Tenho
enorme dificuldade em perceber e aceitar que os negócios de Estado sejam
tratados superficialmente como se fossem brincadeiras de miúdos, o que fica
espelhado no modo como são abordadas algumas questões na praça pública, a
facilidade como altas figuras da República falam das diversas matérias, as
queixinhas e intrigas que alguns protagonizam e sobretudo a utilização de SMS (Short Message Service).
Mário
Centeno terá expedido e recebido SMS na comunicação com António Domingues a
propósito das condições exigidas por este para aceitar as funções de liderança
na CGD, designadamente em matéria salarial e declarativa (sobretudo
no âmbito da declaração de rendimentos e de património junto do TC), o que desembocou na publicação
do Decreto-lei n.º 39/2016, de 28 de julho, que retirava os então futuros
gestores do banco público do regime do estatuto do gestor público, com a
fundamentação vertida no texto preambular do referido normativo.
Porque
já deixei entender a minha dupla posição sobre essa matéria (quanto
à não bondade do decreto-lei e quanto à sua alegada ineficácia por supostamente
a Lei n.º 4/83, de 2 de abril, não ficar revogada), abstenho-me de a repetir. Agora, vem ao caso a
posição do PSD e, em certa medida, a do CDS sobre uma potestativa nova Comissão
Parlamentar de Inquérito (CPI)
sobre a Caixa Geral de Depósitos e as relações dos partidos ditos da direita
com o Presidente da República.
Foi
criada uma CPI, a requerimento do PSD e do CDS, para investigar o que se passou
na/e com a CGD desde 2003 até ao presente que viesse a justificar a situação
que levou à necessidade de capitalizar o banco do Estado. Porém, quando a CPI entendeu
maioritariamente (com os votos do PS, PCP e BE) rejeitar o pedido do PSD e do
CDS sobre o conhecimento da correspondência entre Domingues e Centeno,
nomeadamente as SMS, que podia denotar algum compromisso do Ministro das Finanças
atingente à dispensa da entrega das declarações ao TC (Tribunal
Constitucional), por
não se integrar no âmbito do objeto da CPI, os partidos requerentes levaram o
caso à conferência de líderes parlamentares. Aí, o Presidente da Assembleia da
República, Eduardo Ferro Rodrigues, houve por bem não admitir a discussão da
matéria por se tratar de um assunto da CPI com que a conferência nada tinha a
ver, não tendo que dar quaisquer orientações à Comissão.
***
A
situação teve como desfecho a demissão do Presidente de CPI, não se sabendo se
a mesma produzirá o consequente relatório ou se ficamos por aqui mesmo sem apuramento
de resultados e concomitantemente as respetivas responsabilidades. Isto, depois
de inúmeras pessoas terem sido ouvidas, até contradizendo-se umas às outras.
Mas
os dois partidos ditos da direita parlamentar anunciaram a constituição de uma
nova CPI para obter conhecimento das SMS que Centeno e Domingues trocaram entre
si, ao mesmo tempo que Domingues parecia prometer que, embora não fosse esse o
seu desejo, estará disposto a enviar à CPI as SMS se os deputados lho pedirem.
Ferro
Rodrigues reagiu preventivamente em nome do regimento e da Constituição. Por um
lado, à luz do regimento, não se torna plausível a existência paralela de duas
CPI com o mesmo ou similar objeto; por outro, o n.º 1 do artigo 34.º da CRP
garante a inviolabilidade do “sigilo da correspondência e dos outros meios de
comunicação privada”.
Entretanto,
Assunção Cristas, líder do CDS, no debate quinzenal com o Primeiro-Ministro no
Parlamento, no dia 22, anunciou ter solicitado uma audiência ao Presidente da
República a queixar-se do funcionamento da Assembleia da República onde
alegadamente a esquerda oprimia os direitos da minoria – o que levou a que Ferro
Rodrigues garantisse que a porta do seu gabinete estava sempre aberta para
receber as reclamações, sendo que a Constituição consagra a separação dos
poderes, e um deputado centrista a argumentar que fora o Presidente do
Parlamento a fechar a porta às reclamações e a advertir que a condução dos trabalhos
da parte do Presidente não permite apartes desse género.
Por
seu turno, os partidos à esquerda e Ferro Rodrigues chamaram a atenção para a
separação dos poderes, reiterando que o Parlamento não responde perante o
Presidente da República.
Porém,
Marcelo Rebelo de Sousa agendou a audiência solicitada para o passado dia 24 e
recebeu a delegação do CDS chefiada por Cristas, mas convidou, para uma hora
antes, Ferro Rodrigues a fim de almoçar em Belém com o Presidente.
O
que transpareceu para público foi a receção anfitriã e o acompanhamento de Ferro
por Marcelo até à porta e uma imagem fotográfica que denota troca amistosa de confidências,
levando à conclusão de que tudo vai bem entre os dois Presidentes, o do órgão plural
e o do órgão unipessoal.
***
Entrementes,
o Presidente Marcelo, foi duramente criticado, à direita, por dar a cara,
confiado no Primeiro-Ministro, pela inevitável permanência de Mário Centeno na
pasta das Finanças e, recentemente, por ter comparado a situação em que alguns
queriam ver a saída de Centeno do Governo com aquele momento em que Vítor
Gaspar se despediu em 2013, provocando a crise política de que resultou a “irrevogável”
apresentação do pedido de demissão do vice-primeiro-ministro e a tentativa de
conciliação dos partidos para um governo de Salvação nacional proposta pelo
Presidente da República de então.
Todavia,
é de notar que a posição de Marcelo em relação a Centeno conheceu quatro momentos
distintos: o assentimento, ao que se sabe agora, relativo aquando da promulgação
do aludido decreto-lei; a posição clara que relativiza a força do decreto-lei, quando
esclarece que este, não revogando a aludida lei de 1983, não dispensa os gestores
do banco público das obrigações declarativas junto do TC e que, se as dúvidas persistirem,
podem os deputados em sede legislativa proceder à respetiva clarificação; a fé
confessada no Primeiro-Ministro de que não houve compromisso de Centeno com
Domingues, baseada no facto de o Chefe do Governo ter garantido que não houve
nenhum documento formal escrito nesse sentido, levando o Presidente a acreditar
em António Costa e no seu Ministro, o que provocou críticas duras sobre o alegado
envolvimento excessivo do Presidente na solidariedade com o Governo e a descrença
no crédito da palavra de Ministro; a tomada de posição mais calculada, depois
de António Lobo Xavier ter garantido no programa “Quadratura do Círculo” na SIC
Notícias que havia SMS para Domingues comprometedores para Centeno e, eventualmente,
Lobo Xavier os ter mostrado ao Presidente. Como é do conhecimento público, o Primeiro-Ministro,
apesar de ausente, solicitou uma audiência ao Presidente para Centeno. E Centeno,
que se explicou junto do Presente, veio a público dizer, em conferência de imprensa,
que nunca tinha declarado que não havia entendimento sobre as matérias em
causa, mas que admitia ter havido “erro de perceção mútuo” e que o seu lugar estava
naturalmente à disposição do Primeiro-Ministro.
Daqui
resultou: uma declaração de confiança de António Costa no Ministro das Finanças;
uma declaração de Marcelo a dizer, entre outras coisas, que, “ouvido o
Senhor Primeiro-Ministro, que lhe comunicou manter a sua confiança no Senhor
Professor Doutor Mário Centeno, aceitou tal posição, atendendo ao estrito
interesse nacional, em termos de estabilidade financeira”; e uma reação de críticos do desempenho presidencial
de Marcelo a recordar que, nos termos da Constituição, não cabe ao Presidente manifestar
ou não confiança nos ministros, mas apenas nomeá-los ou exonerá-los sob
proposta do Primeiro-Ministro (vd
alínea h do art.º 33.º da CRP), sem do que só este é que é responsável pela informação a
prestar a Presidente sobre o andamento da política interna e externa do país (vd alínea c do n.º 1 do art.º 201.º da CRP), sendo os ministros
responsáveis perante o Parlamento, no quadro da responsabilidade do Governo (vd n.º 2 do art.º 191.º da CRP).
Recentemente, Marcelo comparou, como se disse, a questão
Centeno com a questão Gaspar, o que deixou furioso o PSD, que entende que as
situações são incomparáveis. É óbvio que os conteúdos e contornos dos dois momentos
não são iguais, mas são igualmente suscetíveis. Antes, era a situação de crise
devida ao programa de resgate do país; agora é o tempo da credibilização da governança
apoiada numa inédita melhoria parlamentar, com a Europa a olhar de soslaio para
a solução, mas com resultados à vista, nomeadamente a redução da dívida líquida,
algum aumento do poder de compra e a iminência da saída do país do processo de défice
excessivo.
Por outro lado, a criação de uma nova CPI, que parecia
absurda, graças ao cuidado com que o requerimento foi redigido, delimitando o seu
objeto, nos termos regimentais e constitucionais, tornou-se viável e sem criar
suscetibilidades aos partidos da maioria, dado que o objeto não parece um
duplicado da outra CPI sobre a CGD, no que Marcelo terá ajudado Ferro Rodrigues
a não ver objeções regimentais e constitucionais, bem como quaisquer outros problemas,
ao funcionamento da nova Comissão. Ademais, veio Jorge Miranda, prestigiado constitucionalista,
dizer que o artigo 34.º da CRP não se aplica à troca de correspondência entre Centeno
e Domingues por não estar no estrito âmbito da esfera privada, mas atingir
negócios (que não segredos, digo eu) de Estado.
Assim, embora Marcelo tenha dito que SMS de Centeno/Domingues
não o façam mudar de posição e Costa tenha dito que “só um PM insano dispensaria este ministro” (vd Expresso de
hoje, 25 de fevereiro).
Pode, no entanto, suceder que Centeno, se for desmascarado
com as SMS e/ou se se sentir agastado, venha a bater com a porta quando
conseguir sem margem para dúvidas a saída de Portugal do procedimento por défice
excessivo.
***
Em
suma, há demasiado fumo nestas questões de Estado, que não podiam ser tratadas
assim. Comunicar sobre matéria pública por email e SMS revela superficialidade e
torna-se perigoso. Fala-se muito de situações e métodos que nunca se sabe se
estão no campo das hipóteses e que podem ser utilizados por outrem ad libitum. E, nisto, seriedade e
conversação franca exigem-se!
2017.02.25 – Louro de Carvalho
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