domingo, 1 de janeiro de 2017

“Peregrinos no Tempo”

“Peregrinos no Tempo” é a condição que o Papa Francisco nos atribui na pequena oração de ação de graças à Santa Mãe de Deus por ocasião da recitação do Angelus neste primeiro dia de janeiro do novo ano de 2017 e em que Lhe pede que nos ajude a prosseguir no caminho da paz.
Na verdade, a condição de peregrino é a condição do homem que vem a este mundo e que, pela necessidade de angariar meios de subsistência ou pelo gosto de convivência com os demais, percorre os caminhos e atalhos das terras a que acede. Porém, no meio destas operações de peregrinação rotineira, descobre que faz sentido também rumar aos santuários onde pode colher lenitivo para as agruras da vida, pôr-se mais em contacto com a divindade (adorando, agradecendo, louvando, implorando e expiando), viver o mundo do sagrado.
Daí a considerar a peregrinação no tempo vai um pequeno passo. E esta não é apenas simbólica, sobretudo se atendermos à clássica definição do tempo como medida do movimento segundo as categorias de prius ac posterius (antes e depois). E, assim, Aquilino Ribeiro considerava a sua vida como a peregrinação a Compostela contabilizada em carradas de anos, tal como os cristãos, estando no mundo, mas não sendo do mundo, se consideram peregrinos da Jerusalém celeste e cantam com Lucien Deiss: “Cidadãos do Céu, habitantes da Casa do senhor, caminhamos no Espírito, com Jesus para o Pai”.
Em qualquer modalidade de peregrinação, há o risco de alguns assumirem para si lugares de privilégio ou de exceção, que geram situações de exclusão de outros, marginalização e descarte, banindo-se do horizonte dos peregrinos o sentido de pertença e de comunhão.
Para obviar a estes riscos, o Papa Francisco apresenta a lição do presépio e o sentido da solenidade da Santa Mãe de Deus. Com efeito, Deus escolheu Maria para mãe do Salvador, mas também para sua colaboradora na missão redentora. Por isso, Jesus e Maria aparecem-nos intimamente associados. E o presépio de Belém mostra o caminho de Deus a destronar a soberba e a riqueza e a elevar os humildes, tal como Maria cantou no Magnificat perante Isabel.
Em relação à Solenidade do dia primeiro de janeiro, Francisco proferiu mais duas peças programáticas: a homilia nas Vésperas I e a homilia da Missa – de que, a seguir, se expõem algumas linhas.
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Nas Vésperas I da Solenidade de Santa Maria Mãe de Deus, o Papa, faz o levantamento de muitas das vicissitudes por que passa a nossa peregrinação no tempo: muitos sentem-se “perdidos, mortificados, feridos, desanimados, abatidos e amedrontados”; muitos, “na sua carne, carregam o peso do afastamento e da solidão”; e, para muitos, “o pecado, a vergonha, as feridas, o desconforto, a exclusão” têm “a última palavra na vida dos seus filhos.
Para isto, o Pontífice apresenta o presépio, que mostra que o Senhor não se fica na atenção abstrata à nossa condição humana, mas partilha na proximidade, no sofrimento e no desconforto todas as nossas misérias, exceto a do pecado. É a lógica divina, que não assenta na lógica do privilégio, da exceção, da exclusão, do descarte, do nepotismo e do compadrio, mas na “lógica do encontro, da aproximação e da proximidade”. De facto, “o próprio Deus veio quebrar a cadeia do privilégio que gera sempre exclusão, para inaugurar a carícia da compaixão que gera a inclusão, que faz resplandecer em cada pessoa a dignidade para que foi criada”; e “um menino envolto em panos mostra-nos a força de Deus que interpela como dom, como oferta, como fermento e oportunidade para criar uma cultura do encontro”.
Depois, o Papa denuncia a contradição entre a idolatria e o desprezo que oferecemos aos jovens:
“Criamos uma cultura que por um lado idolatra a juventude procurando torná-la eterna, mas por outro, paradoxalmente, condenamos os nossos jovens a não possuir um espaço de real inserção, porque lentamente os fomos marginalizando da vida pública, obrigando-os a emigrar ou a mendigar ocupação que não existe ou que não lhes permite projetar o amanhã. Privilegiamos a especulação em vez de trabalhos dignos e genuínos que lhes permitam ser protagonistas ativos na vida da nossa sociedade. Esperamos deles e exigimos que sejam fermento de futuro, mas discriminamo-los e condenamo-los a bater a portas que, na maioria delas, permanecem fechadas.”.
Por isso, aponta um caminho:
“Se queremos apontar para um futuro que seja digno deles, só o poderemos alcançar apostando numa verdadeira inclusão: a inclusão resultante do trabalho digno, livre, criativo, participativo e solidário”.
E, olhando para o ano que terminava, convidou “a voltar às fontes e às raízes da nossa fé”, pois, “em Jesus, a fé faz-se esperança, torna-se fermento e bênção”. É Ele que nos permite “levantar a cabeça e recomeçar, com uma ternura que nunca nos defrauda e sempre nos pode restituir a alegria”.
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Na homilia da Missa da Solenidade, Francisco expôs o sentido da celebração da “maternidade de Maria como Mãe de Deus e nossa mãe” a “avivar uma certeza que nos há de acompanhar no decorrer dos dias: somos um povo com uma Mãe, não somos órfãos”. E sobre o papel das mães junto dos filhos e na sociedade, não foi parco nas palavras:
“As mães são o antídoto mais forte contra as nossas tendências individualistas e egoístas, contra os nossos isolamentos e apatias. Uma sociedade sem mães seria não apenas uma sociedade fria, mas também uma sociedade que perdeu o coração, que perdeu o sabor de família. Uma sociedade sem mães seria uma sociedade sem piedade, com lugar apenas para o cálculo e a especulação. Com efeito as mães, mesmo nos momentos piores, sabem testemunhar a ternura, a dedicação incondicional, a força da esperança.”
E denuncia a “orfandade espiritual” como doença corrosiva, a que vivemos “quando se apaga em nós o sentido de pertença a uma família, a um povo, a uma terra, ao nosso Deus”; a que “se aninha no coração narcisista que sabe olhar só para si mesmo e para os seus interesses e cresce quando esquecemos que a vida foi um dom – dela somos devedores a outros – e somos convidados a partilhá-la nesta casa comum”.
Foi a orfandade autorreferencial que levou Caim a questionar-se se era o guarda do irmão, julgando que este não lhe pertencia. Esta orfandade funciona como cancro silencioso que “enfraquece e degrada a alma”. Com efeito, se “ninguém nos pertence e nós não pertencemos a ninguém”, degradamos “a terra”, porque não nos pertence, degradamos “os outros”, porque não nos pertencem; e eu “degrado a Deus, porque não Lhe pertenço”; e “acabamos por nos degradar a nós próprios, porque esquecemos quem somos e o nome divino que temos”. “A orfandade espiritual” – insiste o Pontífice – “faz-nos perder a memória do que significa ser filhos, ser netos, ser pais, ser avós, ser amigos, ser crentes; faz-nos perder a memória do valor da diversão, do canto, do riso, do repouso, da gratuitidade”.
Ora, segundo o Papa, protegemo-nos de tal doença quando, como ao começar do novo ano, atentamos na “bondade de Deus” presente “no rosto materno de Maria, no rosto materno da Igreja e no rosto das nossas mães”.  
Por outro lado, celebrar a Santa Mãe de Deus é chamada de atenção desafiante para o facto de sermos pessoas, famílias e povo e não meros sujeitos e objetos de consumo, mera mercadoria ou meros produtores/recetores de informação:
“Faz despontar novamente no rosto o sorriso de nos sentirmos povo, de sentir que nos pertencemos; saber que as pessoas, somente dentro duma comunidade, duma família, podem encontrar a atmosfera, o calor que permite aprender a crescer humanamente, e não como meros objetos destinados a consumir e ser consumidos”.
Na verdade, “não somos mercadoria de troca nem terminais recetores de informação”, mas “somos filhos, somos família, somos povo de Deus.
E “celebrar a Santa Mãe de Deus impele-nos a criar e cuidar espaços comuns que nos deem sentido de pertença, de enraizamento, que nos façam sentir em casa dentro das nossas cidades, em comunidades que nos unam e sustentem” e, sobretudo, “lembra-nos que temos a Mãe; não somos órfãos”. Por isso, o Papa convidou os presentes a aclamá-La em pé, três vezes, como fizeram os fiéis de Éfeso: “Santa Mãe de Deus, Santa Mãe de Deus, Santa Mãe de Deus!”.
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E, após a recitação da oração mariana do Angelus, Francisco recordou que o ano 2017 que estamos a iniciar hoje, só “será bom, na medida em que cada um de nós, com a ajuda de Deus, procurar fazer o bem, dia após dia. Só assim se constrói a paz, dizendo “não”, com factos concretos, ao ódio e à violência, e dizendo “sim” à fraternidade e à reconciliação. E, recordando que passaram 50 anos, desde que o seu predecessor, Papa Paulo VI, inaugurou a celebração do Dia Mundial da Paz, salientou que também o celebramos hoje com o objetivo de reforçar o empenho comum e pessoal de construir um mundo pacífico e fraterno.
Depois, lamentou que, embora tenha proposto, na mensagem deste ano, a assunção da não violência “como estilo para uma política de paz”, a violência foi, mais uma vez, protagonista nesta noite de augúrios e de esperança mediante um grave atentado em Istambul, na Turquia, pelo que exprimiu a sua proximidade na oração aos defuntos e aos seus familiares, aos feridos e a todo o povo turco.
Mas, ao mesmo tempo, exprimiu a sua gratidão “por tantas iniciativas de oração e de empenho pela paz que se realizam em todos os cantos do mundo inteiro”. Neste sentido, saudou, de modo particular, os participantes da manifestação “Paz por toda Terra”, presentes na Praça de São Pedro organizada pela Comunidade de Santo Egídio, bem como a marcha nacional de ontem em Bolonha, promovida pela Conferência Episcopal Italiana, pela Cáritas, pela Pax Christi, pela Ação Católica, pela diocese e pelo município de Bolonha.
A todos agradeceu a presença e o testemunho e augurou um ano de paz na graça do Senhor, com a proteção materna de Maria, Mãe de Deus.
Feliz 2017!

2017.01.01 – Louro de Carvalho

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