No passado dia 27 de janeiro, Francisco
recebeu, na Sala Clementina do Palácio Apostólico, os participantes na plenária
da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida
Apostólica. Em consonância com o tema escolhido para reflexão na predita
plenária, o Pontífice abordou-o também em virtude da sua importância. Com
efeito, a fidelidade na vida religiosa está posta à prova, como o demonstram as
estatísticas, a ponto de se poder dizer que “estamos perante uma hemorragia que
fragiliza a vida consagrada e a própria vida da Igreja”. E o Papa argentino,
religioso e jesuíta, carateriza os abandonos, elenca as suas causas, propõe os
sustentos e os reforços da fidelidade e fala expressamente do acompanhamento.
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Os abandonos da vida consagrada são sempre
preocupantes. Porém, Francisco distingue entre aqueles que abandonam “por um
ato de coerência depois de um discernimento sério” de que já não sentem a
vocação e aqueles que, à medida que o tempo passa, falham na fidelidade e,
muitas vezes, poucos anos após a profissão perpétua. E, aqui, Francisco
interroga-se sobre o que efetivamente aconteceu.
O Papa enquadra os muitos fatores de
condicionamento da fidelidade no âmbito do que pode chamar-se uma mudança de
época e não apenas uma época de mudança. Neste contexto, marcado
pela “cultura do provisório”, é difícil a assunção de compromissos sérios e
definitivos.
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Assim, para Francisco resulta como o primeiro
dos fatores que dificulta a guarda da fidelidade é “o contexto social e
cultural em que nos movemos”. Esta cultura do fragmento e do provisório
leva-nos à tentação de viver “à la
carte”, como escravos da moda ditada pela sociedade artificiosa, e cria a
necessidade de ter sempre “portas laterais” abertas a outras possibilidades,
alimentando o consumismo imposto pela sociedade de consumo e desvalorizando a
beleza da vida simples e austera. Tal cultura provoca, muitas vezes, na pessoa
um grande vazio existencial envolto no relativismo prático que induz um
julgamento das realidades feito em função da autorrealização tantas vezes
alheia aos valores do Evangelho. De tal modo assim é que a nossa sociedade
substitui com facilidade as normas morais pelas regras económicas, que ditam
leis a contento, impondo os seus sistemas de referência em detrimento dos
valores da vida. É a “ditadura do dinheiro e do lucro” a impor uma visão da
existência segundo a qual se descarta que não rende. Numa situação deste jaez,
torna-se imperativo – sustenta o Pontífice – que, antes de mais, a pessoa se
deixe evangelizar para depois poder empenhar-se na evangelização.
Um outro
fator a juntar ao fator do contexto sociocultural é o do “mundo juvenil”, que o Papa diz complexo, mas rico e desafiante.
Assegura o Santo Padre que “não faltam jovens muito generosos, solidários e
empenhados a nível religioso e social”, que procuram “uma verdadeira vida
espiritual” e que anseiam por qualquer coisa de diferente daquilo que o mundo
oferece. Mas, em contraponto, há muitos jovens que são “vítimas da lógica da
mundanidade”. E a mundanidade, segundo o Bispo de Roma, pode sintetizar-se na
busca do sucesso a qualquer preço e do dinheiro e prazer fáceis. É uma lógica
altamente sedutora, a que temos de contrapor a postura da proximidade junto dos
jovens para os contagiar com a alegria do Evangelho e do sentido de pertença a
Cristo. Há que apostar na evangelização desta cultura para evitar que os jovens
sucumbam a ela e nela. É sintomático que as duas exortações apostólicas de
Francisco insistam na alegria: a alegria do Evangelho (documento
programático do pontificado) e a
alegria do amor (documento sintetizador dos dois sínodos sobre a
família). A liberdade da alegria tem de
sobrepor-se ao peso da lei ou à constrição do discurso ameaçador.
Todavia, para lá dos dados de contexto
atinentes ao mundo juvenil ou à mudança de época, é de relevar um
terceiro fator, o do mundo interior da vida consagrada, no qual, a par de
“tanta santidade”, não deixam de figurar várias situações de contratestemunho
“que tornam difícil a fidelidade. Entre estas, destacam-se a rotina, o cansaço,
o peso da gestão das estruturas, as divisões internas, a busca de poder (o alpinismo do poder),
um estilo mundano de governação dos institutos, um serviço de autoridade que umas
vezes se transforma em autoritarismo e outras no “deixar fazer”. Ora,
diz o Papa que, se a vida consagrada quer manter a sua missão profética e o seu
fascínio, continuando como escola de fidelidade para os de perto e para os
de longe (cf Ef 2,17),
deve preservar “a frescura da centralidade de Jesus, os atrativos da
espiritualidade e a força da missão, mostrar a beleza do seguimento de Cristo e
irradiar esperança e alegria”. Sem esperança e sem alegria, a vida torna-se
ruim, torna-se um peso.
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Face a tudo
o que anotou, Francisco privilegia a valorização da vida fraterna em comunidade.
E esta tem
de ser alimentada “pela oração comunitária, pela leitura orante da Palavra de
Deus, pela participação ativa nos sacramentos da Eucaristia e da Reconciliação,
pelo diálogo fraterno e pela comunicação sincera ente os seus membros, pela
correção fraterna, pela misericórdia para com o irmão ou a irmã que peca e pela
partilha da responsabilidade”. É a referência da vida comunitária à
espiritualidade do Evangelho e aos seus valores. Mas há mais. O Pontífice não
deixa de insistir na sua ideia basilar de Igreja e de serviço em Igreja (dos pobres), quando diz:
“E tudo isto
deve ser acompanhado dum eloquente e jubiloso testemunho de vida simples junto
dos pobres e de uma missão que privilegie as periferias existenciais”.
E, nos
termos do n.º 32 da instrução Congregavit
nos in unum Christi amor (A Vida Fraterna em Comunidade), de 2
de fevereiro de 1994, assegura que “da renovação da vida fraterna em comunidade depende em muito o resultado da pastoral
vocacional na vertente do poder dizer vinde
e vede” (cf Jo 1,39), bem como
“a perseverança dos irmãos e das irmãs jovens e menos jovens”, visto que, “se
um irmão ou uma irmã não encontra o sustento da sua vida consagrada na comunidade,
logicamente o vai procurar fora, com tudo o que isso comporta”.
Adverte o
Papa que, tal como a própria fé, a vocação “é um tesouro que transportamos em vasos de barro” (cf 2Cor 4,7). Por isso, ela deve ser rodeada do cuidado com que
se guardam as coisas mais preciosas, de modo que “ninguém ouse roubar-nos este
tesouro” nem ele perca a sua beleza com a erosão do tempo. E este cuidado
compete, antes de mais, “a cada um de nós, que “somos chamados a seguir Cristo
mais de perto com fé, esperança e caridade”, virtudes a “cultivar diariamente
na oração e a reforçar com uma boa formação teológica e espiritual”.
Não se pode
confiar no acaso ou na boa vontade de cada um. É necessária a imersão na oração
e assumi-la como estilo de vida de proximidade de Deus e dos irmãos. E a firme confiança
na Providência tem de ser complementada com o esforço da formação que sustente
a fé, dê razões da esperança e fortaleça a caridade. As preditas oração e
formação é que nos defenderão do contágio da moda e da cultura do efémero e nos
permitirão o caminho sólido na fé. E é seguro que neste fundamento de oração e
de formação se torna possível a prática dos conselhos evangélicos e a assunção
dos sentimentos de Cristo (cf Fl 2,5).
Depois, é
preciso reconhecer que a vocação é um dom do Senhor que fixou em nós o seu
olhar, nos amou (cf Mc 10,21) e chamou a
segui-lo na vida consagrada, entregando a responsabilidade por este dom a quem
o recebeu. Por isso, cada um deve assumir, com a graça do Senhor, a
responsabilidade do “empenho no próprio crescimento humano, espiritual e
intelectual” e na manutenção da “chama da vocação”. Isto significa que temos de
seguir com os olhos postos no Senhor, prestando permanente atenção à lógica do
Evangelho e não cedendo aos critérios da mundanidade. E há que ter em linha de
conta que, muitas vezes, as grandes infidelidades resultam de pequenos desvios
e distrações, pelo que é pertinente a exortação do Apóstolo: “É a hora de despertardes do sono” (Rm 13,11).
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Diz o Santo
Padre que, ao equacionarmos os problemas da fidelidade e dos abandonos, devemos
relevar a importância do acompanhamento – o que postula a preparação de
acompanhantes qualificados para este ministério. Porém, é preciso ter em conta
que este acompanhamento espiritual é um carisma de sua natureza laical (que tem de
ser desclerizado), embora
também os padres o tenham. Por isso, a direção espiritual (diferente do
sacramento da Reconciliação) tem de ser
procurada mesmo fora do mundo dos clérigos. E Francisco, a propósito de casos
em concreto, interroga: “Na tua comunidade
de irmãs não há uma irmã sábia, uma mulher de Deus?”. Assim, por princípio,
cada congregação deve tomar cuidado dos seus membros. O que importa é que se
faça direção espiritual em regime de acompanhamento assíduo e eficaz, pois “é
difícil manter-se fiel caminhando a sós ou caminhando com a ajuda de irmãos e
irmãs incapazes de escuta atenta e paciente ou que não tenham uma adequada
experiência da vida consagrada. A este respeito, diz o Pontífice jesuíta:
“Precisamos de irmãos e irmãs experimentados nos caminhos de Deus para
poderem fazer o que Jesus fez com os discípulos de Emaús: acompanhá-los no
caminho da vida e no momento de desorientação e reacender neles a fé e a
esperança mediante a Palavra e a Eucaristia (cf Lc 24,13-35). É esta a delicada
e empenhativa competência de um acompanhante. Não poucas vocações se perdem
pela ausência de acompanhantes competentes. Todos nós os consagrados, jovens e
menos jovens, temos necessidade de uma ajuda adequada para o momento humano,
espiritual e vocacional que estamos a viver.”.
Porém, o
Papa adverte para a necessidade de o acompanhamento não criar dependências, uma
proteção excessiva, um controlo ou uma postura infantil. Se não podemos resignar-nos
a caminhar a sós, também temos de querer um acompanhamento de proximidade e
assíduo, mas plenamente adulto – que sirva para assegurar um discernimento
contínuo que leve à descoberta da vontade de Deus, à busca do que é mais do
agrado de Deus, como diria Santo Inácio ou, no dizer de São Francisco de Assis,
a “querer sempre o que Lhe agrada”. Mais: este discernimento requer, tanto do
acompanhante como do acompanhado, “uma fina sensibilidade espiritual”, um
colocar-se perante si próprio e perante o outro sem o próprio “eu” e com
distância em relação aos preconceitos e aos interesses pessoais ou de grupo. É que
não se trata apenas de escolher entre o bem e o mal, mas entre o bem e o
melhor, entre o que é bom e o que leva à identificação com Cristo, sem
desvalorizar a assistência do Espírito Santo.
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Queira Deus que
esta palavra papal frutifique a cem por cento nas comunidades que são objeto
das preocupações, estudos e orientação da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de
Vida Apostólica.
2017.02.01
– Louro de Carvalho
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