quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

O Cemitério dos Prazeres

O facto de o primeiro Presidente da República civil desde 1926 ter sido sepultado no Cemitério dos Prazeres aguçou-me a curiosidade. E as primeiras afirmações que li, na satisfação desta curiosidade, foram que Mário Soares se junta, “a partir desta terça-feira à tarde, a outras figuras portuguesas de destaque, nos Prazeres”, e que “é um cemitério que se cruza com a História de Portugal” (vd Observador on line, de hoje, dia 10).
Depois, vi que o Cemitério da Ajuda (concluído em 1787) fora construído por ordem da rainha Dona Maria I para a população mais pobre das freguesias de Belém e da Ajuda, bem como para os que serviam a Casa Real. Passou para a tutela municipal por iniciativa da rainha Dona Maria II e, em 1849, foi decretada a sua circunscrição à população das freguesias da Ajuda e Belém.
Era, no início, um caso de exceção, porquanto o enterramento era vulgarmente feito nos templos ou no espaço exterior envolvente, sendo que reis e outras figuras de relevo social tinham por uso a construção de túmulos que se erigiam em lugares de destaque nas grandes igrejas (normalmente igrejas de mosteiros) ou em capelas laterais.
Porém, o cemitério dos Prazeres e o do Alto de São João forma mandados construir, no período romântico, pelo Governo de Dona Maria II, em 1833, por razões de saúde pública, uma vez que Lisboa fora acossada pela cólera morbus e tornava-se inconveniente sepultar em espaços religiosos abertos ao culto. Se bem me lembro, foi o decreto de extensão desta prática a todo o reino que levantou a população do norte em protesto contra a mudança de prática no sepultamento dos mortos. Daqui surgiu a revolução capitaneada pela lendária Maria da Fonte, de Fontarcada, da Póvoa de Lanhoso, no Minho.
Para obviar à mortandade resultante da epidemia, eram necessários campos extensos. E, assim, o cemitério do Prazeres serviria a zona ocidental de Lisboa e o cemitério do Alto de São João serviria a zona oriental da cidade.
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Localizado na zona ocidental de Lisboa, o cemitério do Prazeres tornou-se, com o devir temporal, o mais elitista dos cemitérios portugueses, onde estão enterrados grandes nomes da História de Portugal, atores, cantores, políticos e aristocratas. E, para lá de morada dos mortos, constitui-se como um museu ao ar livre – um ecomuseu – por via, sobretudo, das obras arquitetónicas e da escultura funerária, logo a começar pelo Pórtico de entrada do cemitério, que é da autoria do arquiteto Domingos Parente da Silva, podendo ser visitado por qualquer pessoa, a título individual ou em visitas organizadas pela Câmara Municipal de Lisboa.
Esta possibilidade de visita franqueada pela Câmara visa desmistificar a ideia de que os cemitérios são apenas locais de tristeza e dor e corresponde à estética romântica caraterizada pela beleza lúgubre da paisagem e dos ambientes, pelo tétrico, pela cultura da morte, pelos amores contrariados e pelo noivado do sepulcro. Por isso, a CML através da Divisão de Gestão Cemiterial, preserva e valoriza o património arquitetónico e cultural dos cemitérios lisboetas, promovendo várias atividades como visitas guiadas, que podem ser generalistas ou enquadradas em diversas áreas temáticas e percursos.
Com mais de 12 hectares, estão espalhados mais de 7.000 jazigos pelo cemitério-museu. E, desde hoje, ali fica jacente o corpo do ex-Presidente da República Mário Soares em jazigo de família, ao lado da esposa Maria Barroso.
Passados dois anos desde a sua construção, ou seja, em 1835, um decreto-lei de Rodrigo da Fonseca Magalhães veio reforçar e regulamentar a determinação legal de proibir o enterramento dos cadáveres em igrejas, conventos, ermidas e demais espaços religiosos. Por força desse decreto, a gestão do cemitério passou para o município em 1840. O cemitério, construído no lado ocidental de Lisboa, onde estavam os bairros das residências aristocráticas, acabou por se tornar predominantemente o cemitério das famílias com mais poder e influência.
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Mas não só. Este campo dos antepassados alberga o maior mausoléu privado da Europa: o jazigo dos Duques de Palmela. Mandado edificar em 1847, reconhecem-lhe alguns estreita ligação à simbologia maçónica. No interior do mausoléu está sepultado o escol dos criados e na capela, em forma de pirâmide, repousam os familiares e alguns amigos, com o duque de Palmela no centro. O jazigo tem cerca de 200 corpos e restos mortais da família e ainda dois padres amigos da família. Também é neste cemitério que se encontra a maior e mais antiga concentração de ciprestes da Península Ibérica – árvores que vão dando cor ao espaço de mais de 12 hectares com mais de 7000 jazigos, ao mesmo tempo que delimitam as ruas por onde se pode circular.
Constituído quase exclusivamente por jazigos particulares, é possível admirar monumentos de autores anónimos, lado a lado com peças de arquitetos de renome do século XIX até aos nossos dias, bem como o trabalho de alguns dos maiores escultores portugueses, que desta forma se perpetuam através da obra. Foram, assim, sinalizados alguns dos jazigos mais representativos e agrupados em percursos temáticos: História do Cemitério, Personalidades (Grandes Homens) Arquitetura, Escultura, Simbologia (fúnebre, morte e imortalidade, profissões) Maçonaria, Jazigo Palmela.
Voltado para a Ponte 25 de Abril e para a margem sul do Tejo, com uma das vistas mais privilegiadas do cemitério, encontra-se o talhão onde estão sepultados os Bombeiros Sapadores, espaço cedido pela Câmara Municipal para esse efeito em 1911. Ali se pode ver a Cripta dos Bombeiros Sapadores, inaugurada em 1878, projetada pelo arquiteto Dias da Silva, o mesmo que fez a Praça de Touros do Campo Pequeno.
E é na capela do cemitério que se podem ver as antigas salas de autópsias – onde se procedeu às primeiras autópsias fora do Instituto de Medicina Legal – bem como o acervo, onde se podem consultar registos antigos. Lá está instalado, desde 2001, também o Núcleo Museológico, ligação entre o espaço monumental exterior e o seu interior, com vários objetos de culto, sobretudo da morte e da memória, como crucifixos, figuras de santos, candelabros, candeias, peças de cerâmica, livros de orações, bonecos, distribuídos e organizados em diversas vitrinas e muitos outros – normalmente espólio proveniente de jazigo abandonados.
Deambulando neste espaço de privilégio, onde se encontra a maior e mais antiga concentração de ciprestes da Península Ibérica, podemos ainda conhecer os Jazigos dos Escritores I e II, os dois Talhões de Artistas, o Talhão da Polícia de Segurança Pública e o Talhão dos Bombeiros Sapadores, únicos locais passíveis de inumação temporária, já que este cemitério não está circunscrito a nenhuma freguesia.
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É nos Prazeres que se encontram os restos mortais de Ofélia Queiroz, a única namorada que se conheceu a Fernando Pessoa – túmulo descoberto só depois de o próprio Pessoa ter sido trasladado dos Prazeres para os Jerónimos.
Ali repousam atores, cantores, escritores, pintores e apresentadores de televisão.
Estão ali corpos de nomes como: António Gedeão, Cândida Branca Flor, Carlos Paredes, Henrique Mendes, Maluda, Mário Cesariny, Raúl Indipwo e Cesário Verde – mas também Vasco Santana, Fernando Maurício, Raul Solnado, entre muitos outros.
Estiveram também sepultados neste cemitério Aquilino Ribeiro e Amália Rodrigues, que foram, entretanto, trasladados para o Panteão Nacional.
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Este “museu a céu aberto” possui importantes elementos no que diz respeito ao conhecimento da história contemporânea de Portugal, às diferentes atitudes perante a morte, à arquitetura, ao urbanismo, à escultura e à heráldica.
Percorrer o Cemitério é conhecer parte da nossa história, documentada nos inúmeros jazigos que evocam memórias passadas. Aqui se encontram sepultadas personalidades que se destacaram pelas ideias, obras ou ações e aqui podemos ver algumas belas obras da arquitetura portuguesa.
É uma outra forma de dar a conhecer e ajudar o visitante a interpretar a evolução através dos tempos das diferentes atitudes culturais, sociais e psicológicas do ser humano perante a morte.
Todos estes objetos foram alvo de escolha e tratamento cuidadoso, depois de terem sido removidos de jazigos que se encontravam em estado de prescrição, com o propósito de preservar, estudar e trazer a público este património histórico.
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Reza a história-lenda que naquele local existiu uma fonte considerada santa e milagrosa por ter aparecido junto dela uma imagem da Virgem Maria. Por isso, ali se construiu uma ermida dedicada a Nossa Senhora dos Prazeres, vindo a ermida a dar nome a uma extensa quinta que, já no século XVI, servira de refúgio a muitos enfermos das várias epidemias que então assolaram a cidade de Lisboa. Era terra de hortas, vinhas e pomares e estava abrangida pela designação de Campolide, pertencendo à freguesia de Santos. No século XVIII (1741), criou-se a freguesia de Santa Isabel e este espaço foi aí integrado. Entre 1959 e 2013, pertenceu à freguesia homónima (Prazeres), que passou a integrar a nova freguesia da Estrela.
Nos séculos XVI, XVII e XVIII, foi o local procurado por alguns nobres para aí estabelecerem as suas quintas e casas de campo. Eram terrenos arejados, perto da Ribeira de Alcântara e com uma bela vista para o Tejo. Além disso, não ficava muito longe do Paço Real de Alcântara, tanto do agrado do rei D. Pedro II (1648-1706). Ali bem perto (na atual rua do Patrocínio) ficava o Convento da Boa Morte, que acabou com a extinção das Ordens Religiosas (1834), tendo o edifício sido vendido a um particular.
O sossego convida à contemplação e todas aquelas construções nos falam do passado, das pessoas que as mandaram fazer, das que partiram para sempre, das que ficaram com a saudade. E “a fé conserva unidos os que a Morte separa”, como se pode ler numa lápide.
Porém, não podemos esquecer que, originariamente, o termo “prazeres” ou “gozos” se referia à fonte, símbolo bíblico da felicidade, e aos mistérios gozosos do rosário, em torno da encarnação (Anunciação, Visitação. Natal, Apresentação, Encontro com os doutores da Lei).
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Hoje, o cemitério serve de ponto turístico, de espaço de lazer, de pretexto de reflexão, interioridade e oração, local de memória – complexo de História feita de humanismo, piedade, ceticismo e indiferença. Mas que seja de seriedade, de consciência, de vida!

2017.0.10 – Louro de Carvalho

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