O facto de o
primeiro Presidente da República civil desde 1926 ter sido sepultado no
Cemitério dos Prazeres aguçou-me a curiosidade. E as primeiras afirmações que
li, na satisfação desta curiosidade, foram que Mário Soares se junta, “a partir
desta terça-feira à tarde, a outras figuras portuguesas de destaque, nos
Prazeres”, e que “é um cemitério que se cruza com a História de Portugal” (vd Observador on line, de hoje, dia 10).
Depois, vi
que o Cemitério da Ajuda (concluído em 1787) fora
construído por ordem da rainha Dona Maria I para a população mais pobre das
freguesias de Belém e da Ajuda, bem como para os que serviam a Casa Real.
Passou para a tutela municipal por iniciativa da rainha Dona Maria II e, em 1849,
foi decretada a sua circunscrição à população
das freguesias da Ajuda e Belém.
Era, no
início, um caso de exceção, porquanto o enterramento era vulgarmente feito nos
templos ou no espaço exterior envolvente, sendo que reis e outras figuras de
relevo social tinham por uso a construção de túmulos que se erigiam em lugares
de destaque nas grandes igrejas (normalmente igrejas de mosteiros) ou em capelas laterais.
Porém, o
cemitério dos Prazeres e o do Alto de São João forma mandados construir, no
período romântico, pelo Governo de Dona Maria II, em 1833, por razões de saúde
pública, uma vez que Lisboa fora acossada pela cólera morbus e tornava-se inconveniente sepultar em espaços
religiosos abertos ao culto. Se bem me lembro, foi o decreto de extensão desta
prática a todo o reino que levantou a população do norte em protesto contra a
mudança de prática no sepultamento dos mortos. Daqui surgiu a revolução
capitaneada pela lendária Maria da Fonte, de Fontarcada, da Póvoa de Lanhoso,
no Minho.
Para obviar
à mortandade resultante da epidemia, eram necessários campos extensos. E,
assim, o cemitério do Prazeres serviria a zona ocidental de Lisboa e o
cemitério do Alto de São João serviria a zona oriental da cidade.
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Localizado
na zona ocidental de Lisboa, o cemitério do Prazeres tornou-se, com o devir
temporal, o mais elitista dos cemitérios portugueses, onde estão enterrados
grandes nomes da História de Portugal, atores, cantores, políticos e
aristocratas. E, para lá de morada dos mortos, constitui-se como um museu ao ar
livre – um ecomuseu – por via, sobretudo, das obras arquitetónicas e da
escultura funerária, logo a começar pelo Pórtico de entrada do cemitério, que é
da autoria do arquiteto Domingos Parente da Silva, podendo ser visitado
por qualquer pessoa, a título individual ou em visitas organizadas pela Câmara
Municipal de Lisboa.
Esta
possibilidade de visita franqueada pela Câmara visa desmistificar a ideia de que os
cemitérios são apenas locais de tristeza e dor e corresponde à estética
romântica caraterizada pela beleza lúgubre da paisagem e dos ambientes, pelo
tétrico, pela cultura da morte, pelos amores contrariados e pelo noivado do
sepulcro. Por isso, a CML através da Divisão de Gestão Cemiterial, preserva e
valoriza o património arquitetónico e cultural dos cemitérios lisboetas,
promovendo várias atividades como visitas guiadas, que podem ser generalistas
ou enquadradas em diversas áreas temáticas e percursos.
Com mais de
12 hectares, estão espalhados mais de 7.000 jazigos pelo cemitério-museu. E,
desde hoje, ali fica jacente o corpo do ex-Presidente da República Mário Soares
em jazigo de família, ao lado da esposa Maria Barroso.
Passados
dois anos desde a sua construção, ou seja, em 1835, um decreto-lei de Rodrigo da Fonseca Magalhães veio reforçar e regulamentar a determinação legal de
proibir o enterramento dos cadáveres em igrejas, conventos, ermidas e demais
espaços religiosos. Por força desse decreto, a gestão do cemitério passou para
o município em 1840. O cemitério, construído no lado ocidental de Lisboa, onde
estavam os bairros das residências aristocráticas, acabou por se tornar predominantemente
o cemitério das famílias com mais poder e influência.
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Mas não só. Este campo dos antepassados alberga o maior
mausoléu privado da Europa: o jazigo dos Duques de Palmela. Mandado
edificar em 1847, reconhecem-lhe alguns estreita ligação à simbologia maçónica.
No interior do mausoléu está sepultado o escol dos criados e na capela, em
forma de pirâmide, repousam os familiares e alguns amigos, com o duque de
Palmela no centro. O jazigo tem cerca de 200 corpos e restos mortais da família
e ainda dois padres amigos da família. Também é neste cemitério que
se encontra a maior e mais
antiga concentração
de ciprestes da Península Ibérica – árvores que vão dando cor ao
espaço de mais de 12 hectares com mais de 7000 jazigos, ao mesmo tempo que
delimitam as ruas por onde se pode circular.
Constituído
quase exclusivamente por jazigos particulares, é possível admirar monumentos de
autores anónimos, lado a lado com peças de arquitetos de renome do século XIX
até aos nossos dias, bem como o trabalho de alguns dos maiores escultores portugueses,
que desta forma se perpetuam através da obra. Foram, assim,
sinalizados alguns dos jazigos mais representativos e agrupados em percursos
temáticos: História do Cemitério, Personalidades (Grandes
Homens) Arquitetura,
Escultura, Simbologia (fúnebre, morte e imortalidade, profissões) Maçonaria, Jazigo Palmela.
Voltado para
a Ponte 25 de Abril e para a margem sul do Tejo, com uma das vistas mais privilegiadas
do cemitério, encontra-se o talhão onde estão sepultados os Bombeiros
Sapadores, espaço cedido pela Câmara Municipal para esse efeito em 1911. Ali se
pode ver a Cripta dos Bombeiros
Sapadores, inaugurada em 1878, projetada pelo arquiteto Dias da Silva, o mesmo
que fez a Praça de Touros do Campo Pequeno.
E é na
capela do cemitério que se podem ver as antigas salas de autópsias – onde se procedeu às primeiras
autópsias fora do Instituto de Medicina Legal – bem como o acervo, onde se podem consultar registos antigos. Lá
está instalado, desde 2001, também o Núcleo
Museológico, ligação
entre o espaço monumental exterior e o seu interior, com vários objetos de culto, sobretudo da morte e da
memória, como crucifixos, figuras de santos, candelabros, candeias, peças de
cerâmica, livros de
orações, bonecos, distribuídos e organizados em diversas vitrinas e muitos outros – normalmente espólio proveniente de
jazigo abandonados.
Deambulando
neste espaço de privilégio, onde se encontra a maior e mais antiga concentração
de ciprestes da Península Ibérica, podemos ainda conhecer os Jazigos dos
Escritores I e II, os dois Talhões de Artistas, o Talhão da Polícia de
Segurança Pública e o Talhão dos Bombeiros Sapadores, únicos locais passíveis
de inumação temporária, já que este cemitério não está circunscrito a nenhuma
freguesia.
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É nos
Prazeres que se encontram os restos
mortais de Ofélia Queiroz, a única namorada que se conheceu a Fernando
Pessoa – túmulo descoberto só depois de o próprio Pessoa ter sido trasladado
dos Prazeres para os Jerónimos.
Ali repousam atores,
cantores, escritores, pintores e apresentadores de televisão.
Estão ali corpos de nomes como: António Gedeão,
Cândida Branca Flor, Carlos Paredes, Henrique Mendes, Maluda, Mário Cesariny,
Raúl Indipwo e Cesário Verde – mas também Vasco Santana, Fernando Maurício,
Raul Solnado, entre muitos outros.
Estiveram
também sepultados neste cemitério Aquilino Ribeiro e Amália Rodrigues, que
foram, entretanto, trasladados para o Panteão Nacional.
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Este
“museu a céu aberto” possui importantes elementos no que diz respeito ao
conhecimento da história contemporânea de Portugal, às diferentes atitudes
perante a morte, à arquitetura, ao urbanismo, à escultura e à heráldica.
Percorrer
o Cemitério é conhecer parte da nossa história, documentada nos inúmeros
jazigos que evocam memórias passadas. Aqui se encontram sepultadas personalidades
que se destacaram pelas ideias, obras ou ações e aqui podemos ver algumas belas
obras da arquitetura portuguesa.
É
uma outra forma de dar a conhecer e ajudar o visitante a interpretar a evolução
através dos tempos das diferentes atitudes culturais, sociais e psicológicas do
ser humano perante a morte.
Todos
estes objetos foram alvo de escolha e tratamento cuidadoso, depois de terem
sido removidos de jazigos que se encontravam em estado de prescrição, com o
propósito de preservar, estudar e trazer a público este património histórico.
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Reza a
história-lenda que naquele local existiu uma fonte considerada santa e
milagrosa por ter aparecido junto dela uma imagem da Virgem Maria. Por isso,
ali se construiu uma ermida dedicada a Nossa Senhora dos Prazeres, vindo a
ermida a dar nome a uma extensa quinta que, já no século XVI, servira de
refúgio a muitos enfermos das várias epidemias que então assolaram a cidade
de Lisboa. Era terra de hortas, vinhas e pomares e estava abrangida pela
designação de Campolide, pertencendo à freguesia de Santos. No século
XVIII (1741), criou-se a freguesia de Santa Isabel e
este espaço foi aí integrado. Entre 1959 e 2013, pertenceu à freguesia homónima
(Prazeres), que passou a integrar a nova freguesia da Estrela.
Nos séculos
XVI, XVII e XVIII, foi o local procurado por alguns nobres para aí
estabelecerem as suas quintas e casas de campo. Eram terrenos arejados, perto
da Ribeira de Alcântara e com uma bela vista para o Tejo. Além disso, não
ficava muito longe do Paço Real de Alcântara, tanto do agrado do rei D. Pedro
II (1648-1706). Ali bem perto (na atual rua do Patrocínio) ficava o Convento da Boa Morte, que acabou com
a extinção das Ordens Religiosas (1834), tendo o edifício sido vendido a um particular.
O sossego
convida à contemplação e todas aquelas construções nos falam do passado, das
pessoas que as mandaram fazer, das que partiram para sempre, das que ficaram
com a saudade. E “a fé conserva unidos os que a Morte separa”, como se pode ler
numa lápide.
Porém, não
podemos esquecer que, originariamente, o termo “prazeres” ou “gozos” se referia
à fonte, símbolo bíblico da felicidade, e aos mistérios gozosos do rosário, em
torno da encarnação (Anunciação, Visitação. Natal, Apresentação, Encontro
com os doutores da Lei).
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Hoje, o
cemitério serve de ponto turístico, de espaço de lazer, de pretexto de
reflexão, interioridade e oração, local de memória – complexo de História feita
de humanismo, piedade, ceticismo e indiferença. Mas que seja de seriedade, de
consciência, de vida!
2017.0.10 – Louro de Carvalho
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