Desde o passado dia 1 de janeiro, está em vigor, em França, o direito de o trabalhador
se desconectar da sede de informação da empresa ou serviço por cuja conta
trabalha ou de quaisquer tentativas de comunicação da parte de dirigentes. Tal direito
fica reconhecido e o seu exercício estabelecido em virtude duma disposição legal
da reforma laboral que fez estremecer o governo ao ser aprovada em julho passado,
após meses de protestos nas ruas contra outros aspetos mais polémicos desta
medida.
A predita disposição legislativa formula um direito para os trabalhadores e
uma obrigação para as empresas (nomeadamente as grandes empresas), a de regular o uso das tecnologias
da comunicação (mensagens e e-mails ou telefones
celulares, tablets, smartphones, etc.) para garantir o respeito do tempo de descanso e das férias. O Executivo,
no texto que propôs e que Parlamento aprovou, dispensou-se da tarefa de
regulamentar a matéria ao estabelecer que a forma de levar à prática o
estabelecido na lei será obtida pela negociação entre as partes, de modo que as
companhias e representantes dos trabalhadores terão que discutir para chegar a
acordo que poderá ser válido por um ou por vários anos. O objeto de tal
discussão é o elenco das “modalidades do pleno exercício do direito do
assalariado a se desconectar”, bem como “a adoção pela empresa de dispositivos
de regulação da utilização de ferramentas digitais”. E, se as partes não
chegarem a acordo, o empregador deverá elaborar uma “carta” com as regras e endereçá-la
aos seus trabalhadores e aos representantes sindicais.
Todavia, anote-se que, em qualquer
caso, a lei não implica a obrigação de desligar o telemóvel (ou equipamento equiparado) do profissional ao fim da jornada de trabalho, nem o encerramento do
servidor para envio de e-mails profissionais a partir duma determinada hora. A
medida apenas abre as portas para uma regulação, a princípio pactuada, e em
função das necessidades produtivas de cada empresa.
Algumas delas já se anteciparam, como
o é caso da operadora de telecomunicações Orange,
que por força de acordo formalizado no pretérito dia 27 de setembro, solicita aos
seus empregados que estabeleçam tempos de não utilização da sua mensagem eletrónica,
em particular durante as reuniões, para que se mantenham concentrados. Também a
fabricante de pneus Michelin
instaurou “um controlo das conexões à distância” para os seus diretores que
trabalham em caráter itinerante entre as 21 horas e as 7 horas nos dias
laborais e nos fins de semana.
Na conhecida como “lei El Khomri”, pelo
sobrenome da Ministra de Trabalho que a promoveu, Myriam El Khomri, esta
regulação justifica-se pelo facto de as tecnologias da informação e da
comunicação, “se mal controladas, poderem ter um impacto na saúde dos trabalhadores”.
De acordo com um estudo realizado pelo escritório Éléas, especializado em qualidade de vida no trabalho e na prevenção do risco psicossocial, e publicado em outubro, 37% dos trabalhadores utilizam as suas ferramentas digitais profissionais fora dos horários de trabalho, e 62% são a favor duma regulação, que insistentemente solicitavam.
De acordo com um estudo realizado pelo escritório Éléas, especializado em qualidade de vida no trabalho e na prevenção do risco psicossocial, e publicado em outubro, 37% dos trabalhadores utilizam as suas ferramentas digitais profissionais fora dos horários de trabalho, e 62% são a favor duma regulação, que insistentemente solicitavam.
Entre janeiro e julho de 2017, a “lei
El Khomri” foi pretexto para um duro enfrentamento de rua entre os sindicatos
que a apoiam (sobretudo a CFDT) e os que a criticam (CGT e FO essencialmente). Na Assembleia Nacional, o embate foi vivo entre o governo e uma parte da
esquerda (inclusive um grupo de socialistas “rebeldes”). Porém, a polémica não advinha do “direito
à desconexão”, que não concitou controvérsia, mas da introdução de maior
flexibilidade laboral e da iminente possibilidade de fazer surtir uma mudança
nas regras da negociação coletiva, dando primazia aos acordos dentro da empresa
sobre os convénios setoriais e sobre a lei. Com efeito, a lei vem incluída num pacote de
reformas nas leis laborais que torna mais fáceis a redução dos salários e de
postos de trabalho
Com esta medida legislativa, a França deu o exemplo e a discussão alastra
para outros países. Também em Portugal há quem defenda que a lei consagre o
direito a não aceder ao e-mail ou não atender chamadas fora do horário de
trabalho. Em tese, o princípio parece óbvio e evidente e configura um direito
que não pode ser negado. Na prática, o direito à desconexão insere-se num
contexto e numa dinâmica, criados à revelia da lei, que abrem caminho a
horários semanais superiores ao anterior limite (40 ou 35 horas). Além disso, em França, a lei é apenas
aplicável a empresas com 50 ou mais trabalhadores e a forma como se efetiva é
remetida para negociação coletiva e não prevê sanções em caso de desrespeito. Assim,
dificilmente se compreende que seja uma verdadeira lei, já que não dispõe de
força coativa.
***
Falei acima de contexto e dinâmica, criados à revelia da lei. Na verdade, o
nosso país, como outros países civilizados, têm no seu ordenamento jurídico a
lei geral do trabalho e leis setoriais que regulam as relações laborais, nomeadamente
direitos e deveres dos trabalhadores, direitos e deveres dos empregadores,
condições de trabalho (horário, períodos de descanso, faltas e
licenças, higiene e segurança, medicina do trabalho, acidentes de trabalho,
contratação, regime disciplinar, etc.). Há agora o código do trabalho e a lei geral do trabalho em funções públicas
– já com diferentes versões.
Além disso, há o regime normal do horário de trabalho e o regime de turnos.
As condições de trabalho, incluindo as do horário, podiam ser alteradas ou por
acordo entre as partes ou por urgente conveniência de serviço. E, sobretudo, na
administração pública havia prazos devidamente estabelecidos, apenas
ultrapassáveis em situações de manifesta e justificada urgência e em situações-limite
desde que houvesse garantias de que os convocados tinham conhecimento da convocação.
Depois, havia a entidade fiscalizadora das condições de trabalho.
E o que se passou foi que as empresas e serviços (mesmo do Estado) abusaram das facilidades que as atuais tecnologias possibilitam. E os
trabalhadores, sobretudo se lhes foi dado um telemóvel ou equipamento
equivalente, Internet e serviço de e-mail, passaram a ser bombardeados com
informação a toda a hora, de noite e de dia, no horário e fora do horário, no
turno e fora de turno, nas férias e fora das férias, na semana e fora da
semana, na doença e na saúde. E o pior é que a maior parte da informação traz agregada
a si ação e ação imediata. Vem de colegas e de chefias, da empresa ou serviço e
de clientes! Na maior arte dos casos, o trabalho tornou-se, não um dever, não
um direito, não um meio de dignificação da pessoa humana, mas um inferno!
Em muitas profissões encontram-se elevados níveis de burnout (esgotamento físico e
emocional). E a degradação do mercado de trabalho, a precariedade, as taxas de
desemprego e o custo de vida levam muitos trabalhadores a aceitar condições de
trabalho à margem da lei. E, em situações destas, nem a aceitação do trabalho
em condições não legais nem a desconectividade constituirão vias razoáveis e eficazes
para a conquista do direito ao trabalho e do direito ao trabalho em que os
períodos de repouso sejam respeitados. Não é por lei não coativa que se resolvem
problemas que são vincadamente comportamentais e/ou culturais.
Nos últimos anos, generalizou-se a aceitação voluntária de prolongar o
trabalho para o tempo de lazer, esbatendo fronteiras que sempre existiram para
proteção dos trabalhadores. Invoca-se a coação, por vezes subtil, decorrente da
degradação da oferta laboral e da postura tiranizante de empresários e
dirigentes. Mas essa é apenas uma fração da realidade. A atenção permanente ao
telefone e ao e-mail é sintoma da priorização atribuída a uma carreira de
sucesso. Existe em paralelo com a vontade de atingir objetivos por parte dos
trabalhadores e das empresas e serviços, de responder a desafios, de conquistar
prémios de desempenho. Existe devido à angústia de falhar, que se instalou paulatinamente
nas pessoas.
Não foi a lei que obrigou os trabalhadores à disponibilidade permanente.
Nenhum diploma legal os tornou mais autómatos e menos humanos. De algum modo, a
meio do percurso, se deu ao trabalho uma dimensão que ele não merece:
abandonou-se a visão do emprego como uma componente entre muitas da vida e
deu-se-lhe o estatuto de fator crucial para a vida – e, com isso, esta torna-se
mais agitada, pesada e escravizante. É menos vida. Assim, também não será a lei
que ensinará a desligar o telemóvel e a retirá-lo da mesa da refeição. Não será
a lei que retirará as máquinas de rotinas e espaços que antes eram humanos. A
tecnologia e os hábitos de permanente conectividade colocaram aos trabalhadores
desafios vitais no sentido da alteração da forma de viver, estar e agir. Esta é
agora a questão decisiva que ter de se aceitar discutir em nome da dignidade humana.
***
Qual é o impacto
do “direito a estar desligado”? A questão é saber se a restrição de
acesso pós-laboral ao correio electrónico aumenta ou reduz a produtividade nas
empresas e serviços.
Em França, a lei estará a ser
ignorado por muitos trabalhadores e nos EUA é ridicularizada, mas responde a um
problema com que muitos empregados e empregadores têm de lidar.
Os especialistas dizem que as mensagens
de correio electrónico que chegam de noite, ao fim de semana ou nas férias
podem gerar stresse e afetar a vida familiar. Por outro lado a cultura do “sempre
ligado” pode ter impacto na produtividade a longo prazo, porque os
colaboradores não têm oportunidade de descansar e recarregar energias.
Por exemplo, o fabricante de
automóveis alemão Daimler, por esta razão, criou um recurso opcional, o “Mail on Holiday” (disponível para 100 mil trabalhadores
na Alemanha), que apaga automaticamente
os “emails” chegados durante as pausas. E mensagem de resposta automática dá
aos remetentes contactos alternativos ou sugere o reenvio da mensagem após o
retorno dos colaboradores – evitando o congestionamento das caixas de entrada, aliviando
a pressão de ter de ler mensagens nas férias e oferecendo a caixa de entrada
vazia no regresso do colaborador.
Dada a aceitação difícil da reforma
laboral em França, foram incluídos alguns ‘mimos’”, entre os quais se inclui a
“lei do direito de se desligar”. Porém, desconectar-se não é uma opção quando
se está a falar do trabalho com o cliente.
A alteração das leis laborais em França
visava ajudar a reduzir 10% a taxa de desemprego. Mas, James W. Gabberty,
professor de sistemas de informação na Universidade de Pace em Nova Iorque, diz
que a regra do email só vai prejudicar a produtividade. A inspiração não se
cinge ao horário laboral, explica Gabberty, mas “depende do pensamento criativo
espontâneo” que pode incluir aqueles “fugazes momentos de puro génio” num
email, mesmo que ocorram depois do jantar ou durante a noite”. E as empresas
merecem o génio do trabalhador?
Por sua vez, William Becker,
professor associado de Gestão da Virginia Tech, diz que os gestores pensam no
impacto de curto prazo na produtividade com a discussão do correio electrónico no
fim de semana, mas, “a longo prazo, o custo acaba por afetar todos”. Com efeito,
as pessoas não são capazes de se desligar do trabalho e recuperar, se estão a
gastar o tempo livre a trabalhar. Os trabalhadores ficam exaustos e desinteressados
do trabalho. Criam-se problemas familiares e o trabalho torna infeliz o
trabalhador. E a “desconexão” é difícil, mercê de hábitos adquiridos, em
especial em pessoa que trabalhe em regime de trabalho independente. Ora, dos
trabalhadores que verificam o correio eletrónico durante a noite e aos fins de
semana, muitos resignam-se a aceitar que aquele é um requisito inerente ao seu
emprego.
***
E assim se perde
tempo com uma lei inútil e de efeito perverso, só porque os Estados deixaram de
fazer a regulação e de zelar por que ela fosse cumprida; as empresas quiseram
tudo; e os trabalhadores não souberam fazer ouvir a sua voz de cidadania atempadamente.
Fruto do capitalismo selvagem e da fraqueza do poder do Estado?
Porém, é
preciso recuperar a mística e a espiritualidade do tempo livre para não se
transformar o homem em autómato a degradar-se continuamente.
2017.01.09 – Louro de Carvalho
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