No passado dia 8
de janeiro, domingo da solenidade da Epifania do Senhor, a ex-deputada ao Parlamento
Europeu e professora catedrática Maria do Céu Patrão Neves proferiu, no
Santuário de Fátima, no âmbito do sétimo ciclo de conferências organizadas pelo
Santuário da Cova da Iria para celebrar o Centenário das Aparições, uma
conferência subordinada ao título “Mãe da
Igreja, rogai por nós”. A intercessão maternal da Virgem Maria”.
A professora
de Filosofia da Universidade dos Açores apresentou Maria como a “Mãe da
Igreja”, a “intercessora” e a “mensageira” frisando que há, em todas as
dimensões, um apelo “ao restaurar da proximidade entre as pessoas unidas por
sentimentos de amor e ternura, um apelo à recuperação do sentido da vida
humana” e, por isso, clamamos “Mãe da Igreja, rogai por nós”.
Segundo a
conferencista, que se tem desdobrado em conferências e publicado alguns livros
na área da sua especialidade, começou por afirmar, na Basílica de Nossa Senhora
do Rosário, que balizava a sua intervenção “simplesmente como crente”, numa
partilha da fé cristã.
Sobre
a identidade de Maria, assegurou que “Maria é não só aquela a quem levantamos o
olhar, para que interceda por nós, mas é também aquela que olha por nós, na
peregrinação longa e acidentada” – é a intercessão providente – fazendo-se
“mensageira do verbo” de Deus; e destacou a mensagem de “paz, de esperança de
ternura” deixada por Nossa Senhora em Fátima.
Evocando os
atos de consagração de Paulo VI, na última sessão do Concílio Vaticano II e de João
Paulo II, em 1984, a conferencista disse que “a cada aparição reforçamos o
sentimento de que Maria permanece no mundo, ou que pelo menos nos está próxima
e somos nós que também, regularmente, regressamos a este espaço sagrado para
revigorar a sua memória intemporal”. E acrescentou:
“Nas
aparições, Maria torna-se presente aos que concede que a vejam, mas também a
todos os que creem sem terem visto, pelo que a sua mensagem não conhece
fronteiras na terra nem se confina a idades da história, tão pouco a gerações
de homens, mas inunda-nos a todos, aqui e agora, com a intensidade proporcional
à fé de cada um”.
Depois, falou
das “virtudes teologais” em Maria apresentando-as como “o nível máximo da
perfeição a que o humano pode aspirar” e que se tornam “ideais de ação para a
igreja e para os homens”. Neste sentido, destacou Maria como “modelo perene”
para a família ou para a comunidade cristã, para a igreja. Assim, “Maria é
exemplo de vida para todos os cristãos” e é um sinal de contradição para quem
se afasta do rumo, nomeadamente para “as mulheres que geram filhos e recusam
ser mães, para as mulheres que têm filhos e esquecem a relação, para as que
cultivam a relação mãe-filho, mas a confinam ao restrito e egoísta espaço
biológico” e ainda, “para todas as mulheres e todos os homens que se abrem na
dádiva de si à família humana, mas permanecem aquém da irmandade maternal de
Maria”.
Para a
oradora, Maria é “um modelo a imitar” porque é “a via privilegiada para dar à
luz uma nova humanidade, um novo mundo”, sobretudo no mundo hodierno em que
vivemos, um mundo “órfão de sentido”. Com efeito, como referiu, “o mundo é hoje
maior que nunca pela crescente diversidade de alternativas que por todo o lado
assaltam o nosso quotidiano”, mas as pessoas “atrofiaram-se fechadas em
vontades pequenas e de satisfação imediata que se esgotam a cada instante, nada
projetando, nada construindo, num viver o dia a dia sem história, nem futuro,
num ter cada vez mais e num ser cada vez menos”. E, apesar dos avanços
tecnológicos que nos deviam aproximar, as “pessoas isolaram-se nos seus
dispositivos tecnológicos pessoais, tornaram-se cada vez mais distantes e separadas”
e as relações humanas “multiplicaram-se ao mesmo ritmo que as relações pessoais
se anonimizaram”.
Assim, muito ajustadamente
se conclui que “a invocação de Maria como Mãe da Igreja é um apelo
ao restaurar da proximidade entre as pessoas unidas pelo amor”.
***
A intercessão materna de Maria aparece-nos com toda a nitidez no
Evangelho de João nas bodas de Caná da Galileia (a 15 quilómetros a norte de Nazaré). O evangelista põe duas pequenas frases nos lábios
da mãe de Jesus: “Não têm vinho” (Jo 2,3) e “Fazei o que Ele vos disser” (Jo 2,5).
Em Caná,
houve um casamento em que estiveram Jesus, Maria e os discípulos. Durante os
festejos das bodas, Maria deu-nos um grande ensinamento, a ponto de podermos
falar da “Escola de Caná”, como se fala das escolas de Nazaré, de Aim Karim ou
de Jerusalém. Também ali a Virgem se fez pedagoga, indicando em poucas palavras
como deve ser o relacionamento da nossa parte com Deus e com os homens.
O Evangelho diz que nas bodas faltou o vinho (Jo 2,3), o que não seria raro, pois entre os judeus as
festas dos desponsórios duravam uma semana, para o banquetear e alegre
compartilhar de familiares e conhecidos. E Maria descobriu aquela falta de
vinho, pressupondo que os anfitriões passariam por grande vergonha. Então
dirigiu-se a Jesus: “Eles já não têm vinho”.
Esta, a sexta palavra colocada nos lábios de Maria pelo
Evangelho, constitui uma intercessão amorosa, uma súplica pelos que sofrem uma
carência. Mas é uma intervenção tão discreta que alguns comentaristas da Bíblia
chegaram a discutir se Maria quis mesmo um milagre ou se se limitou a anotar um
facto. De qualquer modo, quem fala é a mãe confiada em que o filho solucionará
a dificuldade. Mas a mãe também intercede junto dos outros, pois, dirigindo-se
aos serventes disse: “Fazei o que Ele vos disser”. Trata-se quer duma bela
forma de orar e interceder pelos demais, suplicando de modo desinteressado, quer
duma forma suave de transmitir recados de Deus aos outros de forma não
imperativa, mas sugestiva e respeitadora. Com efeito, é tão importante falar de
Deus aos homens como dos homens a Deus, e fazê-lo como faz uma mãe amorosa e
dedicada é o segredo da eficácia. Não é por acaso que os santos denominam a
intercessão de Maria como a omnipotência suplicante.
Aos homens narramos as maravilhas que o Poderoso faz e
a Deus contamos da pobreza que sofrem os homens. No primeiro caso, pregamos; no
segundo, intercedemos. A intercessão definitiva ante o Pai, somente a faz Jesus
Cristo, que é o nosso único Mediador (1 Tm 2,5), nosso advogado, nosso Pontífice. Mas a Igreja, invoca
Maria “com os títulos de Advogada,
Auxiliadora, Socorro, Medianeira”, mas a função intercessora de Maria não
retira nada nem acrescenta nada à dignidade e eficácia da mediação – única,
estruturante e vertebrante – de Cristo, o único mediador. Isto faz-me lembrar o
mediador da Seguradora que dispõe de especiais colaboradores, só que o mediador
da seguradora precisa do contributo dos colaboradores para a eficácia da sua
função, o que não sucede com Cristo, que bem podia prescindir da colaboração
materna. Porém, como se poderia evidenciar o mistério da ternura e da misericórdia
divinas na sua versão feminina e materna?
***
Que
entendimento profundo terá havido entre Jesus e a Mãe? Como se poderá explorar
o mistério da sua íntima união espiritual? Naquele evento já se delineia, de
forma clara, o sentido novo da maternidade de Maria, um significado que não
está inserido exclusivamente nas palavras de Jesus e nos diversos episódios
referidos pelos Sinóticos (Lc 11,27-28 e Lc 8,19-21; Mt 12,46-50; Mc 3,31-35). Nesses textos Jesus tem o intuito de contrapor a
maternidade resultante do nascimento ao que esta “maternidade” (tal como a “fraternidade”) deve ser no âmbito do Reino de Deus, na irradiação salvífica
da paternidade de Deus. No texto de João, ao contrário, a partir da descrição
dos factos de Caná, esboça-se aquilo em que se manifesta concretamente esta
maternidade nova, segundo o espírito e não apenas pela carne, ou seja, a
solicitude de Maria pelos homens, o ir ao encontro deles, na vasta gama das
suas carências e necessidades. Em Caná, apenas se torna patente um aspeto
concreto da indigência humana, aparentemente pequeno e de pouca importância (“Eles não
têm mais vinho”). Mas tem
um forte valor simbólico: aquele ir ao encontro das necessidades do homem
significa, ao mesmo tempo, introduzi-las no âmbito da missão messiânica e do
poder salvífico de Cristo.
Dá-se uma
mediação: Maria põe-se de permeio entre o Filho e os homens na realidade das
suas privações, indigências e sofrimentos, não como uma estranha, mas na sua
posição e função de mãe, consciente de que pode como tal – ou antes, “tem o
direito de” – apresentar ao Filho as necessidades dos homens. Esta sua mediação
tem, portanto, um caráter de intercessão: Maria intercede pelos homens. E, como
Mãe do Messias, deseja que se manifeste o poder messiânico do Filho, ou seja, o
seu poder salvífico destinado a socorrer as desventuras humanas, a libertar o
homem do mal que, sob diversas formas e em diversas proporções, faz sentir o
peso na sua vida.
O outro
elemento essencial desta função maternal de Maria pode ser captado nas palavras
dirigidas aos que serviam à mesa: “Fazei aquilo que ele vos disser”. A Mãe de
Jesus apresenta-se ante os homens como porta-voz da vontade do Filho, como quem
indica aquelas exigências que devem ser satisfeitas, para que possa
manifestar-se o poder salvífico do Messias.
Assim,
graças à intercessão de Maria e à obediência dos servos, Jesus dá início à “sua
hora”. Em Caná, Maria aparece em público como quem acredita em Jesus: a sua fé
provoca da parte dele o primeiro “milagre” e contribui para suscitar a fé dos
discípulos.
Também assim ensina o Concílio Vaticano II, que ainda
afirma:
“A Igreja não duvida em confessar
esta função subordinada de Maria, experimenta-a continuamente e recomenda-a à
piedade dos fiéis, para que, apoiados na proteção maternal, se unam com maior
intimidade ao Mediador e Salvador” (Lumen Gentium, 62).
Maria está sempre atenta a Cristo e aos homens: ao
Filho, para suplicar-lhe; aos homens, para bendizê-los. Com isso, dá-nos
exemplo do que pode ser a nossa oração. Faz-nos sentir filhos de Deus e irmãos
dos homens ou, como afirmaram os bispos em Puebla: “faz com que nos sintamos família”. Paulo VI expressou essa mesma
realidade falando da “presença orante de
Maria na Igreja nascente, bem como na Igreja de todos os tempos, porque ela,
assunta ao céu, não abandonou a sua missão de intercessão e salvação” (Marialis
Cultus 18).
***
Esta carência da bebida necessária entranha um
profundo sentido e significa, como noutros textos de João, que a partir de algo
material se expressa uma realidade espiritual. Quando fala de renascer, não se
refere ao nascimento biológico, mas à geração do Espírito; quando fala de água,
não alude ao líquido que brota do poço de Jacob, mas à que mana até à vida
eterna; quando narra a cura dum cego, é para apresentar a Cristo, luz do mundo;
quando narra a multiplicação dos pães é para aludir a Cristo, pão da vida;
quando Jesus convida os sedentos a acercarem-se e beberem, é para garantir à
humanidade que já pode beber do vinho novo. Porém, necessitamos da súplica de
Maria para que permanentemente nos obtenha o vinho do Espírito. Assim, naquela passagem de Caná, supera-se a falta de
vinho e fala-se de vinho sem comparação, em quantidade e qualidade, como
tratando-se dum vinho novo que somente Jesus podia dar. Este vinho é sinal da
restauração messiânica, sinal da palavra de Deus e do sangue eucarístico, sinal
do amor, sinal da Nova Aliança entre Deus e seu povo, sinal de alegria, porque
nas bodas de Deus com os homens, Cristo, o esposo, acaba de chegar.
Esgotara-se o vinho do Antigo Testamento. Só restavam
os cântaros de pedra, cheios de água destinada à purificação, que não era
própria para beber. Requeria-se vinho, o vinho da presença de Jesus, o vinho do
Espírito Santo.
Às vezes, o Espírito Santo é assimilado ao vinho: dos
apóstolos, no Pentecostes, dizia-se que estavam embriagados (At 2,13); e Paulo recomenda aos cristãos que se embriaguem
com vinho, mas que se encham do Espírito Santo (Ef 5,18). Também o judeu Filón disse de Melquisedec:
“Apresentará vinho em vez de água e
dará às nossas almas uma bebida pura, para que possam ficar possuídas por essa
divina intoxicação que é mais sóbria do que a própria sobriedade”.
Essa ideia é repetida por alguns Padres da Igreja,
como Santo Ambrósio, que incita a “beber com alegria a sóbria abundância do Espírito”.
E Gaudêncio expressa-se nos termos seguintes:
“O vinho do Espírito Santo, antes da
paixão e ressurreição de Cristo, não podia ser dado aos homens; justamente por
isso, no princípio dos milagres, Cristo respondeu à sua mãe: ‘Porque te
antecipas, Senhora, em tua petição, já que ainda não é chegada a hora da minha
paixão, que estabeleci para morrer pelos crentes…?”. Depois da paixão e
ressurreição, quando voltar ao Pai, será dado o vinho do Espírito”.
***
Ao suplicar anotando que “eles não têm vinho” (Não têm
alegria! Não têm amor! Não têm o Espírito!), Maria
converte-se na Virgem Orante e a sua oração, acompanhada pelos apóstolos, como
em Caná, será a que um dia desencadeará a tempestade do Pentecostes. Ela foi e
continua a ser a protagonista da oração pelo Espírito que é a grande epíclese
da Igreja. Ela é o lugar onde sempre se encontra o Espírito de Deus, que um dia
a cobriu com sua sombra (cf Puebla 287).
Maria apareceu em Caná, onde, manifestando ao Filho
com delicada súplica uma necessidade temporal, obtém um efeito da graça: que
Jesus, realizando o primeiro dos seus milagres, confirmasse a fé dos seus
discípulos nele. Ora, crer em Cristo é um dom do Espírito, a presença do
Espírito nos corações é o dom primeiro e fundamental que a Virgem nos obtém.
Jesus, em Caná pôde responder à súplica materna,
aduzindo que a sua hora não havia chegado. Mas, chegada que está a hora de
Cristo, o Espírito já se difundiu pela humanidade (cf Jo 7,39). A humanidade já pode beber do vinho novo. Mas
tivemos e temos necessidade da súplica de Maria para a obtenção o vinho do
Espírito, o vinho da alegria, o vinho do amor, o vinho da Palavra de Deus, o
vinho das bodas de Cristo com a Igreja e que não pode escassear. Para isso, necessitamos de convidar Maria.
Ela, que esteve em Caná, pode vir hoje à nossa casa, à nossa vida, ao nosso
mundo, à nossa Igreja – competindo-nos a nós discípulos recebê-la (cf Jo
19,26-27), segundo a indicação do mandato do
Calvário.
E, de ao pé de nós, torna-se uma poderosa intercessora
ante Deus, porque Mãe.
2017.01.14 – Louro de Carvalho
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