Em termos internacionais, a expressão “pós-verdade” (“post-truth”, em inglês) é a palavra do ano de 2016. A
escolha dos dicionários britânicos Oxford
ocorreu e justifica-se no contexto do “Brexit”
e da eleição de Trump para a presidência dos Estados Unidos. A expressão corporiza
as circunstâncias em que emerge o fenómeno de os “factos objetivos” terem menor
influência “na formação da opinião pública do que os apelos emocionais e as
opiniões pessoais”.
O termo foi assaz utilizado nos diversos contextos de
comentário e análise política e, segundo os editores do Oxford, a sua utilização aumentou 2000% desde o ano de 2015.
Para o
dicionário Oxford, cujo objetivo é
que a escolha “reflita o ano em linguagem”, a escolha da palavra do ano é feita
desde 2004, de entre uma lista de palavras e expressões que se tenham tornado
proeminentes nos doze meses anteriores.
A palavra do
ano de 2015 foi o emoji, oficialmente
chamado de “cara com lágrimas de alegria”. E a escolha gerou polémica por não
se tratar propriamente de uma palavra.
Em 2016,
a escolha foi feita de entre mais as seguintes:
Adulting – Prática de se comportar como adulto
responsável, especialmente para executar tarefas mundanas, mas necessárias;
Alt-right – Utilizada para caraterizar um grupo nos EUA que
se autodenomina “direita alternativa”, que apoiou Donald Trump e sobre quem
recai a acusação de racismo e antissemitismo;
Brexiteer – Que foi a favor
ou fez campanha pela saída do Reino Unido da União Europeia;
Chatbot – Programa de computador projetado
para simular conversas com usuários humanos, especialmente através da internet;
Coulrofobia – Medo extremo de palhaços;
Glass cliff (penhasco de vidro) – Termo usado como referência à
situação em que uma mulher ou membro de um grupo minoritário ascende a uma
posição de liderança em circunstâncias desafiadoras onde o risco de fracasso é
alto;
Hygge – Qualidade ligada a uma atmosfera aconchegante e a um
convívio agradável e ligada a uma sensação de bem-estar típica da cultura
dinamarquesa;
Latinx – Pessoa de origem ou
ascendência latino-americana, sendo o termo usado como alternativa não binária
de género para se referir, ao mesmo tempo, a latinos e latinas;
Woke (Desperta) – Usada originalmente por afro-americanos para se
referir à postura de ficar alerta para injustiças sociais, especialmente
racismo.
***
O termo “pós-verdade” foi utilizado pela primeira vez
em 1992 pelo argumentista e dramaturgo sérvio-americano Steve Teish na revista
“The Nation”. Refletindo sobre a
guerra no Golfo Pérsico, Teish lamentava que nós, como pessoas livres,
livremente tenhamos decidido querer “viver num mundo de pós-verdade”. A partir
daí, durante mais de duas décadas de existência, o termo vem sendo empregue com
alguma regularidade. Mas o ano de 2016 foi o cenário temporal da explosão do seu
uso. Esta explosão deveu-se a acontecimentos como o referendo de que resultou o
“Brexit” e as eleições presidenciais nos Estados Unidos. Ambos os atos de consulta
aos eleitores foram precedidos de campanhas marcadas pela disseminação de
notícias falsas e boatos. Por exemplo, espalhou-se o boato de que a permanência
do Reino Unido na União Europeia lhe custava cerca de 470 milhões de dólares
por semana e que o Presidente Barack Obama fora o fundador do ISIS, sendo Hillary
Clinton a sua cofundadora. É ainda de assinalar que também o falhanço do acordo
de paz na Colômbia e o impeachment de
Dilma no Brasil foram eventos marcados pelo iníquo poder da pós-verdade.
Além disso, a instituições democráticas que poderiam e
deveriam deter a proliferação de mentiras e boatos quase nada fizeram porque,
afinal, são em si mesmas compostas por pessoas que, mesmo reconhecendo a
falsidade de algumas notícias, cedem facilmente a preconceitos. Por outro lado,
hoje é tão fácil e rápida a disseminação de boatos com consequências devastadoras
que a pós-verdade se converteu numa poderosa arma de destruição maciça na
política contemporânea.
Pós-verdade, mais do que um termo que exprime um facto
ou um fenómeno, é um conceito que materializa uma situação, um estado de alastramento
de epifenómenos em que os estratagemas de condicionamento dos factos se tornam
eficazes, correspondendo quase sempre aos objetivos de quem os utiliza.
Plataformas hoje largamente utilizadas, como o
Facebook, Twitter, ou Whatsapp, favorecem o uso e a proliferação de boatos e
mentiras. E, como muitas das histórias são partilhadas por utilizadores “nossos
amigos” e em quem depositamos confiança, elas ficam legitimadas de forma quase
acrítica e a veridicidade dos conteúdos passa pelos nossos ouvidos e olhos
quase que fechados, mas permeáveis à influenciação. Ademais, os algoritmos
utilizados pelas redes sociais fazem com que os utilizadores recebam notícias
do seu interesse e coadunáveis com o seu ponto de vista político, religioso e
cultural. Pelo efeito de “herding”, seguimos o que os amigos seguem,
partilhamos o que eles partilham, construindo-se quase automaticamente
poderosas bolhas de contrainformação, má informação, preconceitos e, no caso da
política, uma polarização extremada e extrema à esquerda e à direita.
À semelhança do que o Google já tinha feito, o
Facebook reagiu aceitando as culpas e anunciando que sites que partilhem
informações falsas não poderão usar a rede de anúncios do Facebook. Por seu
turno, a imprensa que tradicionalmente verifica a veracidade dos conteúdos que
publica exige que as redes sociais mantenham uma equipa editorial e filtros que
consigam identificar a veracidade das notícias.
É certo que a filtragem e a classificação de conteúdos
nas redes sociais será o caminho adequado para combater a disseminação de
boatos que apelem a preconceitos e radicalizem posições dos cidadãos. Porém,
esta profilaxia nas redes sociais pode ser perniciosa, podendo, na opinião de
Jeff Ely, professor na Northwestern University, em Chicago, gerar uma
proliferação maior das mesmas. Jeff Ely fundamenta a sua opinião, estribando-se
na teoria de jogos nos termos seguintes:
Considerando que inicialmente existem dois jogadores,
um jogador consiste no grupo que fabrica a história falsa e o outro jogador é o
leitor que não identifica a veracidade da história. Mesmo que saiba que existem
grupos que publicam conteúdos noticiosos falsos, o leitor pode crer na veracidade
da história publicada. Se a sua crença for suficientemente forte, o leitor lê a
história e partilha-a com outros utilizadores da rede social.
Porém, considerando agora um terceiro jogador, o
Facebook, que decide filtrar os conteúdos noticiosos que são publicados, existem
dois efeitos que influenciam o jogo. Como efeito imediato, altera-se a
perspetiva do leitor sobre a veracidade das notícias publicadas. O leitor agora
acreditará com acrescida convicção que as histórias que lê no Facebook são
verdadeiras, ficando deste modo ainda mais propenso a ler e a partilhar os
conteúdos. Um outro efeito, o incentivo estratégico, afeta o grupo que fabrica
as histórias falsas. Para este, apesar de ser mais difícil publicar uma
história falsa, os benefícios de o fazer são mais altos. Um Facebook mais
credível é um instrumento digital mais apetecível para a disseminação de boatos
porque os leitores acreditarão ainda mais na veracidade dos mesmos.
Assim, mais do que promover a filtragem dos conteúdos,
será importante a educação dos cidadãos no sentido de não aceitarem mentiras e
preconceitos de olhos fechados. É certo que a mentira tem pernas curtas, mas,
quando a verdade é reposta, já não apaga os estragos que o boato infligiu no
universo em que se moveu.
***
Sendo assim, é de lamentar a degradação em que o mundo
caiu. Em vez da verdade, reina a mentira que, valendo-se da boa fé dos incautos,
intoxica a opinião publica e condiciona os inexoravelmente os factos no
pressuposto de que eles ocorrem de acordo com a participação livre dos cidadãos.
É a perniciosidade da mentira a conduzir os destinos dos povos, sugando-os até
ao tutano e fazendo-lhes crer que não há alternativa ao caminho que lhes é obrigatoriamente
proposto e que acaba por ser imposto.
Além disso, tem-se pejo de utilizar o termo mentira. Refugiamo-nos
hipocritamente no eufemismo da pós-verdade! E a diplomacia fica mais
desacreditada e ineficaz e os serviços de informação tornam-se numa
inutilidade, predispostos a fazer perder batalhas e guerras. Terrível 2016, em
que a mentira, por artes diabólicas, passou a ser verdade! Já escrevia António Aleixo:
“P’ra a mentira ser segura / E atingir
profundidade, / Tem de trazer à mistura / Qualquer coisa de verdade!”
Por isso, seria desejável que 2017 fosse um ano de
racionalidade e realismo, de verdade na informação que nos envolve. Se não o
for, ficará com essa dívida para com o mundo.
***
Em Portugal, o panorama não é mais famoso. Em cerimónia realizada
hoje, dia 4 de janeiro, a Porto Editora,
que tem vindo a tomar da iniciativa da escolha da palavra do ano, anunciou a Palavra
do Ano 2016 eleita
pelos portugueses: “geringonça”.
A editora informou detalhadamente:
“O vocábulo “geringonça” foi eleito com 35% dos votos, seguido por “campeão” (29%) e “brexit” (8%). Abaixo do pódio ficaram as palavras “parentalidade” (6%), “presidente” (6%), “turismo” (4%), “racismo” (4%), “humanista” (4%), “empoderamento” (3%) e, em último lugar, “microcefalia” (1%), num universo de mais de 25.000 votos.
A palavra “geringonça”, que tem sido
utilizada maledicamente pela direita para designar a maioria parlamentar que dá
suporte político ao atual governo, integrou a lista das 10 candidatas a palavra do ano, considerando
o destaque que teve ao longo do ano de 2016.
Nestes termos, “geringonça” sucede como Palavra
do Ano a “refugiado” (2015), “corrupção” (2014), “bombeiro” (2013), “entroikado” (2012), “austeridade” (2011), “vuvuzela” (2010) e “esmiuçar” (2009).
Se não alinhamos tão deslavadamente com o poderio da mentira
como o resto do mundo que tem vez e voz na matéria, também não estamos de parabéns
pela escolha, que revela superficialidade e mau gosto político. Não sei porque
não foi escolhida a palavra presidente,
dada a sua inegável popularidade. Preferia, por exemplo, “oposição” ou “debate”.
É a vida!
2017.01.04 – Louro de Carvalho
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