Em discurso
ao Corpo Diplomático acreditado junto
da Santa Sé, no dia 9 de janeiro de 2017, o Papa formulou os votos
enunciados em epígrafe para o novo ano que já vai ano seu 15.º dia.
Na predita
alocução, o Pontífice frisou o aprofundamento, ocorrido no ano anterior, das
relações entre os diversos países e a Sé Apostólica, para o que contribuíram: o
aumento de representações diplomáticas; as visitas de numerosos chefes de
Estado e de governo, muitas “em concomitância com os vários eventos que
constelaram o Jubileu extraordinário da Misericórdia”; os vários Acordos
bilaterais assinados ou ratificados, de caráter geral ou de caráter mais
específico como o Avenant assinado com a França ou a Convenção
em matéria fiscal com a República Italiana e o Memorando de Acordo entre a
Secretaria de Estado e o Governo dos Emiratos Árabes Unidos. E foi implementado
o Comprehensive Agreement com o Estado da Palestina, em vigor
há um ano.
***
Depois,
falou do que se passou há um século, com destaque para a I Guerra Mundial, no seu
auge em 1917 (ano em que assumiu uma fisionomia global) e que denominou de massacre inútil, em que novas técnicas de
combate causaram a morte e sofrimentos enormes aos militares e à população
civil indefesa – cenário de que resultou o assomo ao horizonte daqueles “regimes
totalitários que haveriam de ser, durante longo tempo, causa de dilacerantes
divisões”.
Agora, é
certo que “muitas partes do mundo beneficiaram de longos períodos de paz, que
propiciaram oportunidades de desenvolvimento económico” e formas sem
precedentes de “bem-estar”. De facto, para muitos, a paz aparece como “um bem
indiscutido, quase um direito adquirido”. Em contraponto, para outros, a paz “é
apenas uma miragem distante”, pois “milhões de pessoas vivem ainda no meio de
conflitos insensatos”.
Por
conseguinte, o Papa passou a abordar “o tema da segurança e da paz”, considerando
que, “no clima de geral apreensão pelo presente e de incerteza e angústia pelo
futuro”, importa dirigir “uma palavra de esperança”, indicativa de “perspetivas
de caminho”.
Evocando a
celebração do Dia Mundial da Paz a 1
de janeiro, instituído por Paulo VI, “como auspiciosa promessa – na abertura do
calendário que mede e descreve o caminho da vida humana no tempo – de que seja
a paz, com o seu justo e benéfico equilíbrio, a dominar o desenrolar da
história futura”, referiu que, “para os cristãos, a paz é um dom do
Senhor, aclamada e cantada pelos anjos no momento do nascimento de Cristo”, um
bem positivo, “fruto da ordem que o divino Criador estabeleceu para a sociedade
humana”, não se reduzindo ao “estabelecimento do equilíbrio entre as forças adversas”, mas exigindo “o
compromisso das pessoas de boa vontade, sempre anelantes por uma mais perfeita
justiça”.
Nesta ótica,
sustentou que a cada expressão religiosa incumbe a promoção da Paz – o que pôde
experimentar durante a Jornada Mundial de
Oração Pela Paz, em Assis, com o encontro dos representantes das diferentes
religiões para “dar voz em conjunto a quantos sofrem, a quantos se encontram
sem voz e sem escuta” e na visita ao Templo Maior de
Roma ou à Mesquita de Baku.
Falando das violências
cometidas por motivação religiosa, a começar pela Europa, onde históricas
divisões entre os cristãos perduram há demasiado tempo, destacou a sua viagem à
Suécia lembrando a urgência de “curar as feridas do passado e caminhar juntos
para objetivos comuns”.
Apontou
preocupação similar no encontro de Cuba com o Patriarca Cirilo de Moscovo e nas
visitas apostólicas à Arménia, Geórgia e Azerbaijão. E enalteceu “as
múltiplas obras, religiosamente inspiradas”, que concorrem, até com o
sacrifício dos mártires, “para a edificação do bem comum”, pela educação e assistência
sanitária, sobretudo “nas regiões mais desfavorecidas e nos cenários de
conflito”; contribuem para a paz; e mostram como se pode viver e trabalhar em
conjunto independentemente da pertença a diferentes povos, culturas e tradições,
pondo em destaque a dignidade da pessoa humana.
***
Anotando,
porém, que a experiência religiosa é, às vezes, usada como pretexto de
fechamentos, marginalizações e violências, apontou a ceifa de numerosas vítimas
em todo o mundo pelo terrorismo de matriz fundamentalista. Chamando-lhe “loucura
homicida” que, para afirmar a vontade de predomínio e poder,” abusa do nome de
Deus “para semear morte”.
Reconhecendo
que “o terrorismo fundamentalista é fruto duma grave miséria espiritual”,
associada a uma “notável pobreza social”, assegura que “poderá ser plenamente
vencido apenas com a colaboração conjunta dos líderes religiosos e dos líderes
políticos”, do seguinte modo:
“Aos primeiros cabe a tarefa de transmitir aqueles valores religiosos que
não admitem contraposição entre o temor de Deus e o amor ao próximo. Aos
líderes políticos compete garantir, no espaço público, o direito à liberdade
religiosa, reconhecendo a contribuição positiva e construtiva que a mesma
exerce na edificação da sociedade civil, onde não podem ser sentidas como
contraditórias a pertença social, sancionada pelo princípio de cidadania, e a
dimensão espiritual da vida. Além disso, compete a quem governa a
responsabilidade de evitar a formação daquelas condições que se tornam terreno
fértil para a propagação dos fundamentalismos.”.
Mas Francisco
não esquece nem descura:
“Isto requer adequadas políticas sociais tendentes a combater a pobreza,
que não podem prescindir duma sincera valorização da família, como lugar
privilegiado da maturação humana, e de investimentos conspícuos nos setores
educativo e cultural”.
Depois,
saudou a iniciativa do Conselho da Europa “sobre a dimensão religiosa do
diálogo intercultural”, que no ano passado abordou “o papel da educação” na
prevenção da radicalização conducente ao terrorismo e ao extremismo violento.
***
Voltando ao
tema da paz, entendeu que a autoridade política não se pode cingir à garantia da
segurança dos cidadãos, mas deve tornar-se “verdadeira promotora e obreira de
paz”, que é uma “virtude ativa”, a requerer “o empenho e a cooperação de
cada indivíduo e do corpo social no seu todo” e a renúncia à violência na
reivindicação dos próprios direitos.
Aqui,
Francisco passa à retoma do teor da sua mensagem para o cinquentenário do Dia Mundial da Paz, sob o tema “A não
violência: o estilo duma política para a paz”, para lembrar, antes de mais,
que “não violência é um estilo político, baseado na primazia do direito e da
dignidade de toda a pessoa” e que a edificação da paz exige a eliminação das “causas
das discórdias entre os homens, que são as que alimentam as guerras, a
começar pelas injustiças”.
E sublinhou
a relevância do Jubileu extraordinário da Misericórdia para a perceção da misericórdia
como valor social e fautora da justiça que leva
à paz e para a construção de “uma cultura de misericórdia, com
base na redescoberta do encontro com os outros: uma cultura na qual ninguém
olhe para o outro com indiferença, nem vire a cara quando vê o sofrimento dos
irmãos”.
***
A este
respeito, vincou a problemática do acolhimento aos estrangeiros sem a perda da
segurança interna, dado que, nos dias de hoje, “continuam, ininterruptos,
enormes fluxos migratórios em diferentes partes do mundo”. E referiu particularmente
os casos dos numerosos deslocados e refugiados nalgumas áreas da África, no
sudeste asiático e todos aqueles que fogem das zonas de conflito no Médio
Oriente.
Lembrou que,
no ano passado, a comunidade internacional enfrentou o problema em dois
encontros importantes, convocados pelas Nações Unidas: a Primeira Cimeira Mundial da Ajuda Humanitária e a Cimeira sobre os Amplos Movimentos de
Refugiados e Migrantes.
Sobre os
países de acolhimento, disse:
“É preciso um empenho comum em favor de migrantes, deslocados e refugiados,
que permita proporcionar-lhes um acolhimento digno. Isto implica saber conjugar
o direito de cada ser humano a transferir-se para outras comunidades políticas
e nelas domiciliar-se e, ao mesmo tempo, garantir a possibilidade duma
integração dos migrantes nos tecidos sociais onde se inserem, sem que estes
sintam ameaçada a sua segurança, a própria identidade cultural e os seus
próprios equilíbrios político-sociais.”.
Mas não
descurou os deveres dos acolhidos:
“Por outro lado, os próprios migrantes não devem esquecer que têm o dever
de respeitar as leis, a cultura e as tradições dos países onde são acolhidos”.
Recordou a
viagem à Ilha de Lesbos, juntamente com o Patriarca Bartolomeu e o Arcebispo
Ieronymos, onde viu a situação dramática dos campos de refugiados, mas também a
humanidade e o espírito de serviço de muitas pessoas empenhadas na sua
assistência – tal como enalteceu a hospitalidade oferecida por outros países
europeus e do Médio Oriente e o empenho de diferentes países da África e da
Ásia. De igual modo, se referiu à sua visita ao México, onde experimentou a
alegria do povo mexicano e se sentiu “solidário com os milhares de migrantes da
América Central, que suportam terríveis injustiças e perigos na tentativa de
poderem ter um futuro melhor, vítimas de extorsão e objeto daquele comércio
perverso – horrível forma de escravatura moderna – que é o tráfico das pessoas”.
Depois,
anatematizou como inimiga da paz a visão redutora do homem que “abre o caminho
à difusão da iniquidade, das desigualdades sociais, da corrupção”. Por isso,
contra o fenómeno da corrupção, comunicou que a Santa Sé assumira novos
compromissos, tendo depositado formalmente, a 19 de setembro pp, o instrumento
de adesão à Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, adotada
pela Assembleia Geral das ONU em 31 de outubro de 2003.
Reportando-se
à encíclica Populorum Progressio, de Paulo
VI, cujo cinquentenário ocorre este ano, lembrou que as “desigualdades provocam
discórdias” e que “o caminho da paz passa pelo desenvolvimento”, sendo que
“as autoridades públicas têm a responsabilidade de a encorajar e favorecer,
criando as condições para uma distribuição mais equitativa dos recursos e
estimulando as oportunidades de emprego, especialmente para os mais jovens”.
***
No pressuposto
de que “as crianças e os jovens são o futuro”, adverte que “não podem ser,
egoisticamente, negligenciados e esquecidos”. Por isso, mencionando a carta que
enviou aos bispos, disse:
“Considero prioritária a defesa das crianças, cuja inocência é
frequentemente espezinhada sob o peso da exploração, do trabalho clandestino e
escravo, da prostituição ou dos abusos dos adultos, dos bandidos e dos
mercadores de morte”.
Por outro lado,
mencionando a sua viagem à Polónia por ocasião da JMJ, referiu ter encontrado “milhares
de jovens, cheios de entusiasmo e alegria de viver”. Porém, reconheceu que, “em
muitos outros”, tem visto “a tristeza e o sofrimento”.
Almeja a paz
na Síria, como aliás nas diversas partes do mundo. Para tanto, propõe a erradicação
do “perverso comércio das armas”, da “insistência constante de se produzirem e
disseminarem armamentos cada vez mais sofisticados” e do fácil acesso ao
mercado das armas mesmo de pequeno calibre. Há que evitar o agravamento da
situação em áreas de conflito, bem como a criação do ambiente de insegurança e
de medo em tempos de incerteza social e de mudanças epocais.
A este
propósito, assegura a atualidade das palavras de João XXIII, na Pacem in Terris:
“A reta razão e o sentido da dignidade humana terminantemente exigem que se
pare com esta corrida ao poderio militar; que o material de guerra, instalado
em várias nações, se vá reduzindo duma parte e doutra, simultaneamente; que sejam
banidas as armas atómicas”.
Avisa também
que a ideologia também é inimiga da paz quando se vale dos problemas sociais “para
fomentar o desprezo e o ódio” e “vê o outro como um inimigo a aniquilar”. Aqui,
denuncia o assomo de novas formas ideológicas, que se mascaram como portadoras
de bem para o povo”, mas o que “deixam atrás de si é pobreza, divisões, tensões
sociais, sofrimento e, por vezes, também morte”. Pelo contrário, o Papa
assegura que a paz se conquista “com a solidariedade”, a partir da qual “germina
a vontade de diálogo e a colaboração, que encontra na diplomacia um instrumento
fundamental”.
A este respeito,
salientou o contributo da Santa Sé para a reaproximação entre Cuba e EUA e o
esforço de paz na Colômbia.
E, depois de
passar em revista o que se passa em diversos pontos do mundo e que urge solucionar,
o Papa Francisco não deixa de apontar o dedo à Europa.
Reconhecendo
que esta atravessa “um momento decisivo da sua história”, que a chama a “reencontrar
a sua identidade”, sustenta que “isto exige a redescoberta das suas raízes, a
fim de poder moldar o seu próprio futuro”. E avisa:
“Face aos impulsos desagregadores, é muito urgente atualizar a ideia de
Europa para dar à luz um novo humanismo baseado na capacidade de integrar,
dialogar e gerar, que fez grande o chamado Velho Continente. O processo de
unificação europeia, que começou depois do segundo conflito mundial, foi e
continua a ser uma ocasião única de estabilidade, paz e solidariedade entre os
povos.”.
E reiterou o
interesse e a preocupação da Santa Sé pela Europa e o seu futuro, na certeza de
que os valores, em que teve origem e se baseia este projeto – que chega este
ano ao 60.º aniversário –, são comuns a todo o Continente e se estendem para lá
das fronteiras da União Europeia.
***
Por fim,
surge a indicação de que a consecução da paz passa pelo empenho ativo no
cuidado da criação, da Terra. Por isso, além de ter relevado os esforços em
torno das alterações climáticas, saudou o Acordo de Paris sobre o clima, ora em
vigor, como “um sinal importante do compromisso comum para deixar a quem vier
depois de nós um mundo belo e habitável”. Mas não olvidou os fenómenos que
excedem as possibilidades da ação humana, numa referência explícita aos
numerosos terramotos que atingiram algumas regiões do mundo. E confidenciou:
“Pude visitar pessoalmente algumas áreas atingidas pelo terramoto no centro
da Itália, onde, ao constatar as feridas que o sismo causou a uma terra rica de
arte e cultura, pude compartilhar a amargura de tantas pessoas, juntamente com
a sua coragem e determinação em reconstruir tudo o que foi destruído. Espero
que a solidariedade que uniu o querido povo italiano nas horas sucessivas ao terramoto
continue a animar a nação inteira, sobretudo neste momento delicado da sua
história.”.
E, a perpassar
toda a alocução papal, emerge numa espécie de cordão de ouro a paz como dom,
desafio e compromisso: dom, por brotar
do coração de Deus; desafio, por ser um bem nunca adquirido; e compromisso, por requerer o trabalho
apaixonado de todas as pessoas de boa vontade, que têm uma visão do homem que
leve à promoção do desenvolvimento integral, considerando a sua dignidade
transcendente.
2017.01.15 – Louro de Carvalho
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