Desde 2013 a “Escola Básica e Secundária
de Airães”, em Felgueiras, desenvolve o projeto Em Memória do Holocausto com escolas congéneres europeias. E vai
juntar numa conferência, no próximo dia 27, Dia
Internacional da Memória das Vítimas do Holocausto, os descendentes de três
‘justos’ portugueses: Sousa Mendes, Sampaio
Garrido e padre Joaquim Carreira. Há mais um português com o nome inscrito no Yad Vashem, mas de José Brito Mendes,
emigrante em França, desconhece-se o paradeiro do único descendente.
A professora bibliotecária Francina Santos (de Português e Francês) percebeu, em 2013, que
os alunos que requisitam o Diário de Anne
Frank – que integra o programa do 8.º ano – não fazem ideia do contexto de
vida da menina que morreria no campo de concentração de Bergen-Belsen. Daí
nasceu o projeto Em Memória do Holocausto,
pelo qual a escola desenvolve iniciativas em torno do tema – trabalho que se
estendeu além-fronteiras através do eTwinning,
programa da UE cujo objetivo é a criação de redes de trabalho entre escolas de
diferentes países. Trabalharam dois anos seguidos com uma escola da Croácia e,
no ano passado, trabalharam com a Grécia. A iniciativa, que vai da educação
pré-escolar ao 12.º ano, varia a abordagem nos diferentes anos, centrando-se
nos direitos humanos ou na tolerância e igualdade. Este ano reúne 6 escolas
europeias: portuguesa, polaca (Auschwitz), búlgara, grega, turca e romena. Na aludida conferência,
estarão António Moncada de Sousa Mendes, neto de Sousa Mendes, Salvador Alves
Garrido, neto único de Sampaio Garrido (embaixador na Hungria entre 1939 e 1944) e um sobrinho de
Joaquim Carreira, o quarto português ‘Justo
entre as Nações’ (título atribuído a não judeus que arriscaram a vida para salvar
judeus do regime nazi). O projeto recebeu o selo de qualidade do eTwinning, como boa prática pedagógica.
A professora realça as abordagens diferentes e a lógica cooperativa, sustentando
que nada se faz sozinho e sublinha o apoio incondicional do diretor da escola e
do executivo de Felgueiras. Até as empresas do concelho ajudaram financiando um
concurso de alunos que teve como prémio a visita à casa onde viveu Anne Frank,
em Amesterdão. Porém, lamenta que o exemplo não venha de fora:
“Noutros países aposta-se na divulgação das figuras que fazem
parte da sua história, em Portugal faz-se exatamente o contrário. Acho
deplorável o esquecimento a que foram votadas estas pessoas. Não tanto em
relação a Aristides Sousa Mendes, dada a importância da fundação, mas alguém
sabe hoje quem foi Sampaio Garrido? Não. Alguém sabe quem foi o terceiro Justo?
Não. Menos ainda o quarto. É triste, porque foram heróis no verdadeiro sentido
do termo.”.
***
O ‘Yad
Vashem’ (Memorial do Holocausto
de Jerusalém, Israel) inclui quatro portugueses na lista dos não judeus
com o nome gravado no mural de honra do Jardim
dos Justos. Aristides de Sousa Mendes, Carlos Sampaio Garrido, José Brito
Mendes e o padre Joaquim Carreira são os quatro portugueses considerados ‘Justos Entre as Nações’, por Israel e
seu povo, pois, arriscando a própria vida, salvaram judeus perseguidos durante a
Shoah (holocausto judeu) na Europa…
***
Aristides de Sousa Mendes
Nasceu a 19 de julho de 1885, em Cabanas de
Viriato (Carregal do Sal), cerca de 30 quilómetros
a sul de Viseu. Pertencia a uma família aristocrática católica. Cursou Direito em
Coimbra com o seu irmão César, tendo sido um dos 6 melhores alunos do seu
curso. Após a licenciatura, em 1907, com 22 anos, fez estágio de advocacia,
tendo defendido alguns casos. Porém, em 1910, Aristides e César ingressaram na
carreira diplomática. Aristides foi cônsul na Guiana Britânica, em Zanzibar, no
Brasil (Curitiba e Porto Alegre),
nos Estados Unidos, (San
Francisco e Boston), em Espanha (Vigo), no Luxemburgo, na Bélgica e,
finalmente, em França (Bordéus).
Casado com a prima Maria Angelina, a família
foi crescendo a par da sua carreira diplomática. Valorizando a presença da
família, Aristides optou por nunca dela se separar, assegurando a educação dos
14 filhos nos países onde viveu. Nomeado
Cônsul-Geral em Bordéus, em 1939, antes do início da II Grande Guerra, viu-se
confrontado com um problema de consciência: dum lado, devido à invasão da
França pelas tropas alemãs, milhares de refugiados afluíram a Bordéus na
esperança de obterem o visto para a liberdade
(Américas do Norte e do Sul, principalmente);
do outro lado, as ordens do Governo impediam-no, sob pena de ser castigado, de
passar vistos à maior parte dos refugiados (sobretudo judeus), exilados políticos e cidadãos provenientes do
Leste Europeu. Perante o dilema, Aristides optou por obedecer à consciência e,
contrariando ordens, decidiu passar vistos a todos que o solicitassem,
independentemente da religião, raça ou credo político. Em Bordéus, passou mais
de 30.000 vistos a judeus e outras minorias perseguidas. É considerada como a
maior ação de salvamento empreendida por uma só pessoa. O gesto valeu-lhe
processo disciplinar que desembocou na expulsão da diplomacia, apesar de o
despacho de punição, de outubro de 1940, determinar que o mesmo deveria ficar
na situação de inatividade com direito a metade do vencimento de categoria, por
um ano, findo o qual seria aposentado. No entanto, esta determinação não foi
cumprida, sendo Sousa Mendes pura e simplesmente expulso da carreira, sem
aposentação. E, interdito de
trabalhar como advogado, Aristides entrou, entre 1940 e 1954, num processo de
“decadência”, perdendo a titularidade do seu gesto salvador, pois Salazar
apropriou-se dele.
Morreu pobre, a 3 de Abril de 1954, no hospital
dos franciscanos em Lisboa. Não possuindo fato, foi enterrado com túnica de
franciscanos. O seu gesto só foi relatado e enaltecido depois de 25 de abril de
1974. E, em 1988, Sousa Mendes foi reabilitado pela Assembleia da República (sob proposta de vários deputados).
Depois disso, foram-lhe prestadas muitas homenagens.
Carlos de
Almeida Fonseca Sampaio
Garrido
É outro português Justo entre as Nações pela ação de proteção de judeus húngaros. O diplomata chegou a Budapeste, a 27
de julho de 1939, para assumir o posto de embaixador de Portugal na
Hungria, país (e territórios
anexados ao abrigo da aliança com a Alemanha nazi) onde viviam cerca
de 800 mil judeus. Após a derrota de Estalinegrado por parte dos alemães, o regente
Miklos Horthy tentou sair da aliança com a Alemanha, mas Hitler, a 19 de março
de 1944, invadiu a Hungria, nomeou um governo fiel e enviou Adolf Eichmann a
aplicar a ‘solução final’ no país. Os
judeus foram despojados de bens e propriedades, obrigados a usar a estrela
amarela e encerrados em guetos. E, entre 15 de maio e 9 de julho, foram
deportados perto de 450 mil judeus, na sua maioria para Auschwitz, onde mais de
metade morreu, logo à chegada, nas câmaras de gás.
Na Hungria operavam na época 5 representações
diplomáticas de países neutrais (Suécia, Suíça, Portugal, Espanha e Turquia) além
da Cruz Vermelha e o Vaticano. Garrido deixou a embaixada, devido aos
bombardeamentos aliados (em
resposta à invasão alemã), e alugou uma vivenda em Galgagyörk, a 60 km
da cidade, onde, sem informar Salazar, escondeu 12 judeus entre os quais se
encontravam 5 membros da família Gabor, parentes da atriz Zsa Zsa Gabor. Porém, já antes vinha a alertar sobre
a perseguição aos judeus, tomando a iniciativa de os proteger antes mesmo da
mobilização no mesmo sentido dos diplomatas dos países neutros.
A 28 de abril de 1944, às 5 horas da manhã, a
residência oficial de Portugal em Galgagyörk foi assaltada pela Gestapo: os
hóspedes foram presos e levados para o posto da polícia central de Budapeste. O
embaixador fez questão de ser preso a fim de de poder ajudar os seus hóspedes.
Sem se intimidar, o diplomata exigiu de imediato a libertação dos detidos,
alegando o conceito de extraterritorialidade da residência de embaixador, e
ainda o pedido de desculpas.
Garrido tornou-se persona non grata para o governo húngaro, que exigiu a sua partida. Salazar
nomeou o encarregado de negócios Alberto Carlos de Liz-Teixeira Branquinho para
o substituir. Mas Garrido não voltou logo para Portugal. A 5 de junho, partiu
para Berna levando consigo a sua secretária judia e, daquela cidade, continuou
a orientar Teixeira Branquinho no apoio aos judeus, enviando-lhe listas com
nomes para os quais pedia assistência e asilo na legação portuguesa. Branquinho
obteve de Salazar autorização para atribuir passaportes portugueses a judeus
húngaros na condição de estes terem relação familiar, cultural ou económica com
Portugal. Ao todo foram
concedidos por Portugal cerca de 1000 documentos de proteção, dos quais 700
passaportes provisórios sem indicação de nacionalidade portuguesa, conforme
exigência de Salazar para que a não pudessem reclamar mais tarde. Em 1945, Garrido
foi enviado extraordinário e ministro plenipotenciário em Estocolmo. A 2 de fevereiro
de 2010, a Comissão para a Nomeação dos Justos, criada pelo Yad Vashem
concedeu-lhe a medalha dos Justos entre as Nações, entregue à família, pelo
embaixador de Israel em Portugal.
José Brito Mendes
Em França, José Brito Mendes arriscou a vida,
escondendo a pequena Cécile, cujos pais judeus foram deportados para campos de
concentração, onde faleceram. O português emigrara para França em 1926, onde
casou com a francesa, Marie-Louise, de quem teve um filho, Jacques. Viviam em
St. Ouen, arredores operários de Paris e eram vizinhos e amigos dum casal de
judeus polacos, Aron e Fojgel Berkovic, e da filha Cécile, nascida em 1937. Cécile e Jacques foram criados juntos
naquele bairro onde se aglomeravam, à época, imigrantes espanhóis e italianos,
portugueses e polacos. A 15 de junho de 1942, Aron foi deportado para
Auschwitz, onde morreu. A esposa escondeu-se algures em Paris, mas antes
confiou Cécile à guarda da família Brito Mendes, na tentativa de a salvar.
Meses depois, Fojgel Berkovic foi presa e levada para o campo de trânsito de
Drancy, donde partiam os transportes para os campos de extermínio. Antes da
partida, Brito levou Cécile, de 5 anos, a ver a mãe uma última vez. José Brito
e a mulher apresentavam a menina como sobrinha de Marie-Louise e prima de
Jacques.
A família Brito tomou conta de Cécile como
filha e enviou-a juntamente com Jacques para a província, onde ficaram a salvo,
em casa de familiares do casal. O tempo passou, a guerra acabou, os pais de
Cécile foram mortos e o casal Brito preparou-se para adotar a criança. Mas do
campo de concentração de Dachau chegou um sobrevivente da família: um tio de
Cécile, que obteve a sua guarda e a levou para os EUA, para desgosto dos Brito
Mendes. Cécile nunca mais viu aquela família. Nos
EUA, mudou de nome, estudou, exerceu advocacia, casou e teve duas
filhas. Voltou a França em 1987 à procura dos Brito Mendes, mas não os
encontrou e morreu sem os rever. Também Jacques nunca desistiu de encontrar a
‘irmã’. Não a conseguiu rever, mas em 2002, com o apoio das associações das
Crianças Escondidas e extensas buscas na internet, descobriu as filhas de
Cécile, que, embora ao corrente de que a mãe nascera em França e de que os avós
tinham sido mortos em Auschwitz, nada mais sabiam do passado de Cécile.
Em 2004, o Yad
Vashem, Autoridade Nacional para a memória dos Mártires e Heróis do
Holocausto, de Jerusalém, atribuiu ao casal Brito Mendes o título de ‘Justo entre as Nações’.
Padre Joaquim Carreira
O padre Joaquim Carreira é o 4.º ‘Justo entre as Nações’ português. O ‘Yad
Vashem’ incluiu, em 2015, o vice-reitor e reitor do Colégio Pontifício
Português, de Roma, entre 1940 e 1954, na sua lista dos não judeus que, durante
o Holocausto, arriscaram a vida para salvar judeus.
Nascido a 8 de setembro de 1908 no Souto de
Cima, freguesia da Caranguejeira, concelho de Leiria, Joaquim Carreira era o
filho do meio de Inácia e Joaquim Carreira, que tinham mais 4 filhas. Em 1920,
aos 12 anos, entrou para o seminário de Leiria. Foi em 1925 para Roma onde
completou o curso de Teologia na Universidade Gregoriana, sendo ordenado padre
em 1931, e regressou a Portugal. Entretanto, o bispo de Leiria decidiu enviá-lo
para Roma, onde chegou a 4 de maio de 1940, com 31 anos, para ocupar o cargo de
vice-reitor do Colégio Pontifício Português. Em 1941, com a morte do reitor,
monsenhor Pereira Vilar, passou a reitor.
Ocupada a cidade pelas tropas nazis entre
setembro de 1943 e junho de 1944, muitos foram perseguidos. Face a situações
concretas que lhe batiam à porta, Carreira assumiu como suas as orientações
Vaticanas. Convicto de que a
hospitalidade está na base dos princípios da caridade cristã e a exemplo de
todas as comunidades religiosas de Roma, achou que a devia oferecer a pessoas
perseguidas, procuradas ou em perigo, concedendo asilo e hospitalidade no Colégio
a pessoas perseguidas na base de leis injustas e desumanas – decisão que o
levou a um maior contacto com as misérias, as dores e as tragédias em consequência
da guerra.
Segundo António Marujo, passaram pelo Colégio
pelo menos 40 pessoas, conforme o próprio padre escreveu num relatório – em que
registou exatamente 39 nomes de foragidos. Mas há pelo menos um depoimento dum
dos refugiados que fala em 50 pessoas e outro em 42. Como nem todas estiveram
ao mesmo tempo na casa, será difícil ter certezas sobre o número exato.
Além de esconder perseguidos, Carreira assumia a
responsabilidade da procura de comida. Escreveu que, “se não conhecesse tantos
moleiros nos arredores de Roma”, os seus hóspedes “teriam passado muita fome”.
E sugeria pequenos truques aos responsáveis pela cozinha, assegurando que “o
milho, cozido em grão, valia por bom bife”. Roma foi libertada da ocupação nazi
em junho de 1944, mas ainda depois houve refugiados no Colégio Português. Em
1945 e 1946, durante algumas semanas, mais 6 pessoas ali estiveram escondidas.
Monsenhor desde 1950, Carreira foi, a partir de
1952, conselheiro eclesiástico da embaixada portuguesa junto da Santa Sé. Desde
1958, residia na casa Madonna di Fatima.
A 19 de Setembro de 1981, celebrou as bodas de ouro sacerdotais no Souto de
Cima. Regressado a Roma em outubro, intuiu que esta fora a última vez que visitava
o seu país. Tinha 73 anos de idade, quando faleceu, em Roma, a 7 de dezembro de
1981. Sepultado naquela cidade, Carreira seria trasladado para Portugal em
2001, estando os seus restos mortais, desde então sepultados no cemitério dos
Soutos-Caranguejeira.
***
São heróis discretos, esquecidos dos
concidadãos, mas lembrados por memória de agradecidos. Não esqueçamos o
holocausto e suas vítimas e esperemos que nada de semelhante volte a ocorrer
num mundo que não está para distrações!
2017.01.22 – Louro de
Carvalho
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