Reconhecido pelo seu trabalho no campo da ética e da bioética, morreu na
madrugada deste domingo, dia 8 de janeiro, o professor Daniel dos Santos Pinto Serrão, com a idade de 88 anos,
especialista em ética da vida e conselheiro papal na qualidade de membro da Pontifícia
Academia para a Vida. Na origem da sua morte estiveram problemas respiratórios
decorrentes do atropelamento que sofreu há mais de dois anos e dos quais nunca
mais recuperou. Na verdade, em 2014, Serrão foi atropelado numa passadeira, no
cruzamento das ruas do Conde de Avranches com S. Tomé, no Porto, e esteve
internado no Hospital de S. João.
O velório do
ilustre extinto vem decorrendo desde este domingo na Igreja da Lapa, entre as
16 e as 20 horas, e o funeral realiza-se esta segunda-feira pelas 9, 45 horas,
saindo da predita Igreja, como disse à Lusa o filho Manuel Serrão, que
manifestou o desejo de que seja “respeitada a natureza provada dos atos
fúnebres”.
Daniel
Serrão destacou-se na medicina sobretudo pelos seus trabalhos nos campos da
anatomia patológica e bioética, tendo-se destacado como especialista em ética
da vida.
***
Nascido na
freguesia de São Dinis, na cidade
de Vila Real, Trás-os-Montes, a 1 de março de 1928, completou o Curso Geral dos
Liceus, em 1944, em Aveiro, com 18 valores, tendo antes frequentado o Liceu de
Viana do Castelo e o de Coimbra. Ainda em Aveiro, terminou, em 1945, o Curso
Complementar de Ciências, com 18 valores. Em 1951 completou o Curso de Medicina,
na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, com a média final de 17
valores. Cumpriu o serviço militar obrigatório, de 1951 a 1953, em serviço no
Hospital Regional n.º 1 do Porto.
Porém, reservou
sempre lugar especial para a família, que tinha para si um valor nuclear. Casou,
em 1958, com Maria do Rosário de Castro Quaresma Valladares Souto, pouco depois
de ter cumprido o serviço militar em Mafra. Era sua prima afastada e uma das
primeiras professoras de Educação Física, com quem travou conhecimento quando
ambos viviam no Porto. Tiveram 6 filhos (um deles falecido em 1993) e 9 netos. Quando foi mobilizado para Luanda (outubro de
1969), 9 anos após o casamento, já tinham
6 filhos, 4 raparigas e 2 rapazes. Nessa altura, construíram a casa de família
na Rua de S. Tomé, onde viveram toda a sua vida.
Doutorou-se
em 1959, na predita Faculdade de Medicina, com 19 valores. Concorreu em 1961 a
professor extraordinário de Anatomia Patológica, tendo sido aprovado por
unanimidade. De outubro de 1967 a novembro de 1969, esteve mobilizado, em
Luanda, prestando serviço no Hospital Militar como anatomopatologista e
passando à disponibilidade com a patente de major. Tendo concorrido a Professor
Catedrático em 1971, foi aprovado por unanimidade e assumiu a direção do
Serviço Académico e Hospitalar de Anatomia Patológica.
De
24/06/1975 até 30/06/1976, esteve fora do exercício de funções em virtude dum
saneamento, que foi anulado por decisão do Conselho da Revolução, tendo-lhe sido
pagos os vencimentos dos 12 meses em que foi impedido de exercer as suas
funções (académicas e
hospitalares). E,
enquanto esteve impedido, montou e dirigiu um laboratório privado de Anatomia
Patológica que, de julho de 1975 até dezembro de 2002, realizou 1 milhão e 600
mil exames histológicos e citológicos para hospitais públicos e para clientes
privados. Jubilou-se a 1 de março de 1998.
Foi também
membro eleito do Bureau do CDBI do
Conselho da Europa, de 1996 a 2000 e de 2004 a 2008. Entre 1997 e 2008 ocupou o
cargo de President do Working Party on
The Protection of the Human Embryo and Foetus (CDBI CO-GT3). Foi ainda
membro do Conselho Científico das Ciências da Saúde do Instituto Nacional de
Investigação Científica (INIC) desde 1980
até à sua extinção pelo Decreto-Lei 188/92, de 27 de agosto, ou seja, durante
12 anos. Ocupou os cargos de Presidente da Comissão de Fomento da Investigação
em Cuidados de Saúde, do Ministério da Saúde, de 1991 a 2008, de Presidente do
Conselho de Ética da Saúde do Hospital da Ordem da Trindade e de Presidente do
Conselho Médico da Médis. Durante 10 anos fez parte do CNECV (Conselho
Nacional de Ética para as Ciências da Vida). Desempenhou
igualmente os cargos de orientador de 17 dissertações de Mestrado em Bioética
dos cursos da Faculdade de Medicina, Instituto de Bioética e Faculdade de
Filosofia da Universidade Católica Portuguesa (UCP), em Braga, e de professor nos Mestrados de Bioética da UCP. E foi ainda
conselheiro do papa, por ser membro da Academia Pontifícia para a Vida.
Recebeu
vários prémios ao longo da vida, um dos quais o Prémio Pfizer, com que foi
distinguido em 1958, 1961 e 1971, e o Prémio Nacional de Saúde, atribuído pela
Direção-Geral da Saúde (DGS), em 2010.
Foi agraciado com a Medalha de Mérito da Ordem dos Médicos (2002), a Medalha Serviços Distintos do Ministério da Saúde
grau Ouro e a Medalha de Mérito Militar do Ministério da Defesa. E, em 2008,
recebeu do então Presidente da República Cavaco Silva a Grã Cruz da Ordem
Militar de Santiago de Espada.
***
Professor
catedrático e investigador reconhecido
dentro e fora do país no âmbito da anatomia patológica, Serrão assumiu-se como
um eterno otimista e portuense por opção, embora tenha vivido em várias cidades
do país, já que a família acompanhava o pai nas diversas comissões de serviço
em diferentes distritos, enquanto engenheiro e diretor da Junta Autónoma das
Estradas.
Entrou no
ensino da bioética alguns anos depois de ter sido reintegrado como professor da
Faculdade, convidado para lecionar aquela disciplina para suprir a ausência,
por doença, da professora de Deontologia Profissional. Aceitou assumir gratuitamente
a disciplina na condição de ser ele próprio a definir os conteúdos
programáticos. A partir de então nunca mais deixou de investigar e aprofundar
as temáticas da bioética, tornando-se numa voz autorizada e respeitada sobre a
matéria. Viu reconhecidos os seus méritos nestas temáticas quando se tornou
conselheiro do Papa, passando a integrar, no Vaticano, a Pontifícia Academia
para a Vida.
Do trabalho
de anatomopatologista – diagnóstico de doenças através do exame microscópico de
células e tecidos ou macroscópico das peças cirúrgicas – disse Daniel Serrão
que implica que o profissional “tenha resolvido o seu problema pessoal com a
morte”, pois, enquanto não fizer tal esforço “é melhor não se aproximar de
cadáver nenhum nem tentar fazer uma autópsia porque vai correr muito mal” (afirmava em
entrevista em 2012). Para ele,
a morte era o reconhecimento de que a nossa forma física de estar no mundo tem
uma duração temporal limitada.
Entre os
milhares de autópsias que realizou inclui-se o primeiro caso de sida em
Portugal, apesar de então a doença ainda não ser conhecida. Mas identificou as
lesões e disse que “aquilo não cabia em nenhum quadro clínico conhecido”; e,
pouco depois, na América, falou-se pela primeira vez no vírus. Confessou ter
revisto o caso e verificar que as lesões eram as típicas, nos gânglios e no
fígado, mas já não adiantava nada, sendo que o mérito consistia em descobrir.
***
A 7 de junho de
2010, o jornal I publicou uma entrevista sua, de que se respigam
alguns dados marcantes. Nela, Serrão afirma que “o tempo da morte é de uma riqueza
formidável” e que “os médicos têm de olhar para os doentes terminais como
doentes privilegiados para tratar, não para evitar que morram”.
Com 82 anos,
gostava de aparecer, conversar, juntar as pontas soltas da vida num novelo a
que se pode chamar “sabedoria” – um exercício que vive de autoconsciência e
meditação. Falou da morte, de que fez o luto ainda antes dos 20 anos, e do
país, que deixou de ser uma nação.
- A propósito do seu livro de
reflexões, com acento na sabedoria, disse:
“Até aos 75 anos procurei passar o mais despercebido
possível. Por vários motivos, até por feitio. Sempre tive pudor em aparecer,
impor-me. Tinha o laboratório privado de anatomia patológica e parecia que
andava a fazer propaganda. Quando fechei o laboratório, fiquei livre. Mas se
calhar a velhice também muda as pessoas e eu hoje tenho algum gosto em ter
alguma presença pública, e até quem sabe menos autocrítica.”.
E os filhos
ofereceram-lhe um site pessoal, que tem muitos dos seus textos sobre bioética,
antropologia, medicina e saúde – as áreas que tem cultivado.
- Sobre
o atual sistema de saúde, disse concordar com a existência dum Serviço
Nacional de Saúde, mas não este. Pensava que o país tem de ter um serviço
nacional de saúde para as pessoas terem acesso a cuidados de saúde independente
da capacidade para os pagarem, mas sem ser prestado todo pelo Estado. Embora
com alguma relação estatal, têm de ser livres. E pensava que é “um pouco o que
está a acontecer”, explicitando:
“Os hospitais já não são repartições públicas, são empresas, são sociedades
anónimas, são parcerias público-privadas. Percebeu-se que as regras do
funcionalismo público aplicadas à medicina não funcionam, a começar pelos horários.
O doente não tem horários e à medida que médicos e enfermeiros se começaram a
ver como funcionários acabou. Pagam horas extraordinárias? Não pagam? Então não
trabalham. Eu há muitos anos disse que a medicina não era uma atividade
burocratizável. Tem de haver controlo, mas o controlo faz-se pelos resultados.”.
Porém, não reparou que os hospitais públicos não vivem só de horários e
da ideia distorcida da função pública que a sociedade e o Estado resolveram
atacar.
Tendo-se afastado, há 6 anos,
do serviço de anatomia patológica do Hospital de São João que dirigira durante
mais de 30 anos, onde nunca mais entrara, disse ter começado com 10 anos de
antecedência a preparar o afastamento para se dedicar à bioética. Aduziu ter entendido
que, no momento de cessar funções, as pessoas tinham de se sentir livres para
fazerem o que quisessem. Confessou ter gostado de ver como Sobrinho Simões
desenvolveu até à última potência o trabalho e revelou que Fátima Carneiro, ao
ser convidada para assistente, aceitara, mas pondo condições (o que estranhou) e que passou a ser grande especialista em cancro do
estômago e diretora do serviço hospitalar. Sentiu que o crescimento das pessoas
lhe deu formidável alegria.
- Nos anos de reflexão sobre
bioética, julgou que a questão mais difícil foi o estatuto ético do embrião humano por ser o que suscita
maior emotividade, talvez por nos lembrar que todos estivemos naquele estado
durante horas. E, questionando-se se o embrião merece um respeito absoluto,
inferiu que “tem direito absoluto à vida, como todas as outras formas de vida”.
- Porém, não
considerava a eutanásia como igualmente
problemática. Aduziu que “é uma questão que só se deve levantar no
interior dos cuidados de saúde” e raciocinou assim:
“Uma pessoa não pode pedir a outra
para a matar. Só há eutanásia quando uma pessoa pede a outra, de uma forma
clara e responsável, que a mate. Não se aplica, por exemplo, quando se recusa
um tratamento e o médico diz que se não o fizer vai morrer. Há uma diferença no
juízo ético entre a recusa do tratamento e a eutanásia.”.
Depois, explicou:
“Aceitar a opinião da pessoa é um dever do médico, [cujo incumprimento é] punido
com pena de prisão até três anos. A eutanásia não. O médico delibera que vai
matar a pessoa, na sua consciência e nos meios que vai usar, e isso, para mim,
é inaceitável. Agora, se eu [só] disser que é proibido pela lei, não posso
matá-lo, estou a ser hipócrita. Porque é que a pessoa quer morrer? tem dores
insuportáveis? Vamos tratar as dores.”.
Tendo
acompanhado muitas pessoas a morrer, nunca nenhum doente lhe pediu a eutanásia.
E, afirmando que “o tempo da morte é de uma riqueza formidável”, disse postular
que se tenha “disponibilidade” e que já se tenha feito “o luto da própria
morte, senão projeta-se a ansiedade em cima daquele que está a morrer”. E, defendendo que os médicos deviam ser
preparados para isso, referiu por si, ter começado a fazer esse luto muito
cedo:
“Comecei a fazer autópsias de cadáveres ainda antes dos 20 anos. Pegava num
bisturi, abria um cadáver, tirava-lhe as vísceras. Como poderia ter problemas
com a minha morte? O convívio do patologista com o corpo morto dá-lhe noção de
que a morte é um acontecimento natural e até está geneticamente condicionado.”.
Era de
parecer que se deviam repensar “os tratamentos excessivos, fúteis e inúteis”,
sendo que “o médico resiste muito a fazer a avaliação da situação terminal e
tem de aprender a fazê-lo”. Assim, sustentou
que a ponderação das situações terminais deve ser uma especialidade
médica.
Reconheceu a vantagem de os cuidados paliativos serem hoje “uma nova área de especialidade”, justificando
com as novas descobertas e com o que se passava dantes:
“No momento em que se percebeu que havia forma de dar conforto às pessoas
que estão a morrer, criaram-se essas condições. O médico tem de olhar para o
doente terminal como um doente privilegiado para tratar, não para evitar que
morra. […] Não é uma questão de atrasar nem apressar a morte, mas de morrer
rodeado de cuidados. Era um pouco o que se fazia antigamente. Quando as pessoas
iam para casa, como se dizia, desenganadas dos médicos. O doente assumia o
estatuto privilegiado de moribundo e manifestava as suas últimas vontades.”.
Relativamente à crise na bioética, acusou a “apetência da política, da religião, da economia para
absorver a palavra”. Assumiu que a bioética “é uma reflexão livre dos seres
humanos, a partir da sua inteligência, a partir da sua capacidade de apreciação
do mundo e transformação da perceção em significados a que chamamos valores”.
Sendo o valor “o sentido que se atribui, pode ser estético, ético, pode ser bom
ou mau, ou pode ser estúpido ou inteligente a um nível racional”. Porém,
segundo Serrão, “não pode ser um poder porque, no momento em que se transforma
num poder, perde a possibilidade de se exercer reflexão livre dos cidadãos,
cede a condicionantes”. Ou seja, “a ética ou a bioética devem ser prescritivas,
não executivas”.
Como
exemplo, citou a famosa a frase do presidente da GM: “O que é bom para a General Motors é bom para o país.” E comentou (não sei se
os moralistas lhe legitimam o comentário):
“É ético pesando o interesse da empresa, fazer determinada publicidade passa
de indecente a ético consoante o benefício para empresa. Mentir se for uma
coisa muito má não é bom, mas se for uma mentira que dê beneficio até pode ser
incluída na ética da vida social ou política. A Assembleia da República tem uma
comissão de ética para ver se há conflitos de interesses, não para ver se os
deputados falam verdade ou se são homens e mulheres de caráter.”.
No atinente à promulgação da lei do
casamento de pessoas do mesmo sexo, supôs tratar-se
de uma “questão de técnica política”, tendo o Presidente da República evitado
que se continuasse a discutir, embora pudesse não o ter feito, já que faz parte
dos poderes naturais vetar leis. Porém, no caso, “não iria influenciar os debates
sobre a situação económica, aquilo que foi em parte invocado pelo PR”. Subentende-se
a sua discordância quando aponta o peso do império da sexualidade.
Sobre a sua
ligação ao Vaticano, assentiu que era membro da Pontifícia Academia
para a Vida, criada por João Paulo II – uma academia com poucas pessoas, que
funcionou bem durante um primeiro tempo e depois deixaram de ser reuniões fechadas
onde as pessoas estavam à vontade para discutir o seu próprio pensamento e
o Papa pedia para que se pronunciassem sobre determinados assuntos. Estivera
duas vezes com Bento XVI, mas ele não tinha o mesmo estilo, nem se sabia se
quereria manter a academia (aqui revelou-se distraído), referindo que “os textos dele são mais rigorosos do
ponto de vista teológico e até mesmo quando introduz noções científicas”,
sustentando que “João Paulo II gostava mais de tratar os temas de uma forma
mais afetiva”.
Entre as
muitas mudanças, antevia, talvez de forma precoce (não leu o
texto de João Paulo II), o
sacerdócio das mulheres como uma das mudanças em perspetiva. Disse de forma
inexata que “os diáconos já podem ser homens ou mulheres” e que o diácono no
cristianismo primitivo já tinha muitas funções” (discute-se se as diaconisas da
igreja primitiva tinham as funções hoje atribuídas aos diáconos, só homens). E confundiu a canonização de muitas mulheres com a
posição mais alta a que elas (pouquíssimas)
ascenderam, a de doutora da Igreja: Santa Teresa de Ávila, Santa Catarina de
Sena e, recentemente, Santa Teresinha do Menino Jesus e Santa Hildegarda de
Bingen.
Confessou
que, estando a caminho do 4.º ano de Medicina, pusera da hipótese de ser padre.
Ora, “ser médico venceu” e disso não se arrependeu, na convicção de que enquanto
médico podia “realizar algumas das aspirações” que achava ter “como monge
beneditino, que era o serviço para os outros”. E, de facto, esteve “sempre
ligado à Igreja”.
Reconheceu
que a confusão entre fé e vida política nem a Igreja a quer. Referiu que “essa
mistura é péssima”, já bastam “os sítios onde os religiosos são os donos do
país”. Justificou dizendo que “a atividade política e a da inteligência é uma
coisa, e a atividade da inteligência que conduz à fé é outra coisa”.
No respeitante à vida política, à
vida pública, opinou que
“a maior parte das pessoas” que se ouvem falar “falam não para o país, mas em
defesa dos seus interesses”. Assegurando que nunca gostou praticamente de nenhuma
dos que exerceram as funções de primeiro-ministro ou de ministro, de todos,
quem achava “que tem um pensamento profundo da portugalidade ou do sentido da
nação é o Adriano Moreira, que continua hoje completamente livre”. Depois,
disse que gostava muito de “ouvir e ler o Eduardo Lourenço” e que, durante
muito tempo, gostara do “que escreveu o Agostinho da Silva”, que “tinha uma
ideia para a pátria e isso é o mais importante”.
Admitindo a necessidade da “organização
política”, julgava que “o essencial é a nação. Todavia, não encontrava “esse
sentido em muitas pessoas, sobretudo homens e mulheres de 30 e 40 anos, que
sejam capazes de falar à nação como uma nação e não como Estado”. Sustentava que
“o Estado é a nação politicamente organizada, mas a nação existe antes do
Estado”. Por isso, “era preciso que aparecesse alguém capaz de falar à nação”.
Esclareceu que não estava “a
falar de carismáticos, nem de líderes”, mas “de quem seja capaz de ser
entendido pela nação profunda, não apenas pelos intelectuais”. E vincou que “o
sucesso do Salazar nos primeiros dez anos da sua governação foi perceber que
tinha de falar para a nação”. Aduziu que “os historiadores mais independentes”
dizem que, no fim daqueles dez anos, o Estado Novo era igual ao estado velho –
tinha-se organizado em poderes parcelares, políticos, partidários, embora só
houvesse um partido, o regime era partidário”; e que, “a partir do momento em
que havia partido, havia os tipos que eram do partido e os que não eram: acabou
a nação”.
Em relação à sabedoria da velhice, dizia que era importante “chegar a uma idade que permite olhar para trás e fazer
uma perspetiva de absoluto, não de relativo, porque vivemos sempre a
relativizar as coisas”: “cada um, na sua intimidade mais íntima”, vendo-se a si
próprio, “descobre o espírito”. Depois, “ou acha que é só esse espírito que
existe, a autoconsciência, em que nos podemos ver como um outro”, ou entende
que “esse espírito é parte do transcendental”. Achava que “é uma espécie de
intuição”, sendo que “os neurobiologistas começam a ver se haverá algum suporte
neurobiológico para o conhecimento intuitivo”; e, “se houver, pode ser essa a
subtileza da fé”.
***
Enfim, soube
viver com as contingências da vida, fez a sua apreciação do mundo e legou à
posteridade a capacidade de intervenção, de descoberta e de trabalho – legado enriquecedor,
mas não imune às contradições e às vicissitudes ditadas pelo enigma que é o
homem com o seu ser e as suas circunstâncias existenciais.
2017.01.08 – Louro de Carvalho
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