segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Aperfeiçoamento do acordo ortográfico da Língua Portuguesa

Recentemente, a Academia de Ciências de Lisboa (ACL) aprovou por maioria (18-5) um texto sob o títuloSugestões para o aperfeiçoamento do acordo ortográfico da Língua Portuguesa”, que enviou à Assembleia da República para os devidos efeitos.
A este respeito, em artigo adrede publicado pelo JN, Lúcia Vaz Pedro, Professora de Português e formadora para a área da língua portuguesa, estranha que, em vez de texto sério, tenha surgido “uma brincadeira com as palavras da nossa língua”.
Por mim, fiquei com a ideia de que os redatores do instrumento de trabalho ou não leram o texto do acordo ou confundiram questões das suas Bases com aspetos a resolver em vocabulário decorrente do acordo e, consequentemente, de dicionarização, até porque os elementos que ilustram algumas Bases do acordo são mal selecionados e outros não correspondem aos ditames da respetiva base. Além disso, se excetuarmos alguns pontos das Bases IV, IX, XV, XVI e XVII, as outras das XXI Bases ou são anódinas ou consagram a prática já corrente há muitos anos (ninguém pensa excluir nos termos do acordo as novas consoantes K, W e Y) ou repetem doutrina de ortografia sempre ensinada nas escolas, sobretudo no atinente à estrutura das palavras.
Assim, segundo Lúcia Pedro, o escopo do “forte contributo” a “uma maior regularização” fica em causa e aquém das expectativas. Com efeito, ao invés de contribuir para a melhoria do texto das Bases, que pudesse ser assinado por todos os países signatários, “introduziu novos aspetos que contrariam os objetivos iniciais: reduzir ao mínimo possível as diferenças existentes”.
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Começando pela Base IV (das sequências consonânticas), o único ponto de contestação é o 2.º, alínea b) referente à abolição gráfica das consoantes mudas c e p das sequências interiores cç, ct, e pt, que as suprime nos casos em que são invariavelmente mudas nas pronúncias cultas da língua. Se a razão é etimológica, muito teríamos que restaurar, obviamente sem vantagem. Se é uma razão estética a ferir o uso gráfico da língua, porque se admite a grafia “stresse” ou todas as licenças da Base I? Aliás, deveria ser pacífica a disposição das alíneas c) e d) que permitem a dupla grafia conforme tal prolação das mesmas consoantes se verifique ou não nas pronúncias cultas da língua. Depois, ninguém mandou que os portugueses escrevam, por exemplo, fato em vez de facto. Porém, estranho que em Portugal não se possa escrever cacto e peremptório. Mas esta deveria ser uma questão de vocabulário.
Passando à Base IX (da acentuação das palavras paroxítonas), merecem-nos atenção os pontos 3.º. 4.º, 5.º, 6.º, 7.º e 9.º. Quanto ao ponto 3.º, não se percebe por que motivo devia regressar o acento agudo ou o acento circunflexo para os ditongos “ei” e “oi”, se as realizações cultas oscilam entre a pronúncia descaracterizada, fechada ou aberta. Nem colhe a objeção da ACS com palavras como blêizer, em que sem o acento a palavra se tornaria oxítona por terminar em -r. Não podemos esquecer que apenas as palavras terminadas em -a, -e, -o, seguidas ou não de -s, são paroxítonas por natureza. Admito que a base poderia explicitar isto.
Não vejo mal em ser facultativa a distinção por acento agudo entre a 1.ª pessoa do plural do pretérito perfeito dos verbos da 1.ª conjugação (com acento) e a mesma do presente do indicativo (sem acento), do ponto 4.º (cantámos/cantamos) ou a distinção por acento circunflexo entre a 1.ª pessoa do plural do presente do conjuntivo (dêmos, com acento) e a mesma do pretérito perfeito do indicativo do mesmo verbo (demos, sem acento). Idem, de fôrma (nome) e forma (nome e 3.ª pessoa do singular do presente do indicativo ou 2.ª do imperativo do verbo formar), da alínea b) do ponto 6.º. Tornar tal distinção imperativa levaria à marcação de erro ortográfico, sem necessidade. Mas desfaçam-se dúvidas: sempre se disse da obrigatoriedade de distinguir por acento circunflexo a 3.ª pessoa do singular do pretérito perfeito do indicativo do verbo pôr (com acento) e a mesma pessoa do presente do indicativo (sem acento), da alínea a) do ponto 6.º. E ninguém mandou que os portugueses escrevam o infinitivo do verbo pôr sem acento. Ao invés, a distinção entre pôr (verbo) e por (preposição) constitui-se explicitamente como exceção ao ponto 3.º da Base VIII.
Entendo que, no português europeu, devia excecionar-se a distinção entre pára (verbo) e para (preposição), dado o uso frequentíssimo da preposição (ponto 9.º). De resto, não se percebe a pretensão tão diferenciadora da ACS (foi sob a sua égide que se preparou o texto de 1986, que evoluiu – e bem – para o de 1990), como não se percebe a vantagem da opção pelo regresso do acento circunflexo à 3.ª pessoa do plural das formas verbais do presente do indicativo ou do conjuntivo: creem/descreem, leem, releem, tresleem, veem, preveem e reveem (indicativo); deem, desdeem e redeem (conjuntivo).
É certo que a supressão das letras c e p pode criar homografias. Não obstante, elas já existem e deslindam-se pelo contexto. Diz a mencionada colunista do JN:
“Porém, urge salientar um aspeto que nos parece ter sido esquecido pela Academia: em 1945, suprimiu-se o acento circunflexo nas palavras homógrafas, que passaram a ser distinguidas pelo seu contexto. Nós usámo-las todos os dias e sem acento, se soubermos escrever com correção, como é o caso de colher (nome); colher (verbo); molho (nome com o aberto e com o fechado e significados diferentes); este (ponto cardeal); este (determinante ou pronome demonstrativo), entre outras.”.
E, citando Wiitgenstein, sustenta:
“A unidade de sentido é a frase, o que corrobora a tese de que a homografia não é argumento para se conservar a acentuação, exceto, na nossa perspetiva, em casos muito excecionais, como é o da forma verbal para e da preposição para, dada a frequência da sua utilização. Além disso, utilizar o acento nas palavras paroxítonas com vogal tónica aberta ou fechada, que são homógrafas, seria recuar ao modelo de 1911 e não é isso que se pretende.”
Ao sugerir o regresso de alguns acentos e das letras c e p para evitar homofonias que podem conduzir a ambiguidades, a ACL usa “um argumento que reduz a palavra à sua existência solitária”, quando as palavras pertencem ao texto, à frase e a sua grafia deve obedecer ao critério fixado pela Base IV do acordo ortográfico. Por outro lado, tal sugestão “criará mais diversidade, ambiguidade, confusão, face ao que tem vindo a ser ensinado nas escolas”.
Assim, se limpo o teto (úbere) da vaca, distingo o candeeiro suspenso do teto (cobertura interior da casa); sei de cor a cor do meu cabelo. Mas como distingo escatologia (tratado dos últimos tempos) de escatologia (coprologia)?
Atentemos, agora, no ponto 3, sobre o emprego do hífen.
No atinente às Bases XV, XVI e XVII, que tratam da hifenização, convém esclarecer:
Na Base XVII, o que difere da reforma de 1945 é a supressão do hífen nas ligações da preposição de às formas monossilábicas do presente do indicativo do verbo haver: hei de, hás de, há de, hão de. Para quê lá o hífen?
Depois, a ACL aborda a situação das unidades semânticas – verdadeiros compostos – que terão de utilizar o hífen, correndo o risco de confusão com simples locuções que, segundo a Base XV, o perdem. Ora, ao dizer-se que se deve suprimir os hífenes nos compostos ligados por preposição (excluindo as espécies botânicas e zoológicas), é de ter em conta os que formam uma unidade de sentido. Sendo assim, compostos como “colher-de-sopa” (sinónima de concha), deverá manter o hífen, para evitar ambiguidade do tipo colher de sopa de ervilhas (sem hífenes, pois cada palavra do segmento tem o seu sentido). Idem, para pés-de-galinha (rugas), pé-de-atleta (micose) ou pó-de-arroz (produto cosmético). Estes e outros casos, para os quais o acordo não pode dar resposta cabal, deveriam ser objeto dos vocabulários e dicionários.
De facto, como refere Lúcia Pedro, muito se fala do hífen, mas é fundamental o conhecimento do sentido das palavras em determinados contextos e das regras inerentes à sua escrita, sendo que não há “nenhum programa informático capaz de interpretar essas diversidades”.
Também as locuções gramaticais (pronominais, adverbiais, prepositivas, conjuncionais) já não tinham hífenes na norma de 1945, pelo que a ACL nada acrescenta neste aspeto (a fim de, a par de, à parte; à vontade, abaixo de, acerca de, acima de, apesar de, ele próprio, por conseguinte, visto que).
Mais: só pode entender-se como gralha o caso constante do texto da ACL, quando omite um e em rescrita, visto defenderem, como já estava determinado anteriormente, o não emprego de hífen nas formações com os prefixos pre- e re-, mesmo nos encontros de vogais iguais ou quando o segundo elemento é iniciado por h, como em preencher (pre-+encher), reescrita (re-+escrita), reabilitar (re-+habilitar).
Não se vê vantagem na opção pretendida de voltar a grafar co-réu (corréu), co-utente (coutente) e co-herdeiro em vez de coerdeiro.
Já no referente às palavras formadas pelo prefixo pan- e em que o segundo elemento começa por b ou p, parece justa a sugestão da ACL no sentido de a passagem de pan a pam (como em pambalcânico, pambrasileiro, pamplegia, pampsiquismo, ) visto que que a aglutinação ortográfica implica uma leitura indesejada ou violação das restrições contextuais visuais (nb ou np) da ortografia do português.
Segundo a Base XVI, quando o segundo elemento começa por h ou pela mesma vogal com que termina o prefixo, deve utilizar-se o hífen. Tal sucede nas formações por recomposição, isto é, com elementos não autónomos ou falsos prefixos de origem grega e latina, tais como aero-, agro-, arqui-, auto-, bio-, eletro-, geo-, hidro-, inter-, macro-, maxi-, micro-, mini-, multi-, neo-, pluri-, proto-, pseudo-, retro-, semi-, tele-. Exemplos: arqui-hipérbole, arqui-irmandade, auto-observação, eletro-higrómetro, eletro-ótica, geo-história, micro-ondas, neo-helénico, semi-hospitalar, semi-interno. Porém, a ACL sugere:
“Nos elementos de natureza substantiva, provenientes do grego ou latim, em que não se empregava hífen e que, com a aplicação das novas regras ortográficas, passam a ser hifenizados quando há encontros de vogais iguais, recomenda-se o uso preferencial das grafias com elisão da vogal do radical que coincide com a do elemento imediato, como em radiopaco. Não se admitem, porém, as formas com acento no primeiro elemento.”.
É certo que os militares gostam de escrever “contralmirante” (por contra-almirante) e os músicos vulgarizaram contralto (por contra-alto). E vamos escrever “microndas” contra a prolação pronuncial useira e vezeira?
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Esperava que a ACL olhasse para a reforma ortográfica com melhores olhos de ver, sugerindo alguns aperfeiçoamentos sem a indesejada postura iconoclasta ou contraiconoclasta, mostrasse que os subscritores do documento enviado à AR e ao MC (Ministério da Cultura) tinham conhecimento aprofundado das bases do acordo e, sobretudo, um propósito de enriquecimento especificador ao nível do vocabulário/prontuário e mesmo um dicionário, que não deveria demorar tantos anos a elaborar como o primeiro da ACL. Olhem para a Porto Editora!

2017.01.30 – Louro de Carvalho

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