domingo, 15 de janeiro de 2017

Tempo de alegria, prosperidade e paz para todos

Em discurso ao Corpo Diplomático acreditado junto da Santa Sé, no dia 9 de janeiro de 2017, o Papa formulou os votos enunciados em epígrafe para o novo ano que já vai ano seu 15.º dia.
Na predita alocução, o Pontífice frisou o aprofundamento, ocorrido no ano anterior, das relações entre os diversos países e a Sé Apostólica, para o que contribuíram: o aumento de representações diplomáticas; as visitas de numerosos chefes de Estado e de governo, muitas “em concomitância com os vários eventos que constelaram o Jubileu extraordinário da Misericórdia”; os vários Acordos bilaterais assinados ou ratificados, de caráter geral ou de caráter mais específico como o Avenant assinado com a França ou a Convenção em matéria fiscal com a República Italiana e o Memorando de Acordo entre a Secretaria de Estado e o Governo dos Emiratos Árabes Unidos. E foi implementado o Comprehensive Agreement com o Estado da Palestina, em vigor há um ano.
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Depois, falou do que se passou há um século, com destaque para a I Guerra Mundial, no seu auge em 1917 (ano em que assumiu uma fisionomia global) e que denominou de massacre inútil, em que novas técnicas de combate causaram a morte e sofrimentos enormes aos militares e à população civil indefesa – cenário de que resultou o assomo ao horizonte daqueles “regimes totalitários que haveriam de ser, durante longo tempo, causa de dilacerantes divisões”.
Agora, é certo que “muitas partes do mundo beneficiaram de longos períodos de paz, que propiciaram oportunidades de desenvolvimento económico” e formas sem precedentes de “bem-estar”. De facto, para muitos, a paz aparece como “um bem indiscutido, quase um direito adquirido”. Em contraponto, para outros, a paz “é apenas uma miragem distante”, pois “milhões de pessoas vivem ainda no meio de conflitos insensatos”.
Por conseguinte, o Papa passou a abordar “o tema da segurança e da paz”, considerando que, “no clima de geral apreensão pelo presente e de incerteza e angústia pelo futuro”, importa dirigir “uma palavra de esperança”, indicativa de “perspetivas de caminho”.
Evocando a celebração do Dia Mundial da Paz a 1 de janeiro, instituído por Paulo VI, “como auspiciosa promessa – na abertura do calendário que mede e descreve o caminho da vida humana no tempo – de que seja a paz, com o seu justo e benéfico equilíbrio, a dominar o desenrolar da história futura”, referiu que, “para os cristãos, a paz é um dom do Senhor, aclamada e cantada pelos anjos no momento do nascimento de Cristo”, um bem positivo, “fruto da ordem que o divino Criador estabeleceu para a sociedade humana”, não se reduzindo ao “estabelecimento do equilíbrio entre as forças adversas”, mas exigindo “o compromisso das pessoas de boa vontade, sempre anelantes por uma mais perfeita justiça”.
Nesta ótica, sustentou que a cada expressão religiosa incumbe a promoção da Paz – o que pôde experimentar durante a Jornada Mundial de Oração Pela Paz, em Assis, com o encontro dos representantes das diferentes religiões para “dar voz em conjunto a quantos sofrem, a quantos se encontram sem voz e sem escuta” e na visita ao Templo Maior de Roma ou à Mesquita de Baku.
Falando das violências cometidas por motivação religiosa, a começar pela Europa, onde históricas divisões entre os cristãos perduram há demasiado tempo, destacou a sua viagem à Suécia lembrando a urgência de “curar as feridas do passado e caminhar juntos para objetivos comuns”.
Apontou preocupação similar no encontro de Cuba com o Patriarca Cirilo de Moscovo e nas visitas apostólicas à Arménia, Geórgia e Azerbaijão. E enalteceu “as múltiplas obras, religiosamente inspiradas”, que concorrem, até com o sacrifício dos mártires, “para a edificação do bem comum”, pela educação e assistência sanitária, sobretudo “nas regiões mais desfavorecidas e nos cenários de conflito”; contribuem para a paz; e mostram como se pode viver e trabalhar em conjunto independentemente da pertença a diferentes povos, culturas e tradições, pondo em destaque a dignidade da pessoa humana.
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Anotando, porém, que a experiência religiosa é, às vezes, usada como pretexto de fechamentos, marginalizações e violências, apontou a ceifa de numerosas vítimas em todo o mundo pelo terrorismo de matriz fundamentalista. Chamando-lhe “loucura homicida” que, para afirmar a vontade de predomínio e poder,” abusa do nome de Deus “para semear morte”.
Reconhecendo que “o terrorismo fundamentalista é fruto duma grave miséria espiritual”, associada a uma “notável pobreza social”, assegura que “poderá ser plenamente vencido apenas com a colaboração conjunta dos líderes religiosos e dos líderes políticos”, do seguinte modo:
“Aos primeiros cabe a tarefa de transmitir aqueles valores religiosos que não admitem contraposição entre o temor de Deus e o amor ao próximo. Aos líderes políticos compete garantir, no espaço público, o direito à liberdade religiosa, reconhecendo a contribuição positiva e construtiva que a mesma exerce na edificação da sociedade civil, onde não podem ser sentidas como contraditórias a pertença social, sancionada pelo princípio de cidadania, e a dimensão espiritual da vida. Além disso, compete a quem governa a responsabilidade de evitar a formação daquelas condições que se tornam terreno fértil para a propagação dos fundamentalismos.”.
Mas Francisco não esquece nem descura:
“Isto requer adequadas políticas sociais tendentes a combater a pobreza, que não podem prescindir duma sincera valorização da família, como lugar privilegiado da maturação humana, e de investimentos conspícuos nos setores educativo e cultural”.
Depois, saudou a iniciativa do Conselho da Europa “sobre a dimensão religiosa do diálogo intercultural”, que no ano passado abordou “o papel da educação” na prevenção da radicalização conducente ao terrorismo e ao extremismo violento.
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Voltando ao tema da paz, entendeu que a autoridade política não se pode cingir à garantia da segurança dos cidadãos, mas deve tornar-se “verdadeira promotora e obreira de paz”, que é uma “virtude ativa”, a requerer “o empenho e a cooperação de cada indivíduo e do corpo social no seu todo” e a renúncia à violência na reivindicação dos próprios direitos.
Aqui, Francisco passa à retoma do teor da sua mensagem para o cinquentenário do Dia Mundial da Paz, sob o tema “A não violência: o estilo duma política para a paz”, para lembrar, antes de mais, que “não violência é um estilo político, baseado na primazia do direito e da dignidade de toda a pessoa” e que a edificação da paz exige a eliminação das “causas das discórdias entre os homens, que são as que alimentam as guerras, a começar pelas injustiças”.
E sublinhou a relevância do Jubileu extraordinário da Misericórdia para a perceção da misericórdia como valor social e fautora da justiça que leva à paz e para a construção de “uma cultura de misericórdia, com base na redescoberta do encontro com os outros: uma cultura na qual ninguém olhe para o outro com indiferença, nem vire a cara quando vê o sofrimento dos irmãos”.
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A este respeito, vincou a problemática do acolhimento aos estrangeiros sem a perda da segurança interna, dado que, nos dias de hoje, “continuam, ininterruptos, enormes fluxos migratórios em diferentes partes do mundo”. E referiu particularmente os casos dos numerosos deslocados e refugiados nalgumas áreas da África, no sudeste asiático e todos aqueles que fogem das zonas de conflito no Médio Oriente.
Lembrou que, no ano passado, a comunidade internacional enfrentou o problema em dois encontros importantes, convocados pelas Nações Unidas: a Primeira Cimeira Mundial da Ajuda Humanitária e a Cimeira sobre os Amplos Movimentos de Refugiados e Migrantes.
Sobre os países de acolhimento, disse:
“É preciso um empenho comum em favor de migrantes, deslocados e refugiados, que permita proporcionar-lhes um acolhimento digno. Isto implica saber conjugar o direito de cada ser humano a transferir-se para outras comunidades políticas e nelas domiciliar-se e, ao mesmo tempo, garantir a possibilidade duma integração dos migrantes nos tecidos sociais onde se inserem, sem que estes sintam ameaçada a sua segurança, a própria identidade cultural e os seus próprios equilíbrios político-sociais.”.
Mas não descurou os deveres dos acolhidos:
“Por outro lado, os próprios migrantes não devem esquecer que têm o dever de respeitar as leis, a cultura e as tradições dos países onde são acolhidos”.
Recordou a viagem à Ilha de Lesbos, juntamente com o Patriarca Bartolomeu e o Arcebispo Ieronymos, onde viu a situação dramática dos campos de refugiados, mas também a humanidade e o espírito de serviço de muitas pessoas empenhadas na sua assistência – tal como enalteceu a hospitalidade oferecida por outros países europeus e do Médio Oriente e o empenho de diferentes países da África e da Ásia. De igual modo, se referiu à sua visita ao México, onde experimentou a alegria do povo mexicano e se sentiu “solidário com os milhares de migrantes da América Central, que suportam terríveis injustiças e perigos na tentativa de poderem ter um futuro melhor, vítimas de extorsão e objeto daquele comércio perverso – horrível forma de escravatura moderna – que é o tráfico das pessoas”.
Depois, anatematizou como inimiga da paz a visão redutora do homem que “abre o caminho à difusão da iniquidade, das desigualdades sociais, da corrupção”. Por isso, contra o fenómeno da corrupção, comunicou que a Santa Sé assumira novos compromissos, tendo depositado formalmente, a 19 de setembro pp, o instrumento de adesão à Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, adotada pela Assembleia Geral das ONU em 31 de outubro de 2003.
Reportando-se à encíclica Populorum Progressio, de Paulo VI, cujo cinquentenário ocorre este ano, lembrou que as “desigualdades provocam discórdias” e que “o caminho da paz passa pelo desenvolvimento”, sendo que “as autoridades públicas têm a responsabilidade de a encorajar e favorecer, criando as condições para uma distribuição mais equitativa dos recursos e estimulando as oportunidades de emprego, especialmente para os mais jovens”.
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No pressuposto de que “as crianças e os jovens são o futuro”, adverte que “não podem ser, egoisticamente, negligenciados e esquecidos”. Por isso, mencionando a carta que enviou aos bispos, disse:
“Considero prioritária a defesa das crianças, cuja inocência é frequentemente espezinhada sob o peso da exploração, do trabalho clandestino e escravo, da prostituição ou dos abusos dos adultos, dos bandidos e dos mercadores de morte”.
Por outro lado, mencionando a sua viagem à Polónia por ocasião da JMJ, referiu ter encontrado “milhares de jovens, cheios de entusiasmo e alegria de viver”. Porém, reconheceu que, “em muitos outros”, tem visto “a tristeza e o sofrimento”.
Almeja a paz na Síria, como aliás nas diversas partes do mundo. Para tanto, propõe a erradicação do “perverso comércio das armas”, da “insistência constante de se produzirem e disseminarem armamentos cada vez mais sofisticados” e do fácil acesso ao mercado das armas mesmo de pequeno calibre. Há que evitar o agravamento da situação em áreas de conflito, bem como a criação do ambiente de insegurança e de medo em tempos de incerteza social e de mudanças epocais.
A este propósito, assegura a atualidade das palavras de João XXIII, na Pacem in Terris:
“A reta razão e o sentido da dignidade humana terminantemente exigem que se pare com esta corrida ao poderio militar; que o material de guerra, instalado em várias nações, se vá reduzindo duma parte e doutra, simultaneamente; que sejam banidas as armas atómicas”.
Avisa também que a ideologia também é inimiga da paz quando se vale dos problemas sociais “para fomentar o desprezo e o ódio” e “vê o outro como um inimigo a aniquilar”. Aqui, denuncia o assomo de novas formas ideológicas, que se mascaram como portadoras de bem para o povo”, mas o que “deixam atrás de si é pobreza, divisões, tensões sociais, sofrimento e, por vezes, também morte”. Pelo contrário, o Papa assegura que a paz se conquista “com a solidariedade”, a partir da qual “germina a vontade de diálogo e a colaboração, que encontra na diplomacia um instrumento fundamental”.
A este respeito, salientou o contributo da Santa Sé para a reaproximação entre Cuba e EUA e o esforço de paz na Colômbia.
E, depois de passar em revista o que se passa em diversos pontos do mundo e que urge solucionar, o Papa Francisco não deixa de apontar o dedo à Europa.
Reconhecendo que esta atravessa “um momento decisivo da sua história”, que a chama a “reencontrar a sua identidade”, sustenta que “isto exige a redescoberta das suas raízes, a fim de poder moldar o seu próprio futuro”. E avisa:
“Face aos impulsos desagregadores, é muito urgente atualizar a ideia de Europa para dar à luz um novo humanismo baseado na capacidade de integrar, dialogar e gerar, que fez grande o chamado Velho Continente. O processo de unificação europeia, que começou depois do segundo conflito mundial, foi e continua a ser uma ocasião única de estabilidade, paz e solidariedade entre os povos.”.
E reiterou o interesse e a preocupação da Santa Sé pela Europa e o seu futuro, na certeza de que os valores, em que teve origem e se baseia este projeto – que chega este ano ao 60.º aniversário –, são comuns a todo o Continente e se estendem para lá das fronteiras da União Europeia.
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Por fim, surge a indicação de que a consecução da paz passa pelo empenho ativo no cuidado da criação, da Terra. Por isso, além de ter relevado os esforços em torno das alterações climáticas, saudou o Acordo de Paris sobre o clima, ora em vigor, como “um sinal importante do compromisso comum para deixar a quem vier depois de nós um mundo belo e habitável”. Mas não olvidou os fenómenos que excedem as possibilidades da ação humana, numa referência explícita aos numerosos terramotos que atingiram algumas regiões do mundo. E confidenciou:
“Pude visitar pessoalmente algumas áreas atingidas pelo terramoto no centro da Itália, onde, ao constatar as feridas que o sismo causou a uma terra rica de arte e cultura, pude compartilhar a amargura de tantas pessoas, juntamente com a sua coragem e determinação em reconstruir tudo o que foi destruído. Espero que a solidariedade que uniu o querido povo italiano nas horas sucessivas ao terramoto continue a animar a nação inteira, sobretudo neste momento delicado da sua história.”.
E, a perpassar toda a alocução papal, emerge numa espécie de cordão de ouro a paz como dom, desafio e compromisso: dom, por brotar do coração de Deus; desafio, por ser um bem nunca adquirido; e compromisso, por requerer o trabalho apaixonado de todas as pessoas de boa vontade, que têm uma visão do homem que leve à promoção do desenvolvimento integral, considerando a sua dignidade transcendente.

2017.01.15 – Louro de Carvalho

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