Enquanto
países como Portugal inscreveram no seu ordenamento jurídico o princípio da
igualdade fundamental entre homem e mulher e alçam a violência doméstica ao
estatuto de crime público, outros parece que teimam em ficar na mesma ou
pretendem andar para trás.
Na
verdade, o ano de 2017 assinalará o 40.º aniversário da significativa alteração
ao Código Civil, como bem referiu o Presidente da República na sua mensagem de
Ano Novo. Dizia ele que essa alteração, no âmbito do Direito de Família,
estabelece a igualdade de deveres e direitos do homem e da mulher perante a
lei.
Obviamente
que o Presidente na sua mensagem não iria alongar-se em pormenores, mesmo que
importantes. Mas é de todo conveniente recordar alguns.
Desapareceu
a figura do chefe de família, corporizada na pessoa do marido e supletivamente
na da mulher quando aquele estivesse embarcado ou tivesse falecido.
Com
efeito, o decreto-lei n.º 496/77, de 25 de novembro – que entrou em vigor no
dia 1 de abril de 1978, juntamente com o decreto-lei n.º 51/78, de 30 de março,
que aprovou o Código de Registo Civil, em vigor até 1995 – traz importantes
inovações. Os deveres e os direitos dos cônjuges são iguais, a responsabilidade
entre si é igual como o é a responsabilidade para com os filhos. A maioridade é
atingida aos 18 anos, o que já tinha sido antecipado para a capacidade
eleitoral. Deixa de fazer-se a distinção entre filhos legítimos e ilegítimos. E
a omissão da paternidade (e/ou maternidade da criança) passa a não ser aceite
acriticamente, mas postula obrigatoriamente a conveniente investigação judicial
por todos os meios disponíveis.
Por
outro lado, a idade núbil foi fixada nos 16 anos de idade tanto para o homem
como para a mulher, quando dantes estava fixada nos 16 anos para o homem e nos
14 para a mulher.
Este
ordenamento mereceu críticas de determinados setores basicamente por alegadamente
“desvalorizar” o ato matrimonial e por prever demasiada intromissão dos
tribunais na vida familiar (Resta saber se agora não há caos a
mais decididos fora dos tribunais).
A
isto outros setores opunham que a valorização do ato matrimonial está sobretudo
na liberdade e na consciência responsável dos cônjuges e saudavam a abolição da
distinção entre filhos legítimos e ilegítimos, pois, se algo estava errado nos
progenitores, a culpa não podia continuar a recair sobre a prole.
***
Com
o tempo, foi-se descobrindo que a paz familiar facilmente era perturbada com
ações de agressão e violência doméstica: pai ou mãe sobre filhos, mas sobretudo
marido sobre esposa (situação aplicável a casais a viver em
circunstância análogas).
Também se conhecem casos de violência de mulher sob homem e de filhos sobre pai
ou mãe.
Apesar
de ser muito difícil o combate a tais desmandos, sobretudo pela vergonha da
vítima em apresentar queixa ou pela ineficácia da proibição do contacto do
agressor com as suas vítimas, o alçamento da violência doméstica a crime
público possibilitou que bastasse que autoridades tivessem conhecimento a partir
de fontes fidedignas (por exemplo da vizinhança) para poderem intervir.
O
flagelo vai avançando, mas vai-se combatendo e, sobretudo, a sociedade está,
com repugnantes exceções, eivada da cultura antiviolência doméstica.
***
Entretanto,
sabe-se que a Rússia quer descriminalizar a violência doméstica.
A este
respeito, é de refletir sobre informação de hoje veiculada pelo site esquerda.net.
É sabido
que, na Rússia, 36 mil mulheres são agredidas diariamente pelos respetivos parceiros.
Porém, no passado dia 11, o parlamento russo aprovou uma redução das sanções
para os agressores em casos de violência doméstica. Esta medida legislativa foi
aprovada logo na primeira votação com 368 votos a favor, um contra e uma
abstenção – quase por unanimidade.
Esta
iniciativa não é meramente ocasional ou simplesmente política. Trata-se de uma
opção ideológica, dado que pretende preservar a ancestral “tradição de
autoridade parental”, prevendo que possam ser detidos apenas os homens que
agridam as mulheres mais do que uma vez por ano. A retirada do crime de violência
doméstica do Código Penal implica que as vítimas vão deixar de ter o direito de
apresentar queixa.
A este
respeito, Yelena Mizulina, deputada de extrema-direita do Partido Rússia Justa e presidente da Comissão para Assuntos de Família, sustenta que, “na cultura
familiar tradicional russa, as relações entre pais e filhos são construídas na
autoridade parental”. Por isso, propôs a mudança da lei, pois, “as leis devem
apoiar essa tradição familiar”. E acrescentou que “não queremos ter pessoas
presas por dois anos e rotuladas de criminosos para o resto das suas vidas por
uma palmada”. Ao menos, deveria depender do tipo de palmada. Há palmadas
que são de afeto e não de violência. Assim, Mizulina está a querer tapar o sol
com a peneira
A mesma
deputada foi responsável pela aprovação da legislação contra a “propaganda gay”,
que atenta contra os direitos humanos da comunidade LGBTQI+ do país.
Na Rússia,
40% dos crimes de agressão graves acontecem em contexto familiar e são
agredidas pelos seus companheiros, como se disse, 36 mil mulheres todos os
dias, das quais morrem 14 mil por ano. Além disso, 26 mil crianças são
agredidas pelos pais, em cada ano.
Em 2015, as
Nações Unidas apelaram a que a Rússia atuasse sobre a epidemia de violência
doméstica, com nova legislação e criando abrigos para mulheres vulneráveis.
Ainda assim,
a criminalização da violência doméstica no grande país do leste só ocorreu em
julho do ano passado e, desde então, o partido de Mizulina tem vindo a
protestar contra a predita alteração legislativa.
Esta decisão
de descriminalização da violência doméstica está ser contestada por ONGs e
grupos ativistas de direitos das mulheres.
Na verdade,
custa a compreender que um Estado como este, um dos líderes em forças armadas e
equipamento militar, um dos pioneiros em missões espaciais, com artistas,
cientistas, escritores e atletas tão prendados, regrida em termos
civilizacionais.
A
aquiescência em relação à violência doméstica não pode hoje remeter-se apenas
para o mundo da visão cultural – grupal, étnico e espiritual. É mesmo um fator
e um sintoma de regressão civilizacional e atenta contra a integridade física e
psicológica, condição sine qua não se
pode assegurar o respeito do direito à vida e vida condigna – prerrogativa fundamental
irrenunciável e inalienável.
Com
mentalidade tão retrógrada não se estranhará a eventual falta de escrúpulo no
manuseamento indevido e desproporcionado de armas e outro material mortífero contra
pessoas e bens. Reduzimos as vidas humanas a números e a guarda do Planeta, enquanto
“Casa Comum” a boas intenções hipocritamente enunciadas e subscritas.
Parece ser
tempo de o mundo acordar e criar uma frente de opinião sustentada e firme
contra este tipo de desmandos. Não basta condenar os povos de culturas quase
primitivas que tudo de fazem mal sobre o próximo ou sobre os descendentes para
preservar a honra da família.
Como é que a
família, estribada numa qualquer autoridade parental (aliás,
patriarcal) pode constituir-se em escola de
valores, em área de formação da cidadania, em rampa de lançamento de pessoas
livres, responsáveis e conscientes para intervirem na vida pública e
empresarial?
Certamente que
os erros da Rússia denunciados em Fátima em 1917 – a espalhar pelo mundo – não
se restringem ao comunismo estalinista como alguns sustentavam!
2017.01.13 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário