É um mau princípio e dificilmente se acreditaria há décadas que se
tornasse um critério de governação numa democracia sustentável. Porém, no dia
30 de janeiro, o novel Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, “despediu” a
Procuradora-Geral interina do país, Sally Yates, por haver ordenado aos advogados do Ministério
Público que não defendessem a proibição de entrada de refugiados e outros
viajantes de países muçulmanos.
Com efeito, um decreto da Administração da Casa Branca, do passado dia 27
de janeiro, proíbe a
entrada no país de todos os refugiados por um período mínimo de 120 dias e de
refugiados sírios por tempo indefinido, bem como a de cidadãos de sete países
muçulmanos – Irão, Iraque, Líbia, Somália, Sudão, Síria e Iémen – durante 90
dias.
Em comunicado, a Casa Branca aduziu
que Sally Yates, membro da administração Obama, é “fraca nas fronteiras e muito
fraca em [relação à] imigração ilegal” e criticou a democrata por não ter
confirmado a nomeação do seu Procurador-Geral, Jeff Sessions. Em concreto, segundo
o texto do predito comunicado, a ex-Procuradora-Geral interina é acusada de
haver traído o Departamento de Justiça “ao recusar fazer cumprir uma ordem
legal para proteger os cidadãos dos Estados Unidos. Por isso, “o Presidente
Trump dispensou Yates das suas funções”.
Por consequência,
o Procurador federal Dana Boente assumirá as funções de Procurador-Geral
interino “até o senador Jeff Sessions ser finalmente confirmado pelo Senado,
onde está a ser erradamente retido pelos senadores democratas por motivos
estritamente políticos”.
Do lado de Yates,
está a responsabilidade, não de garantir a eficácia das decisões do Presidente,
que não é o legislador do Estado Federal (é-o o Congresso), mas a de “garantir que a posição do Departamento de
Justiça é não só legalmente defensável, como reflete o nosso ideal do que a lei
deve ser, tendo em consideração todos os factos”. Nestes termos, considera-se
não convencida de que “a defesa da ordem executiva” seja consistente com estas
responsabilidades, nem de que “a ordem executiva” seja legal.
Assim, em
mensagem ao pessoal do Departamento de Justiça, a Procuradora-Geral interina, democrata,
expressava dúvidas sobre a legalidade e moralidade do decreto de Trump, que já
suscitou protestos em massa, e garantia que, enquanto fosse Procuradora-Geral,
o Departamento de Justiça “não iria apresentar argumento em defesa da ordem
executiva”, até se convencer de que era apropriado fazê-lo.
Esta
diretiva de Yates significa que o Governo norte-americano, pelo menos por
agora, não tem representação autorizada nos tribunais no âmbito destes casos.
Em contraponto,
para a Casa Branca, que enfrenta múltiplos processos na Justiça e a oposição em
todo o mundo devido à ordem emitida para banir migrantes de sete países de
maioria muçulmana, a decisão de Yates foi ato um ato desafiante. E o Presidente
não esteve com mais contemplações: as suas ordens são para cumprir; e quem não concorda
sai de cena.
É a não
aceitação da divisão dos poderes e o consequente escrutínio no Estado de direito
democrático. É a manifestação típica da autocracia, que despreza e elimina os
adversários. Isto para não falar da falta de respeito pelos direitos humanos e
pela liberdade de circulação que o decreto compagina, a par da interrupção de situações
legítimas de relação laboral e de boa relação familiar – já denunciada por
muitas instâncias internacionais.
***
Mas o Presidente Trump não se ficou por aqui. No mesmo dia em que
exonerou Yates, também substituiu o chefe interino da Secretaria de Imigração e
Alfândega, da administração de Obama, por motivo da oposição às referidas
controversas ordens relacionadas com a imigração.
Não foram invocadas razões específicas para a substituição de Daniel Ragsdale, anunciada uma hora depois de Trump
ter “despedido” Sally Yates, por quebrar a hierarquia acerca de uma proibição
de entrada nos Estados Unidos de viajantes de sete países de maioria muçulmana.
Mas, a este respeito, o Secretário da Segurança Interna, John Kelly, adiantou,
em comunicado, que o substituto de Ragsdale, Thomas Homan, ajudará a “garantir
que aplicamos as nossas leis de imigração no interior dos Estados Unidos, de
forma consistente com os interesses nacionais”.
***
Entretanto, o novo Procurador-Geral interino dos EUA, horas depois de a
sua antecessora ter sido afastada por desafiar a controversa ordem de Donald
Trump sobre imigração, declarou comprometer-se a defender a dita ordem e a
promover o seu cumprimento. O
procurador federal Dana Boente foi nomeado para o cargo depois de Trump ter
despedido Sally Yates, a qual transitara da administração de Obama e ocupava o
lugar enquanto o novo procurador, Jeff Sessions, não fosse confirmado. Yates
tinha instruído os advogados do Ministério Público a não defenderem a proibição
de entrada de refugiados e outros viajantes de países muçulmanos.
Ao caso, Dana
Boente referiu em comunicado:
“Com base na
análise do Gabinete de Assessoria Jurídica, que concluiu que a ordem executiva
é legal (...) e foi adequadamente elaborada, rescindo a antiga Procuradora-Geral
interina Sally Q. Yates, a 30 de janeiro de 2017, guiando e direcionando os
homens e mulheres do Departamento de Justiça a cumprirem o nosso dever e
defenderem as ordens legais do nosso Presidente” comunicado.
***
Neste contexto, o ex-presidente norte-americano Barack Obama, que deixou a Casa Branca há 10 dias, mostrou-se sensibilizado com o ativismo
político que sai à rua, bem como com o nível de adesão às manifestações
que se têm sucedido por todo o país e
um pouco por todo o mundo, e discorda de quaisquer medidas de discriminação que
tenham por base escolhas religiosas.
Nas palavras
da sua porta-voz, Kevin Lewis, Obama, “discorda profundamente da noção de
discriminação contra pessoas por causa da sua fé ou religião”. Diz Lewis:
“Cidadãos a
exercerem o seu direito constitucional à manifestação e organização e a serem
ouvidos pelos governantes é exatamente o que deve acontecer quando os valores da
América estiverem em cheque”.
***
Obviamente que Obama não está sozinho e espera-se que a onda
se agigante até neutralizar a eficácia das medidas de Trump, que passa a vida a
construir “muros” físicos e imateriais.
Assim, o Secretário-Geral da ONU criticou hoje duramente a
ordem executiva de Donald Trump que impede a entrada de cidadãos de sete países
muçulmanos nos Estados Unidos, afirmando que tais medidas “cegas” arriscam ser “ineficazes”
na luta antiterrorista. Com efeito, segundo António Guterres, os países “têm o
direito, mesmo a obrigação, de controlar as suas fronteiras para impedir a
entrada de membros de organizações terroristas”. Porém, o Secretário-Geral
sustenta que as medidas adotadas para tal fim “não podem ter como base qualquer
forma de discriminação em função da religião, origem étnica ou nacionalidade”. E
adiantou que tal discriminação “desencadeia uma ansiedade e uma raiva generalizadas que podem
facilitar a propaganda das organizações terroristas que todos queremos
combater”, pois, “medidas
cegas, não fundamentadas numa inteligência sólida, tendem a ser ineficazes pois
correm o risco de serem ultrapassadas pelos atuais sofisticados movimentos
terroristas globais”.
Evocando a idiossincrasia dos EUA nesta matéria, António Guterres,
presente em Adis Abeba (Etiópia), onde participou na abertura da
cimeira da União Africana (UA), recordou que
os Estados Unidos têm “uma grande tradição” de proteção de refugiados e disse
esperar “firmemente” que esta volte a ser uma das prioridades do governo de
Donald Trump.
Atendendo a que “a proteção dos refugiados deve ser garantida”, a que o acesso
dos refugiados a um lugar onde estejam seguros é extremamente importante” e a
que “Os EUA têm uma grande tradição na proteção de refugiados”, Guterres espera
que “esta medida seja apenas temporária”.
Por seu
turno, o alto comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, o jordano
Zeid bin Ra'ad Zeid al-Hussein, declarou que a medida de Trump era ilegal e
classificou-a como “mesquinha” – diapasão por que afinaram Ferro Rodrigues, Presidente
da Assembleia da República de Portugal, e Jorge Sampaio antigo Presidente da República
Portuguesa e ex-responsável pelo diálogo entre civilizações e culturas, bem
como o nosso chefe da diplomacia.
Também
Donald Tusk, Presidente do Conselho Europeu, qualificou como “preocupantes” as
posições da administração Trump, que “parecem colocar em causa os últimos 70
anos de política externa norte-americana”. Com efeito, em carta enviada a 27
chefes de Estado e de Governo da UE, como um contributo para o debate sobre o
futuro da Europa que terá lugar na reunião informal do próximo dia 4 de
fevereiro em Malta (sem o
Reino Unido), Tusk
aborda as “ameaças” com que a UE se confronta atualmente, apontando que a
primeira se prende com “a nova situação geopolítica” mundial, destacando “a
mudança em Washington”. E escreve:
“Uma China crescentemente,
chamemos-lhe assim, assertiva, especialmente nos mares; uma política agressiva
da Rússia face à Ucrânia e aos seus vizinhos; guerras, terror e anarquia no
Médio Oriente e em África, com o islamismo radical a desempenhar um grande
papel, bem como declarações preocupantes da nova administração norte-americana
tornam, em conjunto, o nosso futuro altamente imprevisível”.
Tusk
sublinha a mudança política operada nos EUA, afirmando que “em particular
coloca a União Europeia numa situação muito difícil, com a nova administração a
parecer por em causa os últimos 70 anos de política externa norte-americana”. Porém,
sustentando-se no lema “unidos prevaleceremos, divididos cairemos”, entende que
a UE deve tirar partido da “mudança na estratégia comercial dos EUA”
intensificando as conversações com outros parceiros. E não deixa de lembrar como
outras ameaças o crescimento dos movimentos anti-UE, nacionalistas e xenófobos,
bem como a perda de fé no projeto europeu mesmo entre os europeístas. Mas, declarando
que, “num mundo cheio de tensões e confrontos, o que é necessário é a coragem, a
determinação e a solidariedade política dos europeus”, remete para o título da
missiva no original em inglês – “United we stand, divided we fall” – concluindo:
“Não podemos render-nos
àqueles que pretendem enfraquecer ou invalidar o laço transatlântico, sem o
qual a paz e ordem globais não podem sobreviver. Devemos lembrar aos nossos
amigos norte-americanos o seu próprio lema”.
***
Tendo
Donald Trump, em consequência do enunciado em companha eleitoral, ultrapassado
já todas as linhas vermelhas da governança, resta saber se o movimento de rua e
a postura das grandes instâncias internacionais e dos diversos países conseguirão
repor os níveis de justiça na garantia da democracia e dos direitos humanos e
na eficácia da solidariedade entre os povos. Esperemos que sim!
2017.01.31 – Louro de Carvalho
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