segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Quatro portugueses ‘Justos Entre as Nações’

Desde 2013 a “Escola Básica e Secundária de Airães”, em Felgueiras, desenvolve o projeto Em Memória do Holocausto com escolas congéneres europeias. E vai juntar numa conferência, no próximo dia 27, Dia Internacional da Memória das Vítimas do Holocausto, os descendentes de três ‘justos’ portugueses: Sousa Mendes, Sampaio Garrido e padre Joaquim Carreira. Há mais um português com o nome inscrito no Yad Vashem, mas de José Brito Mendes, emigrante em França, desconhece-se o paradeiro do único descendente.
A professora bibliotecária Francina Santos (de Português e Francês) percebeu, em 2013, que os alunos que requisitam o Diário de Anne Frank – que integra o programa do 8.º ano – não fazem ideia do contexto de vida da menina que morreria no campo de concentração de Bergen-Belsen. Daí nasceu o projeto Em Memória do Holocausto, pelo qual a escola desenvolve iniciativas em torno do tema – trabalho que se estendeu além-fronteiras através do eTwinning, programa da UE cujo objetivo é a criação de redes de trabalho entre escolas de diferentes países. Trabalharam dois anos seguidos com uma escola da Croácia e, no ano passado, trabalharam com a Grécia. A iniciativa, que vai da educação pré-escolar ao 12.º ano, varia a abordagem nos diferentes anos, centrando-se nos direitos humanos ou na tolerância e igualdade. Este ano reúne 6 escolas europeias: portuguesa, polaca (Auschwitz), búlgara, grega, turca e romena. Na aludida conferência, estarão António Moncada de Sousa Mendes, neto de Sousa Mendes, Salvador Alves Garrido, neto único de Sampaio Garrido (embaixador na Hungria entre 1939 e 1944) e um sobrinho de Joaquim Carreira, o quarto português ‘Justo entre as Nações’ (título atribuído a não judeus que arriscaram a vida para salvar judeus do regime nazi). O projeto recebeu o selo de qualidade do eTwinning, como boa prática pedagógica. A professora realça as abordagens diferentes e a lógica cooperativa, sustentando que nada se faz sozinho e sublinha o apoio incondicional do diretor da escola e do executivo de Felgueiras. Até as empresas do concelho ajudaram financiando um concurso de alunos que teve como prémio a visita à casa onde viveu Anne Frank, em Amesterdão. Porém, lamenta que o exemplo não venha de fora:
“Noutros países aposta-se na divulgação das figuras que fazem parte da sua história, em Portugal faz-se exatamente o contrário. Acho deplorável o esquecimento a que foram votadas estas pessoas. Não tanto em relação a Aristides Sousa Mendes, dada a importância da fundação, mas alguém sabe hoje quem foi Sampaio Garrido? Não. Alguém sabe quem foi o terceiro Justo? Não. Menos ainda o quarto. É triste, porque foram heróis no verdadeiro sentido do termo.”.
***
O ‘Yad Vashem’ (Memorial do Holocausto de Jerusalém, Israel) inclui quatro portugueses na lista dos não judeus com o nome gravado no mural de honra do Jardim dos Justos. Aristides de Sousa Mendes, Carlos Sampaio Garrido, José Brito Mendes e o padre Joaquim Carreira são os quatro portugueses considerados ‘Justos Entre as Nações’, por Israel e seu povo, pois, arriscando a própria vida, salvaram judeus perseguidos durante a Shoah (holocausto judeu) na Europa…
***
Aristides de Sousa Mendes
Nasceu a 19 de julho de 1885, em Cabanas de Viriato (Carregal do Sal), cerca de 30 quilómetros a sul de Viseu. Pertencia a uma família aristocrática católica. Cursou Direito em Coimbra com o seu irmão César, tendo sido um dos 6 melhores alunos do seu curso. Após a licenciatura, em 1907, com 22 anos, fez estágio de advocacia, tendo defendido alguns casos. Porém, em 1910, Aristides e César ingressaram na carreira diplomática. Aristides foi cônsul na Guiana Britânica, em Zanzibar, no Brasil (Curitiba e Porto Alegre), nos Estados Unidos, (San Francisco e Boston), em Espanha (Vigo), no Luxemburgo, na Bélgica e, finalmente, em França (Bordéus).
Casado com a prima Maria Angelina, a família foi crescendo a par da sua carreira diplomática. Valorizando a presença da família, Aristides optou por nunca dela se separar, assegurando a educação dos 14 filhos nos países onde viveu. Nomeado Cônsul-Geral em Bordéus, em 1939, antes do início da II Grande Guerra, viu-se confrontado com um problema de consciência: dum lado, devido à invasão da França pelas tropas alemãs, milhares de refugiados afluíram a Bordéus na esperança de obterem o visto para a liberdade (Américas do Norte e do Sul, principalmente); do outro lado, as ordens do Governo impediam-no, sob pena de ser castigado, de passar vistos à maior parte dos refugiados (sobretudo judeus), exilados políticos e cidadãos provenientes do Leste Europeu. Perante o dilema, Aristides optou por obedecer à consciência e, contrariando ordens, decidiu passar vistos a todos que o solicitassem, independentemente da religião, raça ou credo político. Em Bordéus, passou mais de 30.000 vistos a judeus e outras minorias perseguidas. É considerada como a maior ação de salvamento empreendida por uma só pessoa. O gesto valeu-lhe processo disciplinar que desembocou na expulsão da diplomacia, apesar de o despacho de punição, de outubro de 1940, determinar que o mesmo deveria ficar na situação de inatividade com direito a metade do vencimento de categoria, por um ano, findo o qual seria aposentado. No entanto, esta determinação não foi cumprida, sendo Sousa Mendes pura e simplesmente expulso da carreira, sem aposentação. E, interdito de trabalhar como advogado, Aristides entrou, entre 1940 e 1954, num processo de “decadência”, perdendo a titularidade do seu gesto salvador, pois Salazar apropriou-se dele.
Morreu pobre, a 3 de Abril de 1954, no hospital dos franciscanos em Lisboa. Não possuindo fato, foi enterrado com túnica de franciscanos. O seu gesto só foi relatado e enaltecido depois de 25 de abril de 1974. E, em 1988, Sousa Mendes foi reabilitado pela Assembleia da República (sob proposta de vários deputados). Depois disso, foram-lhe prestadas muitas homenagens. 
Carlos de Almeida Fonseca Sampaio Garrido
É outro português Justo entre as Nações pela ação de proteção de judeus húngaros. O diplomata chegou a Budapeste, a 27 de julho de 1939,  para assumir o posto de embaixador de Portugal na Hungria, país (e territórios anexados ao abrigo da aliança com a Alemanha nazi) onde viviam cerca de 800 mil judeus. Após a derrota de Estalinegrado por parte dos alemães, o regente Miklos Horthy tentou sair da aliança com a Alemanha, mas Hitler, a 19 de março de 1944, invadiu a Hungria, nomeou um governo fiel e enviou Adolf Eichmann a aplicar a ‘solução final’ no país. Os judeus foram despojados de bens e propriedades, obrigados a usar a estrela amarela e encerrados em guetos. E, entre 15 de maio e 9 de julho, foram deportados perto de 450 mil judeus, na sua maioria para Auschwitz, onde mais de metade morreu, logo à chegada, nas câmaras de gás. 
Na Hungria operavam na época 5 representações diplomáticas de países neutrais (Suécia, Suíça, Portugal, Espanha e Turquia) além da Cruz Vermelha e o Vaticano. Garrido deixou a embaixada, devido aos bombardeamentos aliados (em resposta à invasão alemã), e alugou uma vivenda em Galgagyörk, a 60 km da cidade, onde, sem informar Salazar, escondeu 12 judeus entre os quais se encontravam 5 membros da família Gabor, parentes da atriz Zsa Zsa Gabor. Porém, já antes vinha a alertar sobre a perseguição aos judeus, tomando a iniciativa de os proteger antes mesmo da mobilização no mesmo sentido dos diplomatas dos países neutros.
A 28 de abril de 1944, às 5 horas da manhã, a residência oficial de Portugal em Galgagyörk foi assaltada pela Gestapo: os hóspedes foram presos e levados para o posto da polícia central de Budapeste. O embaixador fez questão de ser preso a fim de de poder ajudar os seus hóspedes. Sem se intimidar, o diplomata exigiu de imediato a libertação dos detidos, alegando o conceito de extraterritorialidade da residência de embaixador, e ainda o pedido de desculpas.
Garrido tornou-se persona non grata para o governo húngaro, que exigiu a sua partida. Salazar nomeou o encarregado de negócios Alberto Carlos de Liz-Teixeira Branquinho para o substituir. Mas Garrido não voltou logo para Portugal. A 5 de junho, partiu para Berna levando consigo a sua secretária judia e, daquela cidade, continuou a orientar Teixeira Branquinho no apoio aos judeus, enviando-lhe listas com nomes para os quais pedia assistência e asilo na legação portuguesa. Branquinho obteve de Salazar autorização para atribuir passaportes portugueses a judeus húngaros na condição de estes terem relação familiar, cultural ou económica com Portugal. Ao todo foram concedidos por Portugal cerca de 1000 documentos de proteção, dos quais 700 passaportes provisórios sem indicação de nacionalidade portuguesa, conforme exigência de Salazar para que a não pudessem reclamar mais tarde. Em 1945, Garrido foi enviado extraordinário e ministro plenipotenciário em Estocolmo. A 2 de fevereiro de 2010, a Comissão para a Nomeação dos Justos, criada pelo Yad Vashem concedeu-lhe a medalha dos Justos entre as Nações, entregue à família, pelo embaixador de Israel em Portugal.
José Brito Mendes
Em França, José Brito Mendes arriscou a vida, escondendo a pequena Cécile, cujos pais judeus foram deportados para campos de concentração, onde faleceram. O português emigrara para França em 1926, onde casou com a francesa, Marie-Louise, de quem teve um filho, Jacques. Viviam em St. Ouen, arredores operários de Paris e eram vizinhos e amigos dum casal de judeus polacos, Aron e Fojgel Berkovic, e da filha Cécile, nascida em 1937. Cécile e Jacques foram criados juntos naquele bairro onde se aglomeravam, à época, imigrantes espanhóis e italianos, portugueses e polacos. A 15 de junho de 1942, Aron foi deportado para Auschwitz, onde morreu. A esposa escondeu-se algures em Paris, mas antes confiou Cécile à guarda da família Brito Mendes, na tentativa de a salvar. Meses depois, Fojgel Berkovic foi presa e levada para o campo de trânsito de Drancy, donde partiam os transportes para os campos de extermínio. Antes da partida, Brito levou Cécile, de 5 anos, a ver a mãe uma última vez. José Brito e a mulher apresentavam a menina como sobrinha de Marie-Louise e prima de Jacques. 
A família Brito tomou conta de Cécile como filha e enviou-a juntamente com Jacques para a província, onde ficaram a salvo, em casa de familiares do casal. O tempo passou, a guerra acabou, os pais de Cécile foram mortos e o casal Brito preparou-se para adotar a criança. Mas do campo de concentração de Dachau chegou um sobrevivente da família: um tio de Cécile, que obteve a sua guarda e a levou para os EUA, para desgosto dos Brito Mendes. Cécile nunca mais viu aquela família. Nos EUA, mudou de nome, estudou, exerceu advocacia, casou e teve duas filhas. Voltou a França em 1987 à procura dos Brito Mendes, mas não os encontrou e morreu sem os rever. Também Jacques nunca desistiu de encontrar a ‘irmã’. Não a conseguiu rever, mas em 2002, com o apoio das associações das Crianças Escondidas e extensas buscas na internet, descobriu as filhas de Cécile, que, embora ao corrente de que a mãe nascera em França e de que os avós tinham sido mortos em Auschwitz, nada mais sabiam do passado de Cécile.
Em 2004, o Yad Vashem, Autoridade Nacional para a memória dos Mártires e Heróis do Holocausto, de Jerusalém, atribuiu ao casal Brito Mendes o título de ‘Justo entre as Nações’.
Padre Joaquim Carreira
O padre Joaquim Carreira é o 4.º ‘Justo entre as Nações’ português. O ‘Yad Vashem’ incluiu, em 2015, o vice-reitor e reitor do Colégio Pontifício Português, de Roma, entre 1940 e 1954, na sua lista dos não judeus que, durante o Holocausto, arriscaram a vida para salvar judeus.
Nascido a 8 de setembro de 1908 no Souto de Cima, freguesia da Caranguejeira, concelho de Leiria, Joaquim Carreira era o filho do meio de Inácia e Joaquim Carreira, que tinham mais 4 filhas. Em 1920, aos 12 anos, entrou para o seminário de Leiria. Foi em 1925 para Roma onde completou o curso de Teologia na Universidade Gregoriana, sendo ordenado padre em 1931, e regressou a Portugal. Entretanto, o bispo de Leiria decidiu enviá-lo para Roma, onde chegou a 4 de maio de 1940, com 31 anos, para ocupar o cargo de vice-reitor do Colégio Pontifício Português. Em 1941, com a morte do reitor, monsenhor Pereira Vilar, passou a reitor.
Ocupada a cidade pelas tropas nazis entre setembro de 1943 e junho de 1944, muitos foram perseguidos. Face a situações concretas que lhe batiam à porta, Carreira assumiu como suas as orientações Vaticanas. Convicto de que a hospitalidade está na base dos princípios da caridade cristã e a exemplo de todas as comunidades religiosas de Roma, achou que a devia oferecer a pessoas perseguidas, procuradas ou em perigo, concedendo asilo e hospitalidade no Colégio a pessoas perseguidas na base de leis injustas e desumanas – decisão que o levou a um maior contacto com as misérias, as dores e as tragédias em consequência da guerra.
Segundo António Marujo, passaram pelo Colégio pelo menos 40 pessoas, conforme o próprio padre escreveu num relatório – em que registou exatamente 39 nomes de foragidos. Mas há pelo menos um depoimento dum dos refugiados que fala em 50 pessoas e outro em 42. Como nem todas estiveram ao mesmo tempo na casa, será difícil ter certezas sobre o número exato.
Além de esconder perseguidos, Carreira assumia a responsabilidade da procura de comida. Escreveu que, “se não conhecesse tantos moleiros nos arredores de Roma”, os seus hóspedes “teriam passado muita fome”. E sugeria pequenos truques aos responsáveis pela cozinha, assegurando que “o milho, cozido em grão, valia por bom bife”. Roma foi libertada da ocupação nazi em junho de 1944, mas ainda depois houve refugiados no Colégio Português. Em 1945 e 1946, durante algumas semanas, mais 6 pessoas ali estiveram escondidas. 
Monsenhor desde 1950, Carreira foi, a partir de 1952, conselheiro eclesiástico da embaixada portuguesa junto da Santa Sé. Desde 1958, residia na casa Madonna di Fatima. A 19 de Setembro de 1981, celebrou as bodas de ouro sacerdotais no Souto de Cima. Regressado a Roma em outubro, intuiu que esta fora a última vez que visitava o seu país. Tinha 73 anos de idade, quando faleceu, em Roma, a 7 de dezembro de 1981. Sepultado naquela cidade, Carreira seria trasladado para Portugal em 2001, estando os seus restos mortais, desde então sepultados no cemitério dos Soutos-Caranguejeira.
***
São heróis discretos, esquecidos dos concidadãos, mas lembrados por memória de agradecidos. Não esqueçamos o holocausto e suas vítimas e esperemos que nada de semelhante volte a ocorrer num mundo que não está para distrações!

2017.01.22 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário