quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Em português, há erros que o são e erros que não o são

Alguns críticos armam-se em puristas da língua portuguesa e, tal como veem erros onde eles estão, também os veem, por vezes, onde eles não estão. Esquecem-se de que a estrutura da língua e a sua idiossincrasia incorporaram (a princípio talvez com erro) aspetos desviantes, redundâncias, alterações fonéticas, mudanças semânticas, analogias, divergências, convergências, homonímias, homografias, homofonias, realizações da mesma ideia com palavras semelhantes duplas grafias. Mas o uso – universal, regional, local e da diáspora – legitimou tais realizações. E os casos são inúmeros!
Por exemplo, “istud”, no latim, significa “isso”, mas deu origem, em português, a “isto”. “Connosco” é redundância, pois, “nobiscum” deu origem a “nosco”, que já continha a ideia de companhia ou concomitância com as nossas pessoas: “cum” acrescentou-se, ao princípio de “nosco”, como reforço, redundância. “Videre” deu “ver”, por força de várias alterações fonéticas (apócope, síncope, assimilação vocálica e crase). “Ministrum”, que significava “servo”, passou a designar um membro do governo, que recebe o tratamento de Excelência. “Videbamus” e “videbatis” fizeram “víamos” e “víeis”, com acento tónico em “vi”, por analogia com as formas anteriores do mesmo tempo verbal. “Macula” deu as divergentes ou alótropas “mácula”, “mágoa”, “malha” e “mancha”. “Sunt”, “sanctum” e “sanum” deram por convergência, respetivamente, “são”, do verbo “ser”, abreviatura de “santo” e adjetivo que significa “sadio” e “saudável”. Por homonímia, temos “canto” da sala e “canto” do grupo coral. Por homografia, temos “fora” (advérbio) e “fora” (forma verbal do verbo ser e do verbo ir). Por homofonia, temos “caçar” (apanhar, capturar) e “cassar” (anular, quebrar). As cavidades da parte inferior do corpo humano realizam-se lexicalmente em “abdome” ou “abdómen”, como “comprovativo” e “comprobativo”. E há dupla grafia em palavras como caraterística e característica.   
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Alguns, enquanto corrigem – e bem – erros frequentes, como de “rúbrica para” “rubrica”, sempre e nunca “rúbrica”, “pudico” e não “púdico” e ir à escola, mas anos que não te vi, não podem corrigir “tens que fazer” (no sentido de deves fazer) ou “quero-vos contar” (por “quero contar-vos”) e não podem obrigar-nos a dizer “homília” ou “diócese”. “Ter que fazer” tanto implica estar ocupado, como ter o dever de fazer qualquer coisa (equivalendo a ter de fazer, mais imperativo que dever fazer). Homília e diócese respondem melhor à etimologia, mas o uso estabilizou “homilia” e “diocese”.
Ora, as hipercorreções, sobretudo quando feitas de forma desabrida, intempestiva e sem margem para dúvidas ou discussões, são erros de português que prejudicam todos os falantes da língua, ao passo que os erros normais (e os erros de sintaxe são os mais graves) quase só prejudicam o infrator.
Assim, corrigir alguém sem razão e malcriadamente será pior do que dar um erro ortográfico, pois os erros falsos limitam a língua e estragam-na para todos. Pessoalmente, gosto de colocar a preposição “de” sempre que o verbo a rege, mas não posso esquecer que a sua omissão antes de “que” mais não significa que um fenómeno denominado “queísmo”, legítimo no português e frequente, por exemplo, em Aquilino Ribeiro, como o uso não abusivo da sequência “de que” se chama “dequeísmo”, de não se pode abusar. Nunca digam: “Penso eu de que…”.
Algumas pessoas rejeitam determinadas expressões e palavras (por exemplo, “implementar”) com o argumento de que não existem, porque não vêm no dicionário. Esquecem que o dicionário não contém as palavras todas; e o que importa é que sejam formadas de acordo com as regras de formação das palavras. Porém, aceitam “oftalmologia”, que devia ser a ciência sobre os olhos, quando o que o que ela faz é o tratamento dos olhos. Devia ser “oftalmiatria” e o profissional devia ser “oftalmiatra”. Não sei se o ginecologista percebe mesmo de mulheres, mas sei que percebe de “giniatria” e, por ser “giniatra”, trata das doenças das senhoras. Ou alguém pensa que o ortopedista tem como tarefa endireitar ou educar as crianças. Porém, “ortopedia” vem de duas palavras gregas: “orthós” (reto, direito) e “paideia” (educação, em que entra a palavra pais, paidós – que significa “criança”). E “clicam” no computador e usam o “rato”; tiram fotos, usam micros e pesam em quilos. É que o uso impôs-se! Ademais, Gramática e dicionário são mais instrumentos de descrição da Língua que decretos normativos. Há jornalistas e conferencistas que, nas suas peças, usam determinadas palavras. Ora, se os revisores as substituem porque lhes parecem impróprias, o sentido fica alterado e empobrecido. Já ouvi conferencistas a desdobrar palavras e a explicar propositadamente o sentido que lhes querem atribuir hic et nunc.
Há que dizer claramente que, por norma, quem acicata o medo linguístico enclausura o seu discurso num puritanismo desastrado, em que tudo é erro e tudo constitui degradação da língua e decadência dos costumes. Aliás, muitas vezes, o discurso sobre a língua é o último reduto dum certo moralismo barato que levou muitos a acusar a música e o divertimento de sintomas da decadência e como razão para grandes catástrofes como o terramoto de 1755. Por outro lado, muitos dos falsos erros surgem da insegurança que muitos sentem e da genuína preocupação em não errar. Assim, todos podemos cair em hipercorreções já que todos sentimos, de alguma forma, certas inseguranças. Por isso mesmo, a prudência dita a cautela. Antes do tiro da correção, devemos ter o bom senso do uso da dúvida, sempre tão benéfico.
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Os principais temores de quem escreve português
Podem sintetizar-se em oito: o purismo; a ambiguidade; a falta de lógica; o português dos outros; a redundância; o “assim e assado”; as palavras mutantes; e o apocalipse.
1. O purismo. É o exagero ou servilismo na pronúncia: feminino, definido ou ministro, que na realização oral se aproximam mais de feminino, defenido ou ministro. Por isso, também dizem minino e minina. Esquecem as diferenças entre o código oral, extenso, e o código escrito, mais limitado; e não admitem a legitimidade do “betacismo” nortenho (confundimos o b e o v).
2. A ambiguidade. Há frases ambíguas, o que pode configurar um grande erro. Mas a ambiguidade não existe numa regra ou palavra em abstrato, mas em cada frase em particular. E ela desfaz-se habitualmente pelo contexto.
Dizer “a gente” como sinónimo de “nós”, desde que não de forma recorrente, é legítimo. Dificilmente se confunde com o segmento “a gente que está ali acima”. Não podemos dizer “a gente vamos”, mas “a gente vai”. É uma questão de sintaxe, tal como não se deve dizer “Abram os vossos livros!”, mas “Abri os vossos livros!” ou “Abram os seus livros!”. Misturar a 2.ª com a 3.ª pessoa gramatical é inconsequente. Todavia, se o uso vier a legitimá-lo, que fazer?
Dizer “não há nada” não é erro embora certos textos filosóficos sobre lógica possam considerar o segmento ambíguo. A dupla negativa é legítima em português como em francês. Não tenho nada – disse-se. Antigamente, dizíamos “No ei ren”, como os franceses dizem “Je n’ai rien”. E se eles dizem, “Je ne sais point”, também nós dizemos, “Não percebo puto disto”.
Se quiséssemos mesmo eliminar todas as palavras ou construções que permitem ambiguidades, teríamos de dissecar a língua quase toda e matá-la-íamos. Por exemplo, a palavra “seu” dá origem a ambiguidades: se dissermos “o Manuel discutiu com a Maria o seu problema”, referimo-nos ao problema do Manuel ou da Maria? A frase é ambígua; e, se não quisermos manter a ambiguidade, devemos alterá-la. Mas não podemos extrapolar para banir “seu”.
Às vezes a ambiguidade desfaz-se com uma simples preposição. Por exemplo: “Matou José João”. Confuso, incompleto, ambíguo? Tudo se resolve se dissermos: “Matou José a João”.
Já agora, que pretendem dizer quando empregam a palavra “céu”? Pelo contexto se percebe claramente se é do céu dos pardais, do das estrelas ou do dos bem-aventurados que se trata.
3. A falta de lógica. É o pretexto de tantos inventores de erros. Não é lógico dizer: “espaço de tempo”; “saudades tuas”; “não há nada”; “isso não é verdade”… O pretexto da falta de lógica deriva da contrariação da lógica ou da dupla negação.
Sobre a dupla negação já se disse algo. Resta acrescentar que dela não se deve abusar, evitando o reforço da negação (embora legítimo) “nunca jamais em tempo algum”. Repare-se na legitimidade ilógica de “fiz isso de modo algum” (afirmativa) e “de modo algum teria feito uma coisa dessas” (negativa), bem como a afirmativa que está a entrar em uso: “não posso estar mais de acordo”. Nem sempre os desígnios da lógica e as vicissitudes da gramática coincidem. Quantas vezes não se distinguiram sujeito lógico e sujeito gramatical?
Se quisermos ir pelo lado da lógica, qual é a lógica de termos três conjugações (-ar, -er, -ir), verbos irregulares e verbos defetivos. A língua não foi criada por decreto, a partir do trabalho de comissões de especialistas; cria-se de forma natural e imprevisível, acabando por ser um sistema complexo de signos, difícil de arrumar em explicações fáceis.
Pensando no “não há nada”, que alguns consideram ilógico, convém assegurar que nada existe na língua que obrigue a fazer cálculos lógicos de partículas negativas em que duas partículas negativas se anulam uma à outra ou se mitigam (isso sucedia no latim literário e jurídico). Não é assim que as nossas línguas funcionam. Isto não quer dizer que pensamos mal. A sintaxe complexa da língua pode e deve ser usada para expressar um pensamento que se quer lógico e claro, mas não se pode inventar uma língua que não existe.
Em vez de arrumadores de regras que imponham forçadamente à língua uma lógica artificial – não se gosta de “o último livro do autor” (porque parece que o autor já morreu), não se concorda com o “espaço de tempo” (porque não é lógico misturar os dois termos e não é possível voltar atrás no tempo) –, deveremos olhar com respeito para a língua e tentar pensar de forma cada vez mais lógica. Porém, não poderemos confundir lógica do pensamento com a gramática do português.
4. O português dos outros. Quem estranha ou rejeita formas populares ou regionais da língua só pode estar a revelar que receia a maneira como certas pessoas falam. Arma-se em dono da língua, fazendo crer que é na região x ou y que ela e mais bem falada. Esquecem a existência de hábitos diferentes em sítios diferentes do país, em classes sociais diferentes, em idades diferentes – ao nível da prosódia e pronúncia, do uso vocabular e na sintaxe. Há até populações onde se fala como que a cantar. Todas estas formas têm algumas diferenças e convém aceitá-las, mesmo que a norma-padrão, em muitos contextos, detenha o primado.”
Depois, há o receio de abrir a porta aos bárbaros. Diz-se que, se aceitamos, por exemplo, o verbo “deslargar” aceitamos tudo. O prefixo “des-” reforça-lhe o sentido como em “desinfeliz”.
Com efeito, a língua tem palavras, tem regras – um pouco mais complexas do que algumas pessoas pensam. E não aceita tudo. Mesmo sem a lógica rígida, existe uma certa lógica, a da expressão, de acordo com a necessidade sentida em determinadas situações.
É claro que não nos pomos a dizer “prontos”, “portantos”, “finalmentes” e “tu fizestes” e “vós fizésteis”. Ninguém obriga ninguém a dizer seja o que for. Quanto a essas palavras e expressões perigosas, até podem ser aceitáveis numa peça de teatro ou numa narrativa novelesca, quando estamos a caraterizar uma personagem, mostrando-a num contexto muito informal. Fora disso, dificilmente serão aceitáveis numa publicação. E, se aparecem em textos informais, muito raramente surgem em textos revistos e publicados.
Também não vale a pena aduzir que, se usamos palavras informais nos jornais ou nos livros, estamos a dizer às pessoas que são aceitáveis em qualquer situação”. Na verdade, qualquer pessoa, mesmo analfabeta, sabe que se fala de forma diferente num tribunal ou numa festa. Às vezes, até nos dizem que não sabem falar ou que não sabem falar com determinadas pessoas.
Os jornais são caso curioso de exposição a vários registos e onde o registo popular tem lugar recorrentemente.
5. A redundância. As línguas, como qualquer sistema natural, estão cheias de redundâncias. São os dois olhos, os dois ouvidos, as duas bochechas, as duas mãos, os dois braços, os dois cotovelos, os dois punhos, os dois rins, os dois pulmões, os dois testículos ou os dois ovários, os dois pés, os dois joelhos, as duas rótulas, os dois quadris, as duas coxas, as duas pernas, os dois tornozelos: temos muita coisa a duplicar. Até o cérebro sobrevive a alguns acidentes em que desaparece uma parte (mas não é conveniente o abuso). Como somos organismos muito redundantes, a língua é também muito redundante. A redundância é o preço a pagar pela sobrevivência durante mais tempo. Podemos viver só com um rim, só com pulmão, só com um testículo, só com uma parte do cérebro, mas não é a mesma coisa. É mais perigoso.
Ora, quem odeia redundâncias também as utiliza: “Sim, vamos nós!”. “Ele vai!”. Para que está ali o pronome pessoal? E, como se referiu acima, palavras como “comigo”, “contigo”, “consigo”, “connosco” e “convosco” são redundantes. “Migo”, “tigo”, “sigo”, “nosco” e “vosco” faziam o mesmo com menos trabalho. Aliás, se até podemos até “rtirar algmas ltras e contnumos a comprendr o q escrvemos”. A informação dessas letras parece ser redundante.
Não podemos criar uma língua otimizada, sem redundâncias, pela simples razão de que, se nem sempre falamos nas melhores condições, a língua se desdobra em palavras ou sílabas a mais. Depois, porque, às vezes, queremos sublinhar alguma coisa, aparecem mais palavras e mais sílabas. Por isso, acabamos por dizer: “traz-me isso a mim!”. Dizemos até “subir para cima da mesa”; “há cinco anos atrás”; e “eu vi com estes meus dois olhos que a terra há de comer” (E que bem que fica este reforço da ideia”). Já agora diga-se que também se desce para cima: A namorada, que estava em cima da árvore, tinha medo de descer, pelo que o namorado, ajeitando-se, lhe disse: “Desce para aqui para cima do meu ombro!”.
Os puristas da língua dizem, de imediato, que se trata de erros. Esquecem que não há comunicação senão em situação. É erro porque, às vezes, estes receios vencem mesmo. “Há x anos atrás” é uma forma a evitar, mas apenas por causa desse desprezo nascido do medo, desprezo que não passa de moda aleatória que pegou, perante essa outra moda ou tendência que é pôr o “atrás” à frente dos anos (ou dos meses, das horas, dos minutos, dos segundos…). Podia ser moda, por exemplo, dizer que os pronomes pessoais antes do verbo são sempre redundantes. Mas ainda ninguém se lembrou dessa e teríamos que censurar os franceses por usarem quase sempre o pronome pessoal sujeito junto ao verbo.
Porém, há erros a sério em: “*à dois anos atrás”; e “*há dois anos em trás”. Ninguém pode escrever “*à dois anos atrás” e afirmar que não é erro, dado tratar-se do presente do indicativo do verbo “haver” (forma impessoal, com sujeito nulo e expletivo), diferente de “vou à feira”, contração da preposição “a” com o artigo “a”. Mas, em “*há dois anos em trás”, o português não funciona. Se um estrangeiro dissesse isto, daria um erro; se um português, de repente, se lembrasse de dizer isto, também incorreria em erro, a menos que tal construção começasse a ser usada de forma sistemática por grande parte da população, pois o uso dos falantes do português é o grande critério. Com efeito a norma anda devagar, mas anda, não está parada.
6. O “assim e assado”. É fácil de explicar este receio. Acham alguns que a língua de deve limitar ao mínimo indispensável. Se duas construções querem dizer a mesma coisa, há quem ache que só uma pode estar correta. Ora, não é assim. Se duas ou mais construções similares estão corretas, elas são legítimas. Pode-se dizer “Isso é verdade?”; “Isso é verdadeiro?”; “Quero um copo com água!”; “Queria um copo de água!”.
A propósito de “Queria um copo de água!”, se me replicam, “Queria, mas já não quer!”, não me contenho que não refile esclarecendo que estava a usar uma forma de tratamento delicado que o interlocutor afinal não merecia.
Seria paupérrima a língua que tivesse de se cingir a uma única forma de expressão para qualquer realização externa da mesma ideia. Se só pudesse ser assim ou assado, coitados dos escritores sujeitos ao fascismo totalitarista da expressão! Ora, há formas preferenciais de elocução, há formas de falar típicas de cada pessoa, há expressões mais informais, menos informais, há tudo e o seu contrário. A língua dá-nos tudo e mais do que precisamos. E ainda bem.
6. As palavras mutantes. Há quem receie as palavras que mudam. Ora, as palavras não passam de instrumentos da expressão e compreensão. Como tais, podem sofrer aumentos, reduções, alterações, junções e mudança de função – e obviamente de significado. De resto, como se explicaria a transmigração de estratégia, objetivo e tática do campo militar para os da economia, pedagogia e gestão? Ou o de rato, da zoologia para a informática? Ou como se justificaria a derivação não afixal (de “trabalhar” para “trabalho”) ou a conversão (de “rosa”, flor, para “Rosa”, senhora)?
Felizmente, as palavras mudam de forma muito mais lenta nos registos formais. E é bom que certos aspetos se mantenham estáveis, como a ortografia, que muda só com as determinações do poder político. Mas a língua muda. Todas as línguas mudam. E este facto vital não nos torna incapazes de ler textos mais antigos (afinal, naturalmente, a língua escrita muda de forma mais lenta), com outras grafias e caligrafias e noutros materiais, até com ortografias sincréticas (em que no mesmo texto a palavra se escreve de maneiras diversas. Ex: ei, ey, hei, hey, ai, ay, hai, hay – a significar “tenho”).
Veja-se que a palavra “parvo” era “pequeno”, em latim, e “parvulus” era pequenino. E até uma consoante que veio do passado se elimina: “septembro” ficou “setembro”. Porque é que “ator” tem de ser “actor” só para garantir a abertura da vogal antecedente?
“Puxar”, na expressão “puxar o autoclismo”, hoje significa simplesmente “carregar no autoclismo”. “Raispele a língua!”, diriam na minha terra. “Tirar/colher impressões digitais” não é tirar algo a alguém, como “fazer a barba” não implica fazer, mas cortar ou como “ficar com o cabelo cortado” é deixá-lo no barbeiro, no chão. E todos percebem e usam estas expressões da língua. Mais: uma palavra pode ter significados múltiplos. Daí, o seu campo semântico. Por exemplo, a palavra “mão” significa extremidade de membro superior ou de membro anterior, ajuda, proteção, amparo, força, grupo de homens armados, aplicação de tinta, ato impróprio.
Palavras antigas, às vezes, apanham outro significado na boca dos mais novos. “Brutal”, “bestial” ou “podre” é uma coisa em textos formais ou nos lábios dos mais velhos e é outra, completamente diferente, na boca dos mais novos. Mas o contexto tudo esclarece.
8. O apocalipse. Receia-se o fim da civilização através da desagregação da língua portuguesa ora tão maltratada, porque supostamente o português deixa de ter regras.
Ora, mesmo que os dicionários e as gramáticas escritas desaparecessem e tivéssemos muito maior dificuldade em ler e em definir o que é a norma-padrão, a língua continuaria repleta de regras e exceções, lentos movimentos de mudança, dialectos, palavras com significados subtis e plurissémicas. Os dicionários, as gramáticas, vocabulários e prontuários – são tudo formas de estudar a língua e de a radiografar ou ecografar o melhor possível, com uma ou outra tentativa de impor esta ou aquela regra de etiqueta (que os falantes seguem ou não por motivos quase insondáveis). Todavia, não são os dicionários e as gramáticas que fazem a língua. Ajudam a estabilizá-la e a normalizá-la, mas sobretudo descrevem-na. Tanto assim é que já estão dicionarizadas palavras e expressões que, há uns anos a esta parte, ninguém pensaria ver nos dicionários, mas remetidas para a gíria ou para o calão (Creio não ser necessário apresentar exemplos!). No entanto, nem tudo o que vem no dicionário é utilizável a esmo. Apesar de lá virem palavras como ladrão, cão, assassino…, ninguém aceita ser tratado como ladrão, cão, assassino…
Todas as línguas, mesmo as de povos escondidos em obscuras florestas ou na penumbra do tempo, têm regras e regras bem complexas. As línguas dos países com uma cultura mais complexa não são melhores nem mais completas: têm, quanto muito, maior amplitude vocabular porque são usadas para falar de mais assuntos. Mas as regras gramaticais não são mais subtis ou mais complexas. Mais: as regras que vêm enunciadas nas gramáticas constituem quase sempre simplificações e tentativas de apanhar essa abelha rainha gigante que é a língua e que raramente se deixa apanhar por completo.
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Quem receia o purismo ou por ele se deixa levar tem de descontrair e tornar-se mais natural.
Quem receia a ambiguidade deve reler o que escreve, tentar encontrar ambiguidades e desfazê-las se o contexto não se relevar suficiente. Se o contexto se revelar suficiente, deve dar-se valor à ambiguidade. Que seria o homem sem os seus enigmas?
Quem receia ser pouco lógico deve esforçar-se por pensar cada vez melhor, mas usufruir das potencialidades que a língua lhe oferece. Banir esta ou aquela construção deste bicho muito natural e caótico, que é a língua, não ajuda nada na tarefa difícil de pensar e dizer bem. Ademais, é preciso olhar para o uso concreto da língua e tentar descobrir o sentido oculto das palavras e das frases.
Quem receia o português dos outros deve ficar a saber que a língua é património da comunidade, sem que alguém possa arvorar-se em seu dono. Todas as línguas são faladas por muitas pessoas. E há pessoas diferentes, profissões diferentes, classes e grupos sociais diferentes, regiões diferentes, hábitos diferentes. Não é desejável viver num país onde todos falem do mesmo modo como não é desejável viver em país em que todos usem a mesma roupa.
Obviamente, temos regras de etiqueta e de tratamento e teremos de utilizar um registo cuidado de língua para não ferirmos suscetibilidades e mostrar que detemos o mesmo património linguístico e cultural, a que pertencemos. Somos a mesma comunidade. Mas há falhas, porque há muitos contactos entre pessoas diferentes (houve tempos em que a sociedade estava mais separada em compartimentos simples…). Porém, com falhas e desentendimentos, um pouco de tolerância não faz mal a ninguém. E é útil aprender e usar da diversidade que outros trazem ao património comum.
Quem receia as redundâncias deve saber como as redundâncias, em tudo o que é natural e orgânico (como as línguas), são mais do que toleráveis: são essenciais e provam a robustez e a antifragilidade dos sistemas.
Quem receia as alternativas na língua cuide em não querer ficar com uma língua mais pobre.
Quem receia a mudança e lhe resiste não pode almejar o uso da língua tal como existia nesses tempos áureos, que nunca existiram. A língua, embora corpo vivo, nunca deixou de ser instrumental. Está em permanente mutação, porque não é um fim em si.
Quem entra em pânico com a iminência do apocalipse deve tomar consciência de que o mundo ainda não acabou. Não acabou para todos, mas todos os dias acaba para algumas pessoas. Ora, deve usar-se a língua para falar, ler e escrever – para viver.
Quem se deixa levar por estes receios inúteis e irritantes presta mau serviço à língua e aos falantes. Ora, é preciso usar a língua sem medo de a usar, é preciso ginasticá-la, ouvi-la, ler muito e cada vez mais, treinar continuamente, escrever; ler diferentes textos, diferentes registos; falar; usar a língua de forma criativa; explicar o que for preciso; escrever o mais e o melhor possível.
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Formação de palavras.
Para a formação de palavras, há processos morfológicos e processos irregulares. Nos primeiros enquadram-se a derivação e a composição.
A derivação é o processo que resulta ordinariamente da associação de afixo derivacional a uma forma de base. Pode ser derivação por prefixação (associação de prefixo a uma forma de base – ex: infeliz) ou derivação por sufixação (associação de sufixo a uma forma de baseex: facilitar). Pode ser derivação por parassíntese (associação simultânea de prefixo e de sufixo a uma forma de baseex: amanhecer) ou derivação por prefixação e sufixação (associação não simultânea de prefixo e de sufixo a uma forma de baseex: infelizmente). Há ainda a derivação não afixal (criação de nomes a partir de verbos – ex: desabafo, do verbo desabafar, e pesca, do verbo pescar) e a derivação por conversão (mudança de classe ou de subclasse de palavra, sem alteração da forma – ex: o comer, Rosa).
A composição é o processo de formação de novas palavras que resultam da junção de mais que radical ou palavra – duas formas de base. Nestes termos, temos a composição morfológica (formação de palavra a partir de um radical e uma palavra ou a partir de dois radicais – ex: agricultura, psicologia; biblioteca, democracia, luso-descendente) a composição morfossintática (formação de palavra a partir de duas ou mais palavras – ex: couve-flor, guarda-chuva; arranha-céus, água de colónia).
Os processos irregulares de formação de palavras são relativamente recentes no âmbito do ensino do português. Apenas o termo estrangeirismo, agora empréstimo, surge na Nomenclatura Gramatical Portuguesa, ainda que outros, como sigla e acrónimo, façam parte da tradição gramatical. No Dicionário Terminológico surgem no domínio da Lexicologia. São eles:
- O empréstimo (antes estrangeirismo) – transferência de uma palavra de uma língua para outra – ex: futebol, scanner, surf;
- A extensão semântica – alargamento do significado de uma palavra – ex: navegar (na Internet), portal, rato, ambiente;
- A amálgama – criação de uma palavra a partir da junção de partes de duas ou mais palavras – ex: informática (informação automática);
- A truncação – criação de uma palavra a partir do apagamento de uma parte da palavra de que deriva – ex: moto(cicleta), foto(grafia), micro(fone), micro(rradiografia), quilo(grama);
- A sigla – termo formado pelas iniciais das palavras que lhe deram origem e que se pronuncia letra a letra – ex: IRS (Imposto sobre o Rendimento Singular); PSP (Polícia de Segurança Pública);
- O acrónimo – termo formado pela junção de sílabas ou letras iniciais, lendo-se como se fosse uma palavra – ex: Iva (Imposto sobre o valor acrescentado).
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Constituição da língua
Dizer que o português veio do latim é pouco. De facto, o latim vulgar e popular falado pelos soldados e funcionários romanos entre nós é o elemento fulcral da língua portuguesa. Mas também então persistiam palavras, embora menos, das línguas autóctones e das dos povos que visitavam a faixa ocidental da Península. Depois, vieram as influências árabes e bárbaras. E o latim eclesiástico condicionou a formação lexical do português e alguns dos seus ritmos.
Porém, o século XVI abriu uma nova e decisiva fase da constituição da língua, com o latim clássico e o grego clássico a eivarem a cultura renascentista e a formar as categorias científicas e técnicas, por um lado, e a diáspora portuguesa, com novas realidades e novas palavras, por outro. Além disso, nunca mais as culturas europeias, orientais e ocidentais – da Europa, Ásia, África e Américas – deixaram de influenciar o português, tornando-o a base (não o todo) da lusofonia.
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Eis algo da riqueza inesgotável da língua portuguesa, com regras e exceções – influente e influenciada –, mas sobretudo repleta de complexidades e cumplicidades, subtilezas e liberalidades.

2017.01.04 – Louro de Carvalho

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