Está na praça pública a petição “NÃO à desanexação de Milheirós de Poiares do
concelho de Santa Maria da Feira – Pela defesa da unidade do concelho de Santa
Maria da Feira”. E corre as ruas do concelho pela mão de agentes
credenciados, esperam-se os crentes à saída das missas de domingo e
incomodam-se os cibernautas por e-mail.
Aduzem que o Concelho tem uma história de
unidade, antiguidade e indivisibilidade. Por mim, nada a opor, mas a petição
pública apresentada à Assembleia da República pela assembleia de freguesia de
Milheirós de Poiares desmente aquela trilogia, fundando-se em dados históricos.
Todavia, sabe-se que houve, em 16 de setembro,
um referendo em que a população de Milheirós de Poiares aprovou a integração da
freguesia, do município de Santa Maria da Feira, no contíguo concelho de São
João da Madeira. Mais, nesse referendo, o 'sim' ganhou com 1.417 votos (80%), enquanto o 'não' teve 329 votos, além dos 12 votos brancos e
dos 15 votos nulos – tendo declarado o então presidente da assembleia de
freguesia Adriano Martins (PS) que “estamos
deveras satisfeitos com esta percentagem de 80 por cento de votos favoráveis”.
O socialista acrescentou que o movimento, que
defende a integração da freguesia no concelho de S. João da Madeira, iria
depois “levar o assunto à Assembleia Municipal”.
Acresce
recordar que, numa decisão tomada por maioria, em fins de julho, o Tribunal
Constitucional (TC) autorizara a realização do referendo, pedido pela assembleia
de freguesia, mas sublinhando que a consulta não teria caráter vinculativo.
A pergunta validada pelo TC foi:
“Concorda com a integração da freguesia de Milheirós de Poiares no concelho
de S. João da Madeira?”.
Votaram
1773 eleitores dos 3283 registados em Milheirós de Poiares, tendo-se
a abstenção cifrado nos 46% dos eleitores.
Na ocasião, o Presidente da Câmara Municipal de
Santa Maria da Feira, Alfredo Henriques (PSD), disse pretender a manutenção das fronteiras
do município, o maior e mais populoso do distrito de Aveiro. Porém, em S. João
da Madeira, a Câmara Municipal, liderada então pelo socialdemocrata Castro
Almeida, acolheu a ideia positivamente e a assembleia municipal aprovou a
integração.
O ‘sim’ era defendido por um grupo de 250
independentes e pelos socialistas, então no poder da freguesia, enquanto o PSD
preconizava o “não”.
Milheirós
de Poiares era uma das 31 freguesias de Santa Maria da Feira (hoje 21, por força da
reorganização administrativa territorial), enquanto S. João da Madeira – que confina
precisamente com a localidade em causa – tem atualmente uma única freguesia.
***
Com o rolar do tempo e porque nada fora
decidido pelas competentes instâncias, o movimento conseguiu, através dum grupo
de pessoas independentes, criar, a 10 de julho de 2016, uma petição pública pela integração
de Milheirós de Poiares, freguesia de Santa Maria da Feira, no concelho de S.
João da Madeira, dirigida ao Presidente da Assembleia da República.
Tal petição funda-se em dados geográficos, demográficos, económicos
e sociológicos, de planeamento estratégico e democráticos para solicitar “que a Assembleia
da República desencadeie a iniciativa legislativa que permita a integração da
freguesia de Milheirós de Poiares no concelho de S. João da Madeira na
sequência de um longo processo iniciado há mais de 20 anos”.
***
Ora, do meu ponto de vista, não seria a primeira vez que, em Portugal, a vontade
das freguesias seria respeitada. Recordo o que se passou em 1886, em que várias
freguesias conseguiram a desanexação de um concelho para serem integradas
noutro. E algumas festejaram, em 1996, o centenário desse facto histórico. Como
é, nos termos constitucionais, ao Parlamento que compete deliberar, no âmbito
da reserva absoluta de competência legislativa, sobre a criação e extinção de
autarquias locais ou alteração dos limites de autarquias existentes (cf
CRP, art.º 164.º, alínea n), importa dar aos deputados a liberdade de voto
sobre a matéria, devendo ser ouvidas previamente, nesta matéria, as assembleias
municipais em causa e a assembleia da freguesia interessada. Aliás, “o poder
político pertence ao povo e é exercido nos termos da Constituição” (vd
CRP, art.º 108.º).
Uma
vez que assim é, cumpre-me observar:
1. É pena que se tenha enveredado pelo sistema de petição
pública, pois trata-se de matéria de interesse local bem identificado e
delimitado, e não dum tema transversal à comunidade.
2. O referendo, embora não vinculativo, revelou-se
clarificador.
3. As autoridades do município de Santa Maria da Feira, em
vez da mera resposta negativa nos órgãos municipais (Câmara e Assembleia), deviam ter-se interrogado sobre os reais motivos da pretensão
milheiroense.
4. Não estranho que o município potencialmente recetor tenda
a receber de braços abertos a pretensão.
5. Todavia, para tanto, deveriam estabelecer-se sessões de trabalho
entre os representantes legais das respetivas autarquias (Presidente da Junta de Freguesia de Milheirós de Poiares, Presidente
da Câmara Municipal de Santa Maria da Feira e Presidente da Câmara Municipal de
São João da Madeira).
6. Tais personalidades deveriam pôr-se de acordo um texto
comum ou em dois textos diferentes que deveriam propor para apreciação às
respetivas assembleias.
7. Deveria merecer, em todo o caso, preferência a opção da
freguesia em causa, a menos que tivessem emergido dados ilícitos de manipulação
das populações, o que, a ser verdade, seria submetido à apreciação do poder
judiciário.
8. Finalmente, os presidentes das três assembleias em causa deveriam
submeter as deliberações ao veredicto dos deputados da Assembleia da República.
Obviamente, chegadas as coisas a este ponto, o município de Santa
Maria da Feira, o de São João da Madeira e a freguesia de Freguesia de Milheirós
de Poiares devem, através dos seus órgãos deliberativos, fornecer dados históricos,
demográficos, geocorográficos, de planeamento estratégico e socioeconómicos aos
senhores deputados para estes poderem legislar de forma justa, devendo
prevalecer, se possível, os superiores interesses das populações.
Que uma freguesia se refugie numa petição ou num
abaixo-assinado até entendo, dada a falta de recursos humanos e técnicos de que
dispõe à partida. Porém, os responsáveis do município não podem lançar mão dum
abaixo-assinado ou duma petição pública (para
mais, contra outra petição pública) para suprir a falta de capacidade para cumprirem honrosamente
o mandato que lhes foi entregue pelos eleitores. Quem não tem capacidade de diálogo
com os pares e com os governados, de negociação e de persuasão na defesa dos interesses
da população que representa, pondo dois setores diferentes em confronto (o minoritário e o maioritário), não merece o voto do eleitor. Com
efeito, a democracia deve compaginar o poder da maioria, mas em articulação com
o respeito pela minoria.
Ademais, no
atual regime constitucional, não persiste a prevalência do concelho sobre a
freguesia. Com efeito o art.º 124.º da Constituição
Política e Administrativa da Nação (1933) estabelecia:
“O território
do Continente divide-se em concelhos, que se formam de freguesias e se agrupam
em distritos e províncias, estabelecendo a lei os limites de todas as
circunscrições”.
E, segundo o seu
art.º 125.º, as câmaras municipais e as juntas de freguesia eram “corpos
administrativos”.
Porém, hoje as autarquias
são verdadeiro poder e cada uma tem a sua autonomia e os seus órgãos (deliberativo e executivo), cada um com competências próprias.
Assim, o n.º 1
do art.º 235.º da CRP estabelece que “a organização democrática do Estado
compreende a existência de autarquias locais”; e o seu n.º 2 define-as como “pessoas
colectivas territoriais dotadas de órgãos representativos, que visam a
prossecução de interesses próprios das populações respetivas”.
Por seu turno, o n.º 1 do art.º
236.º estabelece que, “no continente, as
autarquias locais são as freguesias, os municípios e as regiões administrativas”.
Não há, pois, legitimidade para a
Câmara ou a AM invocar qualquer autoridade sobre as freguesias, como poderia
acontecer por tentação!
2017.01.15 – Louro de Carvalho
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