domingo, 15 de janeiro de 2017

Sobre a hipótese de Milheirós de Poiares mudar de município

Está na praça pública a petição “NÃO à desanexação de Milheirós de Poiares do concelho de Santa Maria da Feira – Pela defesa da unidade do concelho de Santa Maria da Feira”. E corre as ruas do concelho pela mão de agentes credenciados, esperam-se os crentes à saída das missas de domingo e incomodam-se os cibernautas por e-mail.
Aduzem que o Concelho tem uma história de unidade, antiguidade e indivisibilidade. Por mim, nada a opor, mas a petição pública apresentada à Assembleia da República pela assembleia de freguesia de Milheirós de Poiares desmente aquela trilogia, fundando-se em dados históricos.
Todavia, sabe-se que houve, em 16 de setembro, um referendo em que a população de Milheirós de Poiares aprovou a integração da freguesia, do município de Santa Maria da Feira, no contíguo concelho de São João da Madeira. Mais, nesse referendo, o 'sim' ganhou com 1.417 votos (80%), enquanto o 'não' teve 329 votos, além dos 12 votos brancos e dos 15 votos nulos – tendo declarado o então presidente da assembleia de freguesia Adriano Martins (PS) que “estamos deveras satisfeitos com esta percentagem de 80 por cento de votos favoráveis”.
O socialista acrescentou que o movimento, que defende a integração da freguesia no concelho de S. João da Madeira, iria depois “levar o assunto à Assembleia Municipal”.
Acresce recordar que, numa decisão tomada por maioria, em fins de julho, o Tribunal Constitucional (TC) autorizara a realização do referendo, pedido pela assembleia de freguesia, mas sublinhando que a consulta não teria caráter vinculativo.
A pergunta validada pelo TC foi:
   “Concorda com a integração da freguesia de Milheirós de Poiares no concelho de S. João da Madeira?”.
Votaram 1773 eleitores dos 3283 registados em Milheirós de Poiares, tendo-se a abstenção cifrado nos 46% dos eleitores.
Na ocasião, o Presidente da Câmara Municipal de Santa Maria da Feira, Alfredo Henriques (PSD), disse pretender a manutenção das fronteiras do município, o maior e mais populoso do distrito de Aveiro. Porém, em S. João da Madeira, a Câmara Municipal, liderada então pelo socialdemocrata Castro Almeida, acolheu a ideia positivamente e a assembleia municipal aprovou a integração.
O ‘sim’ era defendido por um grupo de 250 independentes e pelos socialistas, então no poder da freguesia, enquanto o PSD preconizava o “não”. 
Milheirós de Poiares era uma das 31 freguesias de Santa Maria da Feira (hoje 21, por força da reorganização administrativa territorial), enquanto S. João da Madeira – que confina precisamente com a localidade em causa – tem atualmente uma única freguesia.
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Com o rolar do tempo e porque nada fora decidido pelas competentes instâncias, o movimento conseguiu, através dum grupo de pessoas independentes, criar, a 10 de julho de 2016, uma petição pública pela integração de Milheirós de Poiares, freguesia de Santa Maria da Feira, no concelho de S. João da Madeira, dirigida ao Presidente da Assembleia da República.
Tal petição funda-se em dados geográficos, demográficos, económicos e sociológicos, de planeamento estratégico e democráticos para solicitar “que a Assembleia da República desencadeie a iniciativa legislativa que permita a integração da freguesia de Milheirós de Poiares no concelho de S. João da Madeira na sequência de um longo processo iniciado há mais de 20 anos.
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Ora, do meu ponto de vista, não seria a primeira vez que, em Portugal, a vontade das freguesias seria respeitada. Recordo o que se passou em 1886, em que várias freguesias conseguiram a desanexação de um concelho para serem integradas noutro. E algumas festejaram, em 1996, o centenário desse facto histórico. Como é, nos termos constitucionais, ao Parlamento que compete deliberar, no âmbito da reserva absoluta de competência legislativa, sobre a criação e extinção de autarquias locais ou alteração dos limites de autarquias existentes (cf CRP, art.º 164.º, alínea n), importa dar aos deputados a liberdade de voto sobre a matéria, devendo ser ouvidas previamente, nesta matéria, as assembleias municipais em causa e a assembleia da freguesia interessada. Aliás, “o poder político pertence ao povo e é exercido nos termos da Constituição” (vd CRP, art.º 108.º).
Uma vez que assim é, cumpre-me observar:
1. É pena que se tenha enveredado pelo sistema de petição pública, pois trata-se de matéria de interesse local bem identificado e delimitado, e não dum tema transversal à comunidade.
2. O referendo, embora não vinculativo, revelou-se clarificador.
3. As autoridades do município de Santa Maria da Feira, em vez da mera resposta negativa nos órgãos municipais (Câmara e Assembleia), deviam ter-se interrogado sobre os reais motivos da pretensão milheiroense.
4. Não estranho que o município potencialmente recetor tenda a receber de braços abertos a pretensão.
5. Todavia, para tanto, deveriam estabelecer-se sessões de trabalho entre os representantes legais das respetivas autarquias (Presidente da Junta de Freguesia de Milheirós de Poiares, Presidente da Câmara Municipal de Santa Maria da Feira e Presidente da Câmara Municipal de São João da Madeira).
6. Tais personalidades deveriam pôr-se de acordo um texto comum ou em dois textos diferentes que deveriam propor para apreciação às respetivas assembleias.
7. Deveria merecer, em todo o caso, preferência a opção da freguesia em causa, a menos que tivessem emergido dados ilícitos de manipulação das populações, o que, a ser verdade, seria submetido à apreciação do poder judiciário.
8. Finalmente, os presidentes das três assembleias em causa deveriam submeter as deliberações ao veredicto dos deputados da Assembleia da República.
Obviamente, chegadas as coisas a este ponto, o município de Santa Maria da Feira, o de São João da Madeira e a freguesia de Freguesia de Milheirós de Poiares devem, através dos seus órgãos deliberativos, fornecer dados históricos, demográficos, geocorográficos, de planeamento estratégico e socioeconómicos aos senhores deputados para estes poderem legislar de forma justa, devendo prevalecer, se possível, os superiores interesses das populações.
Que uma freguesia se refugie numa petição ou num abaixo-assinado até entendo, dada a falta de recursos humanos e técnicos de que dispõe à partida. Porém, os responsáveis do município não podem lançar mão dum abaixo-assinado ou duma petição pública (para mais, contra outra petição pública) para suprir a falta de capacidade para cumprirem honrosamente o mandato que lhes foi entregue pelos eleitores. Quem não tem capacidade de diálogo com os pares e com os governados, de negociação e de persuasão na defesa dos interesses da população que representa, pondo dois setores diferentes em confronto (o minoritário e o maioritário), não merece o voto do eleitor. Com efeito, a democracia deve compaginar o poder da maioria, mas em articulação com o respeito pela minoria.
Ademais, no atual regime constitucional, não persiste a prevalência do concelho sobre a freguesia. Com efeito o art.º 124.º da Constituição Política e Administrativa da Nação (1933) estabelecia:
“O território do Continente divide-se em concelhos, que se formam de freguesias e se agrupam em distritos e províncias, estabelecendo a lei os limites de todas as circunscrições”.
E, segundo o seu art.º 125.º, as câmaras municipais e as juntas de freguesia eram “corpos administrativos”.
Porém, hoje as autarquias são verdadeiro poder e cada uma tem a sua autonomia e os seus órgãos (deliberativo e executivo), cada um com competências próprias.
Assim, o n.º 1 do art.º 235.º da CRP estabelece que a organização democrática do Estado compreende a existência de autarquias locais”; e o seu n.º 2 define-as comopessoas colectivas territoriais dotadas de órgãos representativos, que visam a prossecução de interesses próprios das populações respetivas”.
Por seu turno, o n.º 1 do art.º 236.º estabelece que, “no continente, as autarquias locais são as freguesias, os municípios e as regiões administrativas”.
Não há, pois, legitimidade para a Câmara ou a AM invocar qualquer autoridade sobre as freguesias, como poderia acontecer por tentação!

2017.01.15 – Louro de Carvalho

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