quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Sobre “a palavra do ano 2016”

Em termos internacionais, a expressão “pós-verdade” (“post-truth”, em inglês) é a palavra do ano de 2016. A escolha dos dicionários britânicos Oxford ocorreu e justifica-se no contexto do “Brexit” e da eleição de Trump para a presidência dos Estados Unidos. A expressão corporiza as circunstâncias em que emerge o fenómeno de os “factos objetivos” terem menor influência “na formação da opinião pública do que os apelos emocionais e as opiniões pessoais”.
O termo foi assaz utilizado nos diversos contextos de comentário e análise política e, segundo os editores do Oxford, a sua utilização aumentou 2000% desde o ano de 2015.
Para o dicionário Oxford, cujo objetivo é que a escolha “reflita o ano em linguagem”, a escolha da palavra do ano é feita desde 2004, de entre uma lista de palavras e expressões que se tenham tornado proeminentes nos doze meses anteriores.
A palavra do ano de 2015 foi o emoji, oficialmente chamado de “cara com lágrimas de alegria”. E a escolha gerou polémica por não se tratar propriamente de uma palavra.
Em 2016, a escolha foi feita de entre mais as seguintes:
Adulting Prática de se comportar como adulto responsável, especialmente para executar tarefas mundanas, mas necessárias;
Alt-right Utilizada para caraterizar um grupo nos EUA que se autodenomina “direita alternativa”, que apoiou Donald Trump e sobre quem recai a acusação de racismo e antissemitismo;
Brexiteer Que foi a favor ou fez campanha pela saída do Reino Unido da União Europeia;
Chatbot Programa de computador projetado para simular conversas com usuários humanos, especialmente através da internet;
CoulrofobiaMedo extremo de palhaços;
Glass cliff (penhasco de vidro)Termo usado como referência à situação em que uma mulher ou membro de um grupo minoritário ascende a uma posição de liderança em circunstâncias desafiadoras onde o risco de fracasso é alto;
HyggeQualidade ligada a uma atmosfera aconchegante e a um convívio agradável e ligada a uma sensação de bem-estar típica da cultura dinamarquesa;
Latinx – Pessoa de origem ou ascendência latino-americana, sendo o termo usado como alternativa não binária de género para se referir, ao mesmo tempo, a latinos e latinas;
Woke (Desperta) Usada originalmente por afro-americanos para se referir à postura de ficar alerta para injustiças sociais, especialmente racismo.
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O termo “pós-verdade” foi utilizado pela primeira vez em 1992 pelo argumentista e dramaturgo sérvio-americano Steve Teish na revista “The Nation”. Refletindo sobre a guerra no Golfo Pérsico, Teish lamentava que nós, como pessoas livres, livremente tenhamos decidido querer “viver num mundo de pós-verdade”. A partir daí, durante mais de duas décadas de existência, o termo vem sendo empregue com alguma regularidade. Mas o ano de 2016 foi o cenário temporal da explosão do seu uso. Esta explosão deveu-se a acontecimentos como o referendo de que resultou o “Brexit” e as eleições presidenciais nos Estados Unidos. Ambos os atos de consulta aos eleitores foram precedidos de campanhas marcadas pela disseminação de notícias falsas e boatos. Por exemplo, espalhou-se o boato de que a permanência do Reino Unido na União Europeia lhe custava cerca de 470 milhões de dólares por semana e que o Presidente Barack Obama fora o fundador do ISIS, sendo Hillary Clinton a sua cofundadora. É ainda de assinalar que também o falhanço do acordo de paz na Colômbia e o impeachment de Dilma no Brasil foram eventos marcados pelo iníquo poder da pós-verdade.
Além disso, a instituições democráticas que poderiam e deveriam deter a proliferação de mentiras e boatos quase nada fizeram porque, afinal, são em si mesmas compostas por pessoas que, mesmo reconhecendo a falsidade de algumas notícias, cedem facilmente a preconceitos. Por outro lado, hoje é tão fácil e rápida a disseminação de boatos com consequências devastadoras que a pós-verdade se converteu numa poderosa arma de destruição maciça na política contemporânea.
Pós-verdade, mais do que um termo que exprime um facto ou um fenómeno, é um conceito que materializa uma situação, um estado de alastramento de epifenómenos em que os estratagemas de condicionamento dos factos se tornam eficazes, correspondendo quase sempre aos objetivos de quem os utiliza.
Plataformas hoje largamente utilizadas, como o Facebook, Twitter, ou Whatsapp, favorecem o uso e a proliferação de boatos e mentiras. E, como muitas das histórias são partilhadas por utilizadores “nossos amigos” e em quem depositamos confiança, elas ficam legitimadas de forma quase acrítica e a veridicidade dos conteúdos passa pelos nossos ouvidos e olhos quase que fechados, mas permeáveis à influenciação. Ademais, os algoritmos utilizados pelas redes sociais fazem com que os utilizadores recebam notícias do seu interesse e coadunáveis com o seu ponto de vista político, religioso e cultural. Pelo efeito de “herding”, seguimos o que os amigos seguem, partilhamos o que eles partilham, construindo-se quase automaticamente poderosas bolhas de contrainformação, má informação, preconceitos e, no caso da política, uma polarização extremada e extrema à esquerda e à direita.
À semelhança do que o Google já tinha feito, o Facebook reagiu aceitando as culpas e anunciando que sites que partilhem informações falsas não poderão usar a rede de anúncios do Facebook. Por seu turno, a imprensa que tradicionalmente verifica a veracidade dos conteúdos que publica exige que as redes sociais mantenham uma equipa editorial e filtros que consigam identificar a veracidade das notícias.
É certo que a filtragem e a classificação de conteúdos nas redes sociais será o caminho adequado para combater a disseminação de boatos que apelem a preconceitos e radicalizem posições dos cidadãos. Porém, esta profilaxia nas redes sociais pode ser perniciosa, podendo, na opinião de Jeff Ely, professor na Northwestern University, em Chicago, gerar uma proliferação maior das mesmas. Jeff Ely fundamenta a sua opinião, estribando-se na teoria de jogos nos termos seguintes:
Considerando que inicialmente existem dois jogadores, um jogador consiste no grupo que fabrica a história falsa e o outro jogador é o leitor que não identifica a veracidade da história. Mesmo que saiba que existem grupos que publicam conteúdos noticiosos falsos, o leitor pode crer na veracidade da história publicada. Se a sua crença for suficientemente forte, o leitor lê a história e partilha-a com outros utilizadores da rede social.
Porém, considerando agora um terceiro jogador, o Facebook, que decide filtrar os conteúdos noticiosos que são publicados, existem dois efeitos que influenciam o jogo. Como efeito imediato, altera-se a perspetiva do leitor sobre a veracidade das notícias publicadas. O leitor agora acreditará com acrescida convicção que as histórias que lê no Facebook são verdadeiras, ficando deste modo ainda mais propenso a ler e a partilhar os conteúdos. Um outro efeito, o incentivo estratégico, afeta o grupo que fabrica as histórias falsas. Para este, apesar de ser mais difícil publicar uma história falsa, os benefícios de o fazer são mais altos. Um Facebook mais credível é um instrumento digital mais apetecível para a disseminação de boatos porque os leitores acreditarão ainda mais na veracidade dos mesmos.
Assim, mais do que promover a filtragem dos conteúdos, será importante a educação dos cidadãos no sentido de não aceitarem mentiras e preconceitos de olhos fechados. É certo que a mentira tem pernas curtas, mas, quando a verdade é reposta, já não apaga os estragos que o boato infligiu no universo em que se moveu.
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Sendo assim, é de lamentar a degradação em que o mundo caiu. Em vez da verdade, reina a mentira que, valendo-se da boa fé dos incautos, intoxica a opinião publica e condiciona os inexoravelmente os factos no pressuposto de que eles ocorrem de acordo com a participação livre dos cidadãos. É a perniciosidade da mentira a conduzir os destinos dos povos, sugando-os até ao tutano e fazendo-lhes crer que não há alternativa ao caminho que lhes é obrigatoriamente proposto e que acaba por ser imposto.
Além disso, tem-se pejo de utilizar o termo mentira. Refugiamo-nos hipocritamente no eufemismo da pós-verdade! E a diplomacia fica mais desacreditada e ineficaz e os serviços de informação tornam-se numa inutilidade, predispostos a fazer perder batalhas e guerras. Terrível 2016, em que a mentira, por artes diabólicas, passou a ser verdade! Já escrevia António Aleixo:
“P’ra a mentira ser segura / E atingir profundidade, / Tem de trazer à mistura / Qualquer coisa de verdade!”
Por isso, seria desejável que 2017 fosse um ano de racionalidade e realismo, de verdade na informação que nos envolve. Se não o for, ficará com essa dívida para com o mundo.
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Em Portugal, o panorama não é mais famoso. Em cerimónia realizada hoje, dia 4 de janeiro, a Porto Editora, que tem vindo a tomar da iniciativa da escolha da palavra do ano, anunciou a Palavra do Ano 2016 eleita pelos portugueses: “geringonça”.
A editora informou detalhadamente:
“O vocábulo “geringonça” foi eleito com 35% dos votos, seguido por “campeão” (29%) e “brexit” (8%). Abaixo do pódio ficaram as palavras “parentalidade” (6%), “presidente” (6%), “turismo” (4%), “racismo” (4%), “humanista” (4%), “empoderamento” (3%) e, em último lugar, “microcefalia” (1%), num universo de mais de 25.000 votos.
A palavra “geringonça”, que tem sido utilizada maledicamente pela direita para designar a maioria parlamentar que dá suporte político ao atual governo, integrou a lista das 10 candidatas a  palavra do ano, considerando o destaque que teve ao longo do ano de 2016.
Nestes termos, “geringonça” sucede como Palavra do Ano  a “refugiado” (2015), “corrupção” (2014), “bombeiro” (2013), “entroikado” (2012), “austeridade” (2011), “vuvuzela” (2010) e “esmiuçar” (2009).
Se não alinhamos tão deslavadamente com o poderio da mentira como o resto do mundo que tem vez e voz na matéria, também não estamos de parabéns pela escolha, que revela superficialidade e mau gosto político. Não sei porque não foi escolhida a palavra presidente, dada a sua inegável popularidade. Preferia, por exemplo, “oposição” ou “debate”. É a vida!

2017.01.04 – Louro de Carvalho

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