Igreja, detentora do monopólio da cultura literária.
A vigilância da Igreja sobre as ideias, obstando a quanto não merecesse o seu beneplácito, foi uma das causas da criação das sociedades secretas, alegadamente baseadas no idealismo, coragem e fidelidade dos seus membros, no quadro das quais se mantinham a luta permanente contra os opressores. Era este um meio de preservar a liberdade de consciência. Há exemplos históricos de ideais oprimidos que sobreviveram graças ao recurso à transmissão oral e ao método dos escritos simbólicos, cujo significado só era conhecido pelos iniciados, instruídos a respeito das chaves e símbolos. Era uma forma de ludibriar a fiscalização dos censores.
Com a imprensa, que se expande e aperfeiçoa rapidamente na Europa, a partir do século XVI, começam a emergir maiores dificuldades no controlo das consciências e do pensamento. O renascimento das artes, letras e ciências marca o fim da Idade Média e inaugura uma nova era, em que, não obstante os esforços e reformas, a Igreja de Roma ia perdendo o seu poder.
Nesta situação, surge a criação dum órgão especial na cúpula da Igreja, a Sagrada Congregação do Índice, como tentativa obstinada para manter a censura e a proibição de livros e enfrentar as novas condições do mundo. Os catálogos dos livros proibidos começaram a surgir em Paris (1544), Veneza (1549), Lovaina (1550), Florença (1552) e Milão (1554). Mas “o primeiro índice de livros proibidos de origem papal só aparece em 1559, quando presidia aos destinos da Igreja o Papa Paulo IV”, índice mais tarde suspenso por excessivamente severo. E a instituição formal do Index librorum proihibitorum (ou simplesmente Index) resulta de decreto do Concílio de Trento, em 1563, e publicado pelo Papa Pio IV no ano seguinte – obra preparada por uma comissão designada pelo Concílio e formada por dezoito bispos.
As regras do Index sofreram depois diversas modificações nos pontificados de Pio V, que instituiu a Sagrada Congregação do Índice em 1571 (reformada por Gregório XIII em 1572), Alexandre VII, Sisto V, Clemente VIII, Bento XIV e Pio IX.
A inquisição e os tribunais diocesanos representaram outro meio de controlar o livro e aquele que lia a obra. Em Portugal, o primeiro rol de livros defesos apareceu em 1547; e, em 1561, 1581 e 1642, foram promulgados outros índices expurgatórios. Com o Papa Leão XIII, dado o cada vez maior número de livros proibidos (mais de 40 índices atualizados), determinou-se (1896) que deixavam de o ser os que foram editados antes de 1600.
Até 1908 só se julgavam os livros denunciados. Como o Santo Ofício também tinha direito de censurar livros, por ser este um dos meios de defender a fé, Bento XV aboliu, em 1917, a Congregação, passando as atividades desta para a Congregação do Santo Ofício (que deu lugar à atual Congregação para a Doutrina da Fé). A última edição típica do Index foi publicada em 1930, sob a autoridade de Pio XI. No entanto, ela teve 32 edições oficiais de 1564 a 1948, sendo em 1966 decidido pela Congregação para a Doutrina da Fé que não mais seria reeditado.
Abolido o tribunal da inquisição em 1821, que replicava as proibições do Index, as referências do Index Librorum Prohibitorum passaram a constar, oficialmente, só do índice Romano da Congregação do Santo Ofício e de raros documentos episcopais.
Eram proibidos, de maneira geral, as versões não autorizadas das Escrituras, os livros condenados anteriormente à criação do índice, os livros dos heréticos que tratassem de religião, as obras que expusessem doutrinas opostas ao catolicismo (racionalistas, materialistas, deístas, ateístas, marxistas), as publicações imorais ou obscenas, etc. Acham-se entre os autores, dos quais uma ou mais obras foram postas no Index, os seguintes: Abelard, D'Alembert, A. Arnauld, Bacon, Bayle, Boccage, G. Bruno, Calvin, Cardan, Condillac, Condorcet, B. Constant, Dante, Descartes, Diderot, Erasmo, Fénelon, Fourier, Galileu, Heine, Helvetius, Hobbes, V. Hugo, Hume, Huss, Jansenius, Kant, La Fontaine, Lamartine, Lamemais, Locke, Lutero, Melanchthon, Mercator, Milton, Montaigne, Montesquieu, Passcal, Quesnel, Quinet, Rabelais, Rousseau, Saint-Cyran, Sainte-Beuve, Spinoza, Voltaire, Wyclif, Zwingli.
Eram “verdadeiras obras de Satanás”, na expressão do Cardeal Merry Del Val, que exerceu o cargo de secretário da Congregação do Santo Ofício. Mas o Index não se restringia aos livros religiosos; abrangia quaisquer produções sobre assuntos de diversas naturezas.
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O Código do Direito Canónico, de 1917, disciplinador dos interesses da Igreja, cuja influência extravasara o âmbito interno da Instituição para se tornar norma jurídica em diversos países, juntamente com as leis civis nacionais, era fonte inspiradora do Index atualizada. Assim, “a proteção à fé e aos costumes”, prevista no predito Código, era a base da ação da Igreja no setor cultural, alicerçando e justificando a censura e a proibição de livros. Sem licença da autoridade eclesiástica não podiam ser impressos livros sobre a História da Igreja, a Teologia e o Direito Canónico. As Sagradas Escrituras, anotadas e comentadas, também se incluíam nesse rol. Sem o Nihil Obstat do censor da Cúria Romana ou da Cúria Diocesana, conforme a competência de cada uma, e o imprimatur da autoridade, o livro estava proibido aos fiéis. Outro dispositivo especial (cânon 1399) estipulava a norma geral de proibição, que substituía e supria as omissões de proibições em casos específicos. Nessa regra estavam incluídos os livros de defesa do materialismo, como os de Marx, Lenin e Engels, bem como os considerados imorais e obscenos.
A proibição duma obra, segundo o cânon 1397, devia ser precedida de denúncia formulada por um católico. E, decretada a proibição, ficam automaticamente interditadas a edição, leitura, guarda, venda, tradução e empréstimo do livro, salvo se houvesse expressa licença do Papa ou do Bispo, conforme a hipótese, em sentido diverso. A exceção à regra funcionava em favor dos bispos e cardeais, que podiam ler os livros condenados, com as devidas cautelas.
Tudo isto decorre da visão errónea de se considerar infalível em toda alinha uma instituição constituída de homens imperfeitos, mesmo que se arroguem infalíveis e imbuídos de boas intenções. Prevenindo equívocos desta ordem, advertiu-nos Cristo de que não devemos julgar os nossos semelhantes. Falta-nos, tantas vezes, conhecimento, serenidade e isenção, sobrando-nos ignorância, presunção, parcialidade e paixão. E, se não temos condições para julgar, condenar ou absolver quem quer que seja, podemos substituir tal pretensão pela ajuda e auxílio de todas as ordens, visando o bem, pela boa vontade de servir com benevolência e indulgência.
Teriam sido bem diferentes os resultados colhidos pela vetusta instituição eclesial se, em vez da proibição e censura de escritos, fosse ministrada a verdadeira evangelização às pessoas e às massas, tal como exemplificou o Mestre, com simplicidade e amor, sacrifício e renúncia.
Seria ideal que não houvesse produção mental e intelectual a exteriorizar-se em obra literária, artística, filosófica e científica negativas, deprimentes, grotescas ou mentirosas. Porém, elas existem e continuarão a ser produzidas como consequência lógica da liberdade do homem – o que não se resolve com atitudes cominatórias de censura e condenação, pois “não é com vinagre que se caçam moscas”.
Não haverá solução eficaz do problema se não se modificar a geratriz das produções indesejáveis: o espírito mal formado. E só há um meio eficaz de modificar tal fonte: a educação integral, com ênfase na educação moral e cívica, capaz de evitar e corrigir o erro, a ignorância, a maldade. Já nos foi ensinada essa verdade há muitos séculos. As lições incomparáveis do maior dos mestres, o único Mestre de verdade, visam a transformação das almas, tornando-as incapazes da prática consciente do mal, em qualquer sentido, inclusive na produção e divulgação de livros infelizes. Fora desse roteiro só há paliativos, perspetivas ilusórias, vaidades e desenganos.
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A este respeito, o Cardeal Alfredo Ottaviani, que foi Secretário e Prefeito da Congregação do Santo Ofício e, depois, Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (que sucedeu à anterior), afirmou que o Vaticano resolveu abolir o Index, deixando às autoridades eclesiásticas de cada país a tarefa de (des)aconselhar aos católicos a leitura dos livros.
Em entrevista, ao tempo, publicada pelo “Osservatore della Domenica”, a segunda autoridade romana em matéria de fé e costumes, acrescentou que as autoridades eclesiásticas nacionais não recorrerão à condenação, a não ser em casos muito perigosos, que deverão ser bastante raros.
Adiantou que será requerido o imprimatur da publicação ao bispado local quando se tratar de livros que tratem de temas religiosos. E asseverou que, com a supressão da Secretaria do Vaticano que examinava as obras a serem incluídas no Index, a lista de livros proibidos passaria a ser um documento histórico, sendo que da última edição do Index, datada de 1948, não se fariam mais reimpressões, como acima ficou referido.
Não obstante, o purpurado sustentou que o Vaticano poderá fazer declarações, embora não proibitivas, se julgar necessário, sobre obras que julgue serem prejudiciais à consciência cristã.
A Igreja apercebeu-se, pois, da ineficácia da atuação coercitiva das consciências, incompatível com o génio do Cristianismo e virou-se para a atividade da formação.
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No caso de um livro ser proibido, os católicos não podiam lê-lo nem editá-lo, nem vendê-lo nem guardá-lo. Semelhantes atitudes eram consideradas pecado e, por vezes, os seus promotores eram excomungados. Mas podia acontecer que uma pessoa viesse a pedir, por motivos especiais, especial autorização para ler determinado livro condenado, autorização que o ordinário diocesano podia conceder. Os teólogos e os filósofos eram habitualmente os mais interessados em obter tal concessão.
Obviamente que no conjunto dos livros mais censurados figuram os relativos à história da Igreja e à exegese bíblica. O Santo Ofício e a Comissão Bíblica (criada pelo Papa Leão XIII para promover os estudos nesta área) encarregaram-se de excluir da leitura importantes obras publicadas na última parte do século XIX e inícios do século passado sobe estas matérias. Os altos responsáveis da Igreja exerciam grande vigilância sobre questões vitais para a interpretação de determinados livros bíblicos, como o Pentateuco, os Salmos, Isaías, os Sinóticos e São João.
Era a busca da autenticidade da verdade revelada que se procurava por meio do contributo da razão e da ciência, mas que ficava ensarilhada pela excessiva vigilância. Em geral, os autores censurados e condenados não tinham oportunidade de pessoalmente se poderem defender em Roma, esclarecendo, por exemplo equívocos de interpretação. A condenação assentava apenas na obra escrita pelo seu autor. Era um clima de asfixia intelectual que encurralava os espíritos, uma claustrofobia a tolher a liberdade e, muitas vezes, a querer regular o Espírito Santo.
Segundo o referido semanário Ecclesia, merecem ser evocados, neste contexto, teólogos como Congar, Chenu, Rahner, Schillebeeckx e Kung pelo corajoso trabalho desenvolvido tantas vezes sob o “olhar cético e até mesmo condenatório de Roma”.
Com o desaparecimento do índice de livros proibidos, em 1966, encerrou-se uma página da história da Igreja que teve implicações de vária ordem na vida das instituições e das pessoas. Não obstante, a Congregação para a Doutrina da Fé, sob a tutela de Ratzinger, enveredou por uma via de condenação sobretudo no atinente à Teologia da Libertação. Parece que, sob a égide do Papa Francisco, o Espírito humano e sobretudo o Espírito Santo gozarão de maior liberdade e serão objeto de maior respeito. Não queiram outros, como o Cardeal Müller, provocar a deriva e condicionar a discussão aberta e ecuménica das diversas matérias.
Temos de voltar ao Concílio e libertar as consciências!

2017.02.17 – Louro de Carvalho

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