Sim, quando
chega ao fim, no hemisfério norte, a Semana
de Oração Pela Unidade dos Cristãos, celebra-se a Conversão de São Paulo,
que ocorreu na estrada para Damasco quando o feroz mestre no judaísmo
empreendia, devidamente credenciado pelos seus chefes, uma premeditada ação
contra os cristãos.
O dom de Deus
incide como uma luva naquele espírito aguerrido, mas sincero. Tanto assim é que
Paulo, ao ouvir a pergunta “Porque me
persegues?”, quis saber “Quem és tu,
Senhor, a quem eu persigo?”. Juntou-se o dom com a abertura de espírito. E
este encontro com aquele que lhe responde “Eu
sou Jesus a quem tu persegues” (Não lhe disse: ‘Tu persegues os cristãos’), não valendo a pena recalcitrar,
transformou radicalmente a vida de Paulo. Ele estava, de facto, a perseguir
Jesus nas pessoas dos seus seguidores. Porém, recebido o batismo em nome de
Cristo, reconciliou-se com Deus e ficou capacitado para, como embaixador de
Cristo, pregar a reconciliação dos homens com Deus.
Para tanto,
como dizia o papa Francisco na homilia das Vésperas II da festa da Conversão de
Paulo em contexto ecuménico, “a partir de então, para ele, o sentido da
existência já não está em confiar nas próprias forças para observar
escrupulosamente a Lei, mas em aderir com todo o seu ser ao amor gratuito e
imerecido de Deus, a Jesus Cristo crucificado e ressuscitado”. Aprofunda-se-lhe
e alarga-se-lhe o conhecimento, como disse o Pontífice na referida celebração
ecuménica:
“Conhece, assim, a irrupção duma vida
nova, a vida segundo o Espírito, na qual, pelo poder do Senhor ressuscitado,
experimenta perdão, confidência e conforto. E Paulo não pode guardar para si
mesmo esta novidade: é impelido pela graça a proclamar a feliz notícia do amor
e da reconciliação que Deus oferece plenamente em Cristo à humanidade.”.
Com efeito,
não é o amor do homem por Deus e pelo seu Cristo que gera o dom da
reconciliação, mas o amor de Cristo. É o amor de Cristo que impele à
reconciliação, como refere o núcleo do capítulo 5 da 2.ª carta de Paulo aos
Coríntios (cf 2 Cor 5,14-20), onde se inspiraram os promotores da Semana de Oração Pela Unidade dos Cristãos de
2017, que pretendem que valha para todo o ano.
Na verdade,
termina a Semana, mas não a obrigação e a oportunidade de meditar e rezar
unidade, pois, ele quer que todos sejamos um só (cf Jo 17,21) e, por isso, deu a Vida para que os filhos de Deus que
andavam dispersos se reunissem em torno dele (cf Jo 11,52).
Por isso,
Francisco diz que “a reconciliação para a qual somos impelidos não é
simplesmente iniciativa nossa: é primariamente a reconciliação que Deus nos
oferece em Cristo” e, “antes
de ser esforço humano de crentes que procuram superar as suas divisões, é um
dom gratuito de Deus”. Graças ao dom, “a pessoa perdoada e amada é chamada” a
proclamar “o evangelho da
reconciliação em palavras e
obras, a viver e dar testemunho duma existência reconciliada”.
Assim o
recomenda Pedro na sua 1.ª carta, ao exortar:
“Sede, pois, sensatos e sóbrios para vos poderdes
dedicar à oração. Acima de tudo, mantende entre vós uma intensa caridade,
porque o amor cobre a multidão dos pecados. Exercei a hospitalidade
uns com os outros, sem queixas. Como bons administradores das várias graças de
Deus, cada um de vós ponha ao serviço dos outros o dom que recebeu. Se alguém
tomar a palavra, que seja para transmitir palavras de Deus; se alguém exerce um
ministério, faça-o com a força que Deus lhe concede, para que em todas as
coisas Deus seja glorificado por Jesus Cristo. A Ele a glória e o poder por
todos os séculos dos séculos.”
***
Mas uma
pergunta surge ao nível da coerência, segundo o Bispo de Roma: “Como é possível
proclamar este evangelho de reconciliação depois de séculos de divisões?”. O
próprio apóstolo Paulo testemunha o incómodo que as divisões criam à pregação
do Evangelho e as denuncia logo no primeiro capítulo da sua 1.ª carta aos
Coríntios:
“Peço-vos, irmãos, em nome de Nosso
Senhor Jesus Cristo, que estejais todos de acordo e que não haja divisões entre
vós; permanecei unidos num mesmo espírito e num mesmo pensamento. Pois, meus irmãos, fui informado pelos
da casa de Cloé, que há discórdias entre vós. Refiro-me ao facto de cada um
dizer: ‘Eu sou de Paulo’, ou ‘Eu sou de Apolo’, ou ‘Eu sou de Cefas’, ou ‘Eu
sou de Cristo’. Estará Cristo
dividido? Porventura Paulo foi crucificado por vós? Ou fostes batizados em nome
de Paulo?” (1Cor 1,10-13).
E, se Paulo
encontra divisões em Corinto, nós topamo-las por toda a parte e durante
milénios.
Vendo nos
outros apenas erro e rebeldia, alegamos ser fiéis depositários da herança de
Cristo ou garantes da ortodoxia e esquecemo-nos de que não podemos aprisionar a
verdade.
Na verdade, a
Igreja, que tem de fazer comunidade, não passa sem sofrimento com a existência
de divisões, rivalidades e partidarite. Não existe senão um único batismo, que
todos recebemos em Cristo, o único Salvador, que veio reunir as ovelhas e fazer
que haja um só rebanho e um só pastor, não para dividir ou separar. É certo que
as ovelhas são diferentes em vários aspetos, mas das diferenças não podem
resultar divisões, intrigas, rixas, escaramuças. Por isso, em todos os membros
das comunidades cristãs deve reinar a perfeita unidade de pensamento no
essencial e ação substantiva – sem se cair na unicidade de pensamento ou na
uniformidade de gestos. Porém, quem semeia a divisão tem de saber que mutila o
Corpo de Cristo e compromete o progresso do Reino de Deus.
Nesta Semana
de Oração, o Papa refere que “o próprio Paulo nos ajuda a encontrar o caminho”
da unidade, ao sublinhar que “a reconciliação em Cristo não se pode realizar sem sacrifício, pois “Jesus deu a sua vida,
morrendo por todos”. Também hoje “os embaixadores de reconciliação, em seu
nome, são chamados a dar a vida, a não viver mais para si mesmos, mas para
Aquele que morreu e ressuscitou por eles” (cf 2Cor 5,14-15).
Entretanto,
desde o início do século XX – e mais concretamente com João XXIII e o Concílio
Vaticano II – chegou o tempo de as diversas confissões cristãs deixarem de
estar de costas voltadas umas para as outras e de sublinhar as divisões.
Compreendendo as circunstâncias históricas, talvez se venha a perceber que
todos terão querido apropriar-se da verdade e das boas práticas e que, por
outro lado, todos terão dados sérios contributos para a valorização de
importantes dados da doutrina e da reflexão teológica.
Neste
sentido, Francisco hoje declarou:
“Para a Igreja, para cada Confissão
Cristã, é um convite a não se basear em programas, cálculos e benefícios, a não
se abandonar a oportunidades e modas passageiras, mas a procurar o caminho com
o olhar sempre fixo na cruz do Senhor: lá está o nosso programa de vida. É um
convite também a sair de todo o isolamento, a superar a tentação da
autorreferência, que impede de individuar aquilo que o Espírito Santo realiza
fora do nosso próprio espaço.”
Por isso,
propõe como possível uma metodologia:
“Poderá realizar-se uma autêntica
reconciliação entre os cristãos, quando soubermos reconhecer os dons uns dos
outros e formos capazes, com humildade e docilidade, de aprender uns dos outros
– aprender uns dos outros –, sem esperar que primeiro sejam os outros a
aprender de nós”.
E
fundamenta-a na força da palavra de Deus:
“Se vivermos este morrer para nós
mesmos por amor de Jesus, o nosso estilo velho de vida é relegado para o
passado e, como aconteceu a São Paulo, entramos numa nova forma de existência e
comunhão. Com Paulo, poderemos dizer: ‘O que era antigo passou’ (2Cor 5,17). Olhar para trás é útil e muito
necessário para purificar a memória, mas fixar-se no passado, delongando-se a
lembrar as injustiças sofridas e cometidas e julgando com parâmetros apenas
humanos, pode paralisar e impedir de viver o presente.”.
***
Acentuando
que a Palavra de Deus nos encoraja “a tirar força da memória, a recordar o bem
recebido do Senhor”, sustenta que ela nos pede que “deixemos o passado para
trás a fim de seguir Jesus no presente e, n’Ele, viver uma vida nova”. Devemos assim
consentir que Aquele que renova todas as
coisas (cf Ap 21,5) nos oriente “para um futuro novo, aberto à esperança
que não desilude, um futuro onde será possível superar as divisões e os
crentes, renovados no amor, encontrar-se-ão plena e visivelmente unidos” –
realizando na plenitude a vontade de Cristo que veio para que tenhamos vida e a
tenhamos em abundância (cf
Jo 10,10), incompatível
com as ruturas.
Depois, o
Papa Francisco não deixou, no âmbito deste avanço “pelo caminho da unidade”, de
recordar “o quinto centenário da Reforma Protestante”. E assegura que “o facto
de católicos e luteranos poderem hoje recordar, juntos, um evento que dividiu
os cristãos e de o fazerem com a esperança posta sobretudo em Jesus e na sua
obra de reconciliação, constitui um marco significativo, alcançado – graças a
Deus e à oração – através de cinquenta anos de mútuo conhecimento e de diálogo
ecuménico”.
Por fim, o
Papa sustenta que “a nossa oração pela unidade dos cristãos é participação na
oração que Jesus dirigiu ao Pai, antes da Paixão, “para que todos sejam um só”
(Jo 17,21). E apela que “nunca nos cansemos de pedir a Deus
este dom” e a que “prossigamos o nosso caminho de reconciliação e diálogo,
encorajados pelo testemunho heroico de tantos irmãos e irmãs, de ontem e de
hoje, unidos no sofrimento pelo nome de Jesus” – aproveitando todas as
oportunidades que a Providência nos oferece para rezar juntos, anunciar juntos,
amar e servir juntos sobretudo quem é mais pobre e negligenciado”.
***
Que
São Paulo seja sempre para todos a testemunha fulgurante do dom de Deus que se
faz reconciliação, unidade, paz e progresso no caminho da verdade, do bem e da
beleza.
2017.01.25 – Louro de Carvalho
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