As raízes do nosso constitucionalismo são a revolução liberal
de 1820 e a Constituição de 1822, mas o caminho para 1820 foi talhado por
fatores externos vários e por diversos eventos nacionais, nomeadamente a
conspiração liberal (1817, com Gomes Freire) e a criação do
Sinédrio (1818, com Fernandes Tomás). Por isso, as
comemorações iniciar-se-ão este ano. Para tanto, o Presidente da
Assembleia da República convidou Guilherme d’Oliveira Martins para presidir às comemorações sob o lema “Celebrar a Liberdade, 200 anos de
Constitucionalismo”. Terá o escolhido a missão de conceber programação
à altura deste marco histórico, para o que receberá o apoio dos serviços do
Parlamento, que asseguram a assessoria e a execução. As atividades deste
projeto serão articuladas com o Grupo de
Trabalho para os Assuntos Culturais.
Eduardo Ferro Rodrigues entende que “a sede da soberania
popular, tendo como dever velar pelo cumprimento da Constituição da República
Portuguesa, não podia ficar indiferente a esta efeméride nem deixar de
contribuir para a divulgação pública da atualidade dos ideais liberais,
republicanos e democráticos, quando estamos a caminho dos 200 anos da revolução
liberal e do constitucionalismo português”. (vd site do Parlamento:
https://www.parlamento.pt/Paginas/default.aspx).
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A este respeito, António Filipe,
deputado do PCP, no centenário da República, publicou no Militante (n.º 305 – março /abril de 1910) um texto sob o título “Do constitucionalismo monárquico à
Constituição democrática de 1976”, que segue em linhas gerais com adaptações
pessoais.
O nosso constitucionalismo nasceu com a Constituição de 1822,
que deu corpo institucional à revolução liberal. Teve vigência efémera e
repartida por dois períodos: 7 meses, de setembro de 1822 a junho de 1823, e 19
meses, após a revolução de setembro de 1836. Porém, é um ponto de referência
obrigatório por ser a primeira Constituição portuguesa e por ter resultado
diretamente dum processo revolucionário e ter sido elaborada por uma Assembleia
Constituinte eleita expressa e exclusivamente para o efeito.
As eleições para as Cortes Constituintes foram indiretas em
três graus: os eleitores de comarca foram eleitos pelos cidadãos maiores de 21
anos (todos puderam votar), que elegeram, por sua vez, por
voto secreto os eleitores de província, os quais, por seu turno, elegeram 109 deputados,
repartidos por 10 divisões plurinominais, a que acresceram 7 representantes das
colónias de África e Ásia e 66 do Brasil. Para serem sufragados como eleitores
de província ou deputados, deviam ser maiores de 25 anos. Das eleições de dezembro
de 1820, apurou-se uma maioria (de proprietários, comerciantes, homens de leis e burocratas), que aprovou a Constituição a 23 de
setembro.
A Constituição de 1822 assumia os princípios estruturantes das
doutrinas liberais: soberania nacional, representação, independência de
poderes, consagração de direitos fundamentais. Segundo ela, o poder legislativo
era exercido por uma assembleia única, eleita de 2 em 2 anos por sufrágio
direto e secreto, vedado às mulheres, aos menores de 25 anos (com exceção dos casados e dos oficiais
militares que tivessem pelo menos 20 anos, dos bacharéis formados e dos
clérigos de ordens sacras),
aos filhos de família a cargo dos pais (salvo se tivessem ofício público), aos criados de servir, aos vadios
e aos membros das ordens monásticas.
Mantendo-se o princípio monárquico, a autoridade do Rei
provinha da Nação e fundava-se na Constituição, não no direito divino nem nas
condições de hereditariedade. Foi esta Constituição monárquica que levou mais
longe o princípio representativo em detrimento do princípio aristocrático, não
havendo uma câmara de representação nobiliárquica, o que fez com que, apesar
das limitações à universalidade do sufrágio, ela ficasse como a mais
progressista das Constituições monárquicas.
O seu Título I continha
os direitos e deveres dos cidadãos: a liberdade “de não fazer o que a lei não
manda nem deixar de fazer o que ela não proíbe”; a inviolabilidade do domicílio
e da correspondência; o direito de propriedade; a liberdade de expressão sem
dependência de censura; a igualdade ante a lei; a abolição das penas cruéis ou
infamantes; a igualdade na admissão a cargos públicos; o direito de petição. E
o seu último capítulo previa, para todo o reino, a existência de escolas
destinadas a ensinar os jovens de ambos os sexos a ler, escrever e contar, bem
como de misericórdias e hospitais.
A sua vigência durou pouco tempo. A independência do Brasil,
a crise económica, a oposição absolutista e a situação europeia reativa ao
movimento liberal explicam a sua queda. Foi neste contexto que as forças absolutistas
desencadearam, a 27 de maio de 1823, o movimento militar da Vilafrancada, que fez
cessar a vigência da Constituição.
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Com a morte de D. João VI em 1826, o seu filho e sucessor, D.
Pedro IV, outorgou uma Carta
Constitucional redigida no Brasil sob a sua direção, a refletir a reação
conservadora contra a promulgação de constituições populares. Não se tratava de
rejeitar a ideia de Constituição e de representação nacional, mas de restaurar
a legitimidade constituinte monárquica. Manteve a separação de poderes do liberalismo
(legislativo, executivo e
judicial), mas adicionou
o “poder moderador” consagrando amplos poderes e prerrogativas do Rei que, na
prática, anulavam o poder legislativo. Além disso, criou a Câmara dos Pares,
vitalícia e hereditária, de nomeação real e sem número fixo de membros,
reservada aos setores do clero e da nobreza, que haviam sido afastados pelo
sistema unicameral de 1822. Restringiu-se o direito de voto para a Câmara dos
Deputados à classe média alta, excluindo as classes populares. Assim, as eleições
(que passaram a indiretas) interessavam apenas a uma pequena
minoria. Os direitos foram relegados para o Título VIII, o fim. E oferecia como novidades, o princípio da não retroatividade
das leis, a liberdade de trabalho e de empresa e a gratuitidade da instrução
primária.
A Carta vigorou durante dois anos, até à restauração do
absolutismo em 1828; por mais dois anos, entre o fim da guerra civil, em 1834,
e a revolução de setembro de 1836; e por um longo período entre 1844 e 1910,
tendo passado por várias revisões designadas por Atos Adicionais, que não alteraram as suas características
essenciais.
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A 9 de setembro de 1936, os deputados eleitos pelo Porto
foram apoteoticamente recebidos pela população lisboeta, originando um processo
revolucionário que determinou a imediata reposição da Constituição de 1822 até
à elaboração de nova Lei Fundamental por uma Assembleia Constituinte. O Governo
saído da revolução de setembro era integrado por revoltosos oriundos da pequena
e média burguesia ascendente, industrial, comercial e das profissões liberais. A
Constituição de 1838, resultante da nova Assembleia Constituinte, procurou
conciliar conteúdos da Constituição de 1822 e da Carta. Porém, aboliu o poder moderador,
regressando à tripartição de poderes; manteve o bicameralismo, mas sem a
natureza aristocrática da 2.ª Câmara, o Senado, que era eletiva e temporária. O
direito de voto permaneceu censitário, embora a renda líquida anual exigida
baixasse em 20%. A eleição, quer dos senadores quer dos deputados, passou a ser
direta, embora as condições para ser eleito membro da 2.ª Câmara fossem
exigentes. Novos direitos fundamentais surgiram desta vez: a liberdade de
associação, a liberdade de reunião e o direito de resistência. Esta representou
grande diferença em relação à Carta, refletindo a natureza das forças
triunfantes na revolução de setembro.
***
O regresso do Cartismo ao poder pela mão de Costa Cabral
impôs a reposição da Carta Constitucional em 1844. Os anos subsequentes foram
marcados por grandes revoltas populares – Maria
da Fonte e Patuleia – somente
superadas pela intervenção militar espanhola e inglesa, evidenciando a
contradição entre os interesses de classe da burguesia liberal dominante e as camadas
populares excluídas de qualquer participação no sistema político cartista.
A revolução republicana ergueu-se, pois, sobre os destroços dum
regime desacreditado aos olhos do povo e incapaz de resolver as sucessivas
crises do país. O Parlamento era repartido entre os aristocratas nomeados pelo
Rei e os notáveis dos partidos do regime, que alternavam no exercício do poder
para a execução das mesmas políticas (rotativismo). As eleições eram meras encenações legitimadoras das escolhas feitas
pelos caciques partidários, sendo sempre ganhas pelos detentores do poder. Os
últimos anos da monarquia foram assim marcados por alterações de leis
eleitorais destinadas a impedir a eleição de deputados republicanos, pela manipulação
de círculos eleitorais e por maiores restrições do direito de voto. As leis
eleitorais de 1895 e 1896 (de Hintze Ribeiro e João Franco) restringiram o universo eleitoral a cerca de 9% da
população.
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O povo de Lisboa, cujo apoio fora decisivo para o sucesso da
revolução republicana de 1910, foi quase arredado da participação nas
estruturas de poder resultantes dela, pois a legislação eleitoral republicana
veio, em aspetos fundamentais, na continuidade da legislação anterior. Tinham
capacidade eleitoral os cidadãos do sexo masculino maiores de 21 anos que
soubessem ler e escrever ou fossem chefes de família. O recenseamento era
facultativo. A Assembleia Constituinte eleita em maio de 1911 era formada
deputados do Partido Republicano, três independentes e dois socialistas. A base
social da implantação da República foi, em larga medida, traída por um poder
exercido por uma elite de liberais hostis ao movimento operário.
Não obstante, a Constituição de 1911 trouxe progressos. No
plano político, foi a abolição da monarquia, a extinção dos títulos de nobreza
e das ordens honoríficas; no plano social e das liberdades individuais, veio a
consagração da liberdade religiosa, a separação entre as Igrejas e o Estado, a
abolição da pena de morte em quaisquer circunstâncias, o habeas corpus, o direito ao trabalho e à assistência social. A
Constituição assentava no parlamentarismo absoluto, que se revelou inadequado e
gerador de instabilidade política. O movimento operário, base social decisiva
para o derrube da monarquia, não participou na elaboração da Constituição e viu
recusada a constitucionalização do direito à greve. Mas, pela consagração de
direitos essenciais, a Constituição refletia as contradições entre a elite
liberal (dominante nas
estruturas de poder) e a
base social da revolução, que levaram à frustração das aspirações democráticas
e progressistas do movimento operário e popular, explicando em larga medida o
insucesso da I República.
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A institucionalização da ditadura nacional, na sequência do
golpe militar de 1926 e da ascensão política de Salazar, fez-se com aprovação
da Constituição de 1933 através duma farsa de plebiscito. O texto foi redigido
sob égide de Salazar, publicado no Diário
do Governo e afixado nas câmaras municipais e juntas de freguesia. O voto
era obrigatório para os chefes de família que soubessem ler e escrever, sendo
as ausências contadas como votos a favor. Os eleitores que votassem a favor
entregavam o boletim em branco, mas os que quisessem votar contra teriam de lhe
escrever a palavra “Não”. Num quadro de supressão das liberdades públicas e repressão
de todos os opositores, o plebiscito e a Constituição de 1933 não passaram de
expedientes destinados a formalizar juridicamente a ditadura, agora denominada “Estado
Novo”.
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A Constituição de 1976, resultante da revolução de 25 de abril
de 1974, marcou a diferença em relação às anteriores. Tal como as Constituições
de 1822, de 1838 e de 1911 e, ao contrário da Carta Constitucional e da Constituição
de 1933, teve origem em processo revolucionário e foi elaborada por Assembleia
Constituinte eleita especificamente para o efeito. Porém, tanto a forma de
eleição como a composição da Assembleia refletiram a distinta natureza de
classe da revolução de abril. A eleição da Constituinte em 1975 foi a 1.ª
eleição efetuada em Portugal por sufrágio direto e universal. Todos os cidadãos
maiores de 18 anos obtiveram o direito de voto em eleições livres e
democráticas, sendo a conversão de votos em mandatos efetuada pelo sistema de
representação proporcional. As classes trabalhadoras obtiveram, pela 1.ª vez,
representação nos órgãos do poder político, dando tradução institucional à sua
ação política e social. Esta marca genética do processo (de cariz popular e revolucionário,
assente na poderosa ação política e social dos trabalhadores) permitiu inscrever no texto constitucional
o essencial das conquistas da revolução democrática. E, assim, mais de 4
décadas passadas sobre a sua aprovação e realizadas 7 revisões, a Constituição
continua a ser a magna carta da nossa democracia.
O amplo conjunto de direitos económicos, sociais, políticos e
culturais ora consagrados não tem paralelo em Constituições anteriores. Os
direitos fundamentais foram inscritos na Parte I. O seu Título II, respeitante
aos direitos, liberdades e garantias, consagra um vasto elenco de direitos,
como o direito à vida e à integridade pessoal, a proibição da pena de morte, da
tortura e de penas cruéis, infamantes ou desumanas; o direito à liberdade e à
segurança; um amplo conjunto de garantias dos cidadãos em processo penal; a
liberdade de expressão e informação; a liberdade de consciência, de religião e
de culto; a liberdade de criação cultural; o direito de reunião, manifestação e
associação; os direitos de participação na vida pública, incluindo os direitos
de sufrágio, de acesso a cargos públicos, de petição e de ação popular; os
direitos liberdades e garantias dos trabalhadores, incluindo a segurança no
emprego, a liberdade sindical e a greve.
Além disso, consagra um amplo conjunto de direitos
económicos, sociais e culturais: o direito ao trabalho, à segurança social, à
saúde, à habitação, ao ambiente e qualidade de vida, à educação, à proteção na
infância, na juventude, na deficiência, na terceira idade.
Politicamente, rompeu com a concentração de poderes da
ditadura e quis evitar os erros da I República, promovendo a separação e a
interdependência entre os órgãos de soberania. Assumiu a forma republicana de
Governo como valor matricial e adotou um sistema misto parlamentar-presidencial
(semipresidencialismo), em que a legitimidade do
Presidente e do Parlamento eleitos democraticamente concorrem para a efetivação
da responsabilidade política dos governos. Ademais, a criação das autonomias
regionais, a afirmação do poder local e a independência do poder judicial,
constituem também elementos identitários deste regime constitucional.
Como republicana e democrática deve ser defendida pela
República para que dure e luza.
2017.02.08 – Louro
de Carvalho
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