sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

A eloquência do silêncio de Deus no martírio

Celebra-se hoje, 20 de janeiro, a memória de São Fabião, papa e mártir, que recebeu a coroa do martírio no começo da perseguição de Décio. Também em muitos lugares, sobretudo em Portugal – com destaque para a diocese de Lamego, de que é o padroeiro principal, e para Santa Maria da Feira, que celebra festa em sua honra desde 1505, em gratidão por ter livrado da peste a região – se festeja São Sebastião, oficial romano convertido ao cristianismo e que sofreu o martírio com o começo da perseguição de Diocleciano. E, proximamente, celebra-se Santa Inês (a 21) e São Vicente de Saragoça, mártires na perseguição de Diocleciano. Inês é martirizada em Roma, por, na sequência da sua rejeição do casamento com o filho do Prefeito, ter recusado guardar o fogo sagrado no Templo de Vesta; e Vicente é martirizado em Valência na sequência da perseguição levada a cabo na Península Ibérica pelo delegado imperial Dácio, sob a égide de Diocleciano.
Desde os primeiros tempos, a Igreja celebra o culto dos mártires pelo testemunho explícito ou implícito da sua fé em Jesus Cristo ou das causas que os ligam ao redentor. De muitos dos mártires conhecem-se edificantes confissões de fé; de outros, apenas o silêncio. A todos, porém, é devida a honra e a glória em Cristo.
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Todavia, nem tudo corre bem. Alguns com as agruras do martírio acabam por ceder e negar a fé. É a apostasia formal, que nunca sabemos se é verdadeira apostasia, já que o medo forte e forçado retira a liberdade ao ser humano. E a Igreja, ao enaltecer os confessores da fé pelo martírio, não está em paralelo a condenar nem explícita nem implicitamente a fraqueza dos outros. O que faz é não os apresentar como exemplo.
É com base nestes pressupostos que hoje, como dantes, poucas são as afirmações que podemos fazer a propósito do jesuíta português Cristóvão Ferreira, em torno do qual o japonês Shusaku Endo arquitetou o livro “Silêncio”, que deu origem ao filme do mesmo título, do realizador norte-americano Martin Scorsese, ante-estreado no Vaticano e agora nas salas de cinema.
Cristóvão Ferreira, conhecido no Japão por Sawano Ch?an, como revela o semanário digital Ecclesia, de 13 de janeiro, nasceu em Torres Vedras, em 1580. Entrou na Companhia de Jesus aos 17 anos e, em 1600, foi enviado para as missões do Oriente. Tendo estudado Teologia em Macau, foi ordenado presbítero em 1608 e partiu para o Japão no dia 16 de maio de 1609, embarcado no navio Nossa Senhora da Graça. Esteve primeiro em Arima, onde estudou Japonês e ensinou Latim. Era, pois, uma personalidade real e histórica, assumida no romance e no filme, mas não é uma personagem ficcionada.
Logo a seguir, começaram a surgir as primeiras manifestações da perseguição religiosa que marcou as décadas seguintes. Por conseguinte, o seminário foi encerrado em 1612 e os missionários forçados a sair da cidade. Depois de breve passagem por Nagasáqui, Ferreira foi enviado para Quioto, onde a comunidade cristã, que era então muito numerosa, contava só naquela região com cerca de trinta mil fiéis.
Dada a importância numérica dos cristãos ali, no início de 1614, procedeu-se ao registo e expulsão dos cristãos. Porém, o superior da comunidade de Quioto registou apenas alguns dos que ali viviam, devendo permanecer na clandestinidade os menos conhecidos. Entre estes ficou Cristóvão Ferreira, que saía apenas de noite para visitar os cristãos da cidade e de povoações vizinhas. Mas, em 1617, o padre Provincial, Mattheus de Couros, chamou-o para Nagasaki. Ora, como secretário do Provincial, tinha de estar em permanente contacto com todos os outros jesuítas. Distribuía os medicamentos e provisões e administrava os dinheiros, bem como as outras coisas necessárias ao funcionamento das diversas comunidades (por exemplo, o vinho de missa). Por isso, viajava pelo Japão, correndo o risco de ser descoberto e preso.
Depois de breve estada Osaka, onde foi superior da missão no Japão Central, regressou a Nagasaki. Com a morte do padre Mattheus de Couros e porque era o jesuíta professo mais antigo na Província, assumiu a sua administração como locumtenens, ou seja, Provincial não nomeado pelo superior geral.
Um ano mais tarde, a 18 de outubro de 1633, Ferreira foi preso juntamente com outros religiosos, tanto missionários estrangeiros, como japoneses. Foi-lhes aplicada a tortura da fossa, método exclusivamente destinado aos cristãos para que negassem a sua fé. Os holandeses (ao tempo, aliados comerciais do Império Nipónico e, por serem protestantes, antipáticos à pregação católica) relatam-na como um dos suplícios mais insuportáveis, entre os que eram infligidos pelas autoridades nipónicas. Consistia em pendurar os prisioneiros de cabeça para baixo dentro duma fossa que era depois coberta com tábuas. Os cristãos ficavam sem luz e sem água, fortemente amarrados, até abjurarem ou morrerem.
Cristóvão, apesar da sua atividade apostólica esforçada e reconhecida, terá cedido ao fim de algumas horas. Tinha 53 anos de idade e 37 na Companhia de Jesus. A notícia da presumível apostasia chocou a Europa que encarava o martírio (dos outros) como a mais gloriosa das mortes. Não parecia possível que Ferreira renegasse a fé em Jesus Cristo. Por isso, vários missionários partiram para o Japão para o encontrar e convencer a regressar à fé e a entregar a sua vida. Alguns foram torturados e cederam à apostasia; outros, porém, acabaram por dar ali a vida.
Dos que morreram depois de submetidos à tortura da fossa, regista-se o nome de pelo menos três jesuítas: Kassui Pedro; Marcello Mastrilli e Rubino. Cristóvão Ferreira, entretanto, foi obrigado a viver com a viúva dum prisioneiro executado, passando o resto da vida no Japão e servindo de intérprete para as autoridades japonesas. Não é possível afirmar com total exatidão as circunstâncias da sua morte. As únicas fontes conhecidas indicam ter-se arrependido, em idade mais avançada, de ter renegado a fé. Ao saberem-no, as autoridades japonesas de novo o prenderam e condenam mais uma vez à fossa, onde terá morrido a 4 ou 5 de novembro de 1650.
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Por seu turno, Sebastião Rodrigues é uma personagem criada pelo livro de Shusaku Endo, baseada no jesuíta italiano Giuseppe Chiara. Este chegou a Oshima em Chikuzen a 27 de junho de 1643 integrado num grupo de dez missionários que procurava Cristóvão Ferreira. Juntamente com os seus companheiros foi imediatamente capturado. E, no julgamento a que foram sujeitos, Cristóvão Ferreira terá servido de intérprete.
Todos estes terão renegado a fé sob o peso da tortura da fossa e ter-se-ão retratado mais tarde. Chiara morreu em Edo a 24 de agosto de 1685, tendo dito anteriormente que permanecia cristão.
Cf síntese do texto de Hubert Cieslok “The case of Cristóvão Ferreira”, Monumenta Niponica, Primavera, 1974 - 1-54, apud Ecclesia, 13 de janeiro de 2017, pgs 46-49)
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Para fazer entender melhor tudo o que se passou, as contextualizações históricas sobre o Cristianismo no Japão e os seus mártires, as páginas do semanário digital Ecclesia, cuja leitura se afigura pertinente, reproduzem a entrevista de Scorsese à revista jesuíta ‘America’ e depoimentos de James Martin, sacerdote que acompanhou a preparação e produção do filme.
O enredo do filme parte da personalidade do jesuíta Cristóvão Ferreira (1580-1650), interpretada por Liam Neeson, e de outros dois missionários da Companhia de Jesus por ela enviados à procura de Cristóvão Ferreira, neste caso duas personagens fictícias, Sebastião Rodrigues e Francisco Garupe, encarnadas pelos atores Andrew Garfield e Adam Driver.
Estes dois jovens religiosos testemunham a perseguição dos cristãos, de e em terras nipónicas, pela mão do governo do regime Xogunato Tokugawa, que baniu o catolicismo e quase todo o contacto com o estrangeiro. E, perante os factos, interrogam-se sobre o silêncio de Deus face ao sofrimento dos seus filhos, um pouco à maneira do teor das duas primeiras partes do salmo 22, que se inicia com a interrogação “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?”.
O Japão foi evangelizado pelo jesuíta São Francisco Xavier, entre 1549 e 1552, a pedido da Coroa Portuguesa. Porém, poucas décadas depois comunidade católica viveu uma dura perseguição, ainda no século XVI: os primeiros mártires, à cabeça dos quais vem São Paulo Miki, foram crucificados em Nagasáqui, em 1597. Entre eles, conta-se o português São Gonçalo Garcia. Foram canonizados em 1862 por Pio IX. O cristianismo deixara de ser tolerado.
Entretanto, houve mais um momento de tolerância até 1610. É desse tempo o padre jesuíta João Rodrigues, de Sernancelhe, denominado Sebastião Rodrigues no romance Xógum, de James Clavell (1975), que originou o filme Shogun, em 1980, de Jerry London.
Ordenado sacerdote em Macau, regressou ao Japão, onde foi comerciante, diplomata, político e intérprete entre os japoneses e os navegadores estrangeiros. A sua fluência no idioma nipónico mereceu-lhe relação especial com os principais líderes japoneses no período da guerra civil e da consolidação do xogunato de Tokugawa Ieyasu. Testemunharia a expansão da presença portuguesa naquela nação e a chegada do primeiro inglês William Adams. E teve ainda a oportunidade de escrever as suas observações sobre a vida japonesa, incluindo eventos políticos da emergência do xogunato e uma descrição detalhada da cerimónia do chá, bem como a História da Língua de Japão e um dicionário de japonês português. Em muitos dos escritos revelou uma abertura de espírito sobre a cultura do país anfitrião, chegando a elogiar a santidade dos monges budistas. Seria expulso do Japão em 1610, como consequência dum incidente com o navio português Madre de Deus, envolvido em um conflito em Macau em 1609, no qual foram mortos marinheiros japoneses.
Outros 205 católicos, a maior parte mortos depois de 1613, foram beatificados em 1867. Entre eles, contam-se João Batista Machado, Ambrósio Fernandes, Francisco Pacheco, Diogo de Carvalho e Miguel de Carvalho (todos da Companhia de Jesus), Vicente de Carvalho (religioso agostinho) e Domingos Jorge (leigo, cuja esposa japonesa e filho também foram martirizados).
Os católicos que sobreviveram à perseguição tiveram de ocultar-se durante 250 anos, até à chegada de missionários europeus no século XIX. E João Paulo Oliveira e Costa refere, no ‘Dicionário de História Religiosa de Portugal’, que a grande maioria dos missionários, por força do édito de expulsão de 1614, regressou a Manila e a Macau. Mesmo assim, ficaram ainda algumas dezenas no Japão, bem como os milhares de fiéis, a quem o Papa Francisco reconhece o mérito de manterem viva, na discrição, a chama da catequese evangélica.
Entretanto, a revolta de camponeses em Shimabara e Amakusa, em 1637, dada a forte presença cristã nestas regiões, ganhou dimensão religiosa. Por consequência, tendo sido os portugueses definitivamente expulsos do Japão em 1639, o cristianismo entrou na sua vivência clandestina que perdurou até à reabertura do Império ao Ocidente, na segunda metade do século XIX.
Na verdade, o Papa tem repetido elogios às comunidades nipónicas, que receberam e conservaram a sua fé “mesmo no meio de séculos de perseguição”, assumindo que o Japão foi um país de “cristãos escondidos”.
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Parece que, em vez do juízo moral sobre a postura dos missionários que renegaram a fé no meio do sofrimento da tortura, os que leem o livro ou veem o filme deverão questionar-se sobre a sua própria fé e tentar perceber o silêncio de Deus, que prometeu pôr na boca dos discípulos as palavras que oportunamente deveriam pronunciar (cf Lc 12,12; 21,15).

2017.01.20 – Louro de Carvalho

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