sábado, 7 de janeiro de 2017

Morreu Mário Soares, um grande estadista não consensual

Chegou ao fim dos seus dias o político Mário Soares. Grande homem, grande estadista, mas também portador de contradições, fonte de divergências e até defeitos. Porém, tudo isto emoldura a figura pública em torno da qual muitos hoje se vêm pronunciando.
O dia 7 de janeiro de 2017, fica a partir das 15 horas e 28 minutos como um dia insólito na história dos óbitos das grandes figuras públicas. Os comentários sucedem-se e todos se referem às virtudes democráticas do finado, mas todos ou quase todos sublinham as divergências e as contradições, as oposições e alguns dos seus erros (voluntários ou não). Um grande acontecimento democrático, que em grande parte a ele se deve: o da não unanimidade ditada pelo pudor perante quem morre (alegadamente, estas figuras públicas são todas excelentes post mortem) ou pela força político-policial e militar que impõe pensamento único e expressão comportamento uniformes.
Se Portugal não tem de chorar obrigatoriamente por Mário Soares, como os norte-coreanos pelo “querido líder” ou como os cubanos pelo “comandante”, nem tem de dizer “morreu o homem”, como se dizia em 1970, quando se finou Salazar, deve-o aos capitães de abril de 1974, em termos militares, e a Mário Soares, em termos políticos.
Temos de convir que muitos dos testemunhos vertidos no dia de hoje para a comunicação social raiam o politicamente correto ou mesmo o hipocritamente real, quando outros exprimem a solidariedade da família político-partidária a que Soares deu fundação e incremento. Todavia, alguns, a par das divergências ou das cumplicidades, salientam a amizade, enquanto outros, por causa das divergências, anotam quebra de amizade, embora quase sempre reatada.
Trata-se do homem que valeu pelo que foi e é, não por aquilo que alguns quiseram que fosse.
É óbvio que Soares herdou de família a luta pelo republicanismo e resistiu ativamente à onda que impôs do Estado Novo, criando e capitaneando uma frente de resistência democrática e socialista, organizando a Ação Socialista e, em 1973, cofundando o Partido Socialista no estrangeiro. Sofreu a prisão por motivos políticos e o exílio, mas apressou-se a voltar para integrar a revolução, em cujos primeiros passos de governação participou na condição de Ministro dos Negócios Estrangeiros dos três primeiros governos provisórios e de Ministro sem Pasta do quarto. Mas campeou em ações de rua e corporizou a chefia política contra aquilo que era considerado o caminho radicalizado da revolução.
Pelo que apresenta de juízo equilibrado e justo sobre a figura e o papel do ex-Presidente, fixo-me nalguns aspetos da mensagem de condolências do Presidente da Assembleia da República.
Ferro Rodrigues, depois de exprimir o pesar pelo falecimento de Mário Soares, afirma costumar dizer-se dos grandes políticos que a sua vida se confunde com a do tempo histórico que viveram” e assegura que, “no caso de Mário Soares, não será exagerado dizer que é o último quartel do século XX português que se confunde com ele”.
Depois, sublinhou a sua luta “pela liberdade antes e depois do 25 de abril” e sustenta que, “se a nossa geração já fez política em democracia, se as gerações dos meus filhos e netos já cresceram num País livre, democrático e europeu, a ele muito o devemos”.
E, na vertente institucional, salienta que, enquanto “líder político e Deputado à Assembleia Constituinte, Mário Soares foi um dos fundadores da democracia portuguesa, iniciada pelo Movimento das Forças Armadas a 25 de abril de 1974, assim reconhecido em Portugal e no estrangeiro”. Na sua condição de deputado ativo na Assembleia da República, “prestigiou o parlamento e o parlamentarismo” e, “como Primeiro-Ministro, esteve por detrás de grandes conquistas, como a criação do Serviço Nacional de Saúde, da Concertação Social e da adesão à então Comunidade Económica Europeia”.
O próprio Dr. António Arnaut, que foi Ministro dos Assuntos Sociais no II Governo constitucional, presidido por Soares, e que é considerado o pai do Serviço Nacional de Saúde, hoje mesmo se referiu à ação de Soares nesta matéria. E, em relação ao parlamentarismo, é de sublinhar que o PS entrou em acordo com o PSD para, em 1982, na grande revisão da Constituição, se reforçar a componente parlamentarista do nosso sistema semipresidencialista.
E, Ferro Rodrigues, depois de referir que Mário Soares, “como Presidente da República, afirmou Portugal e prestigiou o Estado, abrindo a presidência à sociedade e à cultura”, declara que “o Portugal democrático, europeu e cosmopolita é o País de Mário Soares” e que “Mário Soares foi um Grande Português”. Quem não se lembra as presidências abertas e do pregão do direito à indignação, quando a governança se impõe como fardo em vez de abrir caminho?  
É óbvio que o ex-Presidente não tinha um feitio muito tranquilo e cordato. Contudo, era dotado dum jeito fabuloso para fazer amigos, mesmo quando as divergências afloravam, que apreciava quando eram sustentadas e empenhadas, como não tinha escrúpulos em ultrapassar a relação de amizade quando julgava estar em perigo a verdade em que acreditava e os valores por que se batia. É natural que não tenha tido razão em muitas opções ou que a tenha antecipado contra tudo e contra todos. Todos erram, todos acertam, todos se deixam levar pelos seus caprichos e todos – alguns mais que outros – se pautam por valores.
É célebre o episódio do comício da Fonte Luminosa, em 1975, quando Soares, depois do que se passou com o jornal República e o que se estava a passar com a Rádio Renascença – mercê do seu apoderamento por forças radicais – iniciou pública e destemidamente a luta contra o gonçalvismo, dando o braço ao “grupo dos nove”, na instituição militar, e às manifestações de católicos. E hoje alguém revelou – não o sabia – do apoio não público de Mário Soares aos manifestantes que foram encurralados, num dos dias do PREC, nas instalações do Patriarcado de Lisboa, ao tempo.
Sublinharam hoje alguns que o ex-Presidente redimensionou a vocação europeia do país e campeou a adesão de Portugal à CEE, mas que não aceitou nem a captura acrítica da soberania com os tratados de Nice e de Maastricht – da UE – nem o neoliberalismo de que a troika foi o rosto no Portugal da crise. E, sendo o homem do ecumenismo mundial, não se vergou à maneira austeritária como o mundo reagiu à crise, criando pobres atrás de pobres.
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Também o cardeal-patriarca de Lisboa considerou que Portugal deve “muito” a Mário Soares, antigo presidente da República Portuguesa, sobretudo nos “anos de implementação da democracia”. Em declarações à agência Ecclesia, D. Manuel Clemente destacou o “contributo notável e irrecusável” do responsável político, considerando que este é um tempo “para agradecer e enaltecer” o seu papel para o “estabelecimento da democracia em Portugal”.
Com efeito, segundo o prelado lisbonense, as instituições democráticas em Portugal, como “felizmente” hoje existem, devem muito a Mário Soares, “sobretudo nos anos de implementação da democracia nos anos 70” do século XX. E precisou que a sua ação pela democracia acontecera “já antes, no seu percurso pessoal, mas para nós todos a partir dos anos 70 e daí em diante”.
Em 2007, Mário Soares foi indicado para presidir à Comissão da Liberdade Religiosa, criada pela Lei n.º 16/2001, de 22 de junho (cuja última redação lhe foi dada pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro), cargo no qual seria reconduzido em 2011.
Como Presidente da República, Soares recebeu o Papa João Paulo II na viagem que o santo polaco fez a Portugal, em 1991, e a quem solicitou intervenção pela causa de Timor-Leste; e, já antes, a 27 de Abril de 1990, realizara uma visita oficial ao Vaticano. Além disso, sobretudo enquanto foi Primeiro-Ministro, avistou-se várias vezes, com o cardeal Agostino Casaroli, o Secretário de Estado do Vaticano, de quem era amigo e a quem fez uma entrevista.
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O Primeiro-Ministro António Costa encontra-se na Índia em visita de Estado. Como era natural, reagiu à notícia da morte do ex-Presidente, afirmando que foi sempre considerado por nós como o rosto da liberdade. Mais comunicou que o Governo decretaria o luto nacional de três dias, a contar do próximo dia 9 de janeiro, e que o funeral teria honras de Estado.
Porém, o Primeiro-Ministro e Secretário-Geral do PS não cancelará a visita de Estado à Índia que hoje se iniciou e vai até sexta-feira, no que tem o apoio do Ministro dos Negócios Estrangeiros Augusto Santos Silva, que também se pronunciou comovido pelo finado.
A questão, que foi levantada a muitos protagonistas políticos, foi contornada com suposições sobre um eventual gosto do estadista falecido e sobre comportamento análogo por ele corporizado em determinada ocasião.
Assim, Santos Silva disse que, se Mário Soares pudesse saber que o Primeiro-Ministro não tinha cancelado a visita, “ficaria contente porque sempre pôs o interesse do Estado e do povo português acima de quaisquer outros”. Além disso, o próprio Dr. Mário Soares fez opção semelhante em circunstâncias absolutamente dramáticas, em 1985, quando estava de partida para a visita de Estado à Hungria e à Holanda, ao saber que o filho, João Soares, tivera um desastre de avião quando partia da Jamba (quartel-general de Savimbi em Angola), estando num hospital da África do Sul às portas da morte. Manteve a viagem e Maria Barroso, a mãe, partiu para a África do Sul.
A este respeito, Joaquim Vieira, na sua biografia sobre o antigo Primeiro-Ministro e Presidente da República (Mário Soares: Uma Vida, Esfera dos Livros, 2013), relata que, na Hungria, o Chefe de Estado “desdobrava-se entre as funções de Estado e o drama familiar”, acompanhado o estado de saúde do filho por contactos telefónicos com Maria Barroso. Só depois do regresso da visita à Holanda partiu para a África do Sul a visitar o filho, que, entretanto, tinha tido uma melhoria do seu estado clínico.
Não me parece aplicável à visita de Costa um hipotético gosto do extinto estadista. Por outro lado, a relação de Soares com o filho era uma relação familiar. Assim, o Primeiro-Ministro teve ou teria de avaliar a pertinência do cancelamento ou da continuação da visita pela índole e interesse nacional da própria visita e não por outros quaisquer critérios. De resto, Costa está fora, mas não estamos órfãos de governação.
Quanto a Soares, há que dizer que morreu um homem político controverso, mas incontornável.
Paz ao seu espírito!

2017.01.07 – Louro de Carvalho

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