quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Para a comemoração dos 200 anos do constitucionalismo português

As raízes do nosso constitucionalismo são a revolução liberal de 1820 e a Constituição de 1822, mas o caminho para 1820 foi talhado por fatores externos vários e por diversos eventos nacionais, nomeadamente a conspiração liberal (1817, com Gomes Freire) e a criação do Sinédrio (1818, com Fernandes Tomás). Por isso, as comemorações iniciar-se-ão este ano. Para tanto, o Presidente da Assembleia da República convidou Guilherme d’Oliveira Martins para presidir às comemorações sob o lema “Celebrar a Liberdade, 200 anos de Constitucionalismo”. Terá o escolhido a missão de conceber programação à altura deste marco histórico, para o que receberá o apoio dos serviços do Parlamento, que asseguram a assessoria e a execução. As atividades deste projeto serão articuladas com o Grupo de Trabalho para os Assuntos Culturais.    
Eduardo Ferro Rodrigues entende que “a sede da soberania popular, tendo como dever velar pelo cumprimento da Constituição da República Portuguesa, não podia ficar indiferente a esta efeméride nem deixar de contribuir para a divulgação pública da atualidade dos ideais liberais, republicanos e democráticos, quando estamos a caminho dos 200 anos da revolução liberal e do constitucionalismo português”. (vd site do Parlamento: https://www.parlamento.pt/Paginas/default.aspx).
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A este respeito, António Filipe, deputado do PCP, no centenário da República, publicou no Militante (n.º 305 – março /abril de 1910) um texto sob o título “Do constitucionalismo monárquico à Constituição democrática de 1976”, que segue em linhas gerais com adaptações pessoais.
O nosso constitucionalismo nasceu com a Constituição de 1822, que deu corpo institucional à revolução liberal. Teve vigência efémera e repartida por dois períodos: 7 meses, de setembro de 1822 a junho de 1823, e 19 meses, após a revolução de setembro de 1836. Porém, é um ponto de referência obrigatório por ser a primeira Constituição portuguesa e por ter resultado diretamente dum processo revolucionário e ter sido elaborada por uma Assembleia Constituinte eleita expressa e exclusivamente para o efeito.
As eleições para as Cortes Constituintes foram indiretas em três graus: os eleitores de comarca foram eleitos pelos cidadãos maiores de 21 anos (todos puderam votar), que elegeram, por sua vez, por voto secreto os eleitores de província, os quais, por seu turno, elegeram 109 deputados, repartidos por 10 divisões plurinominais, a que acresceram 7 representantes das colónias de África e Ásia e 66 do Brasil. Para serem sufragados como eleitores de província ou deputados, deviam ser maiores de 25 anos. Das eleições de dezembro de 1820, apurou-se uma maioria (de proprietários, comerciantes, homens de leis e burocratas), que aprovou a Constituição a 23 de setembro.
A Constituição de 1822 assumia os princípios estruturantes das doutrinas liberais: soberania nacional, representação, independência de poderes, consagração de direitos fundamentais. Segundo ela, o poder legislativo era exercido por uma assembleia única, eleita de 2 em 2 anos por sufrágio direto e secreto, vedado às mulheres, aos menores de 25 anos (com exceção dos casados e dos oficiais militares que tivessem pelo menos 20 anos, dos bacharéis formados e dos clérigos de ordens sacras), aos filhos de família a cargo dos pais (salvo se tivessem ofício público), aos criados de servir, aos vadios e aos membros das ordens monásticas.
Mantendo-se o princípio monárquico, a autoridade do Rei provinha da Nação e fundava-se na Constituição, não no direito divino nem nas condições de hereditariedade. Foi esta Constituição monárquica que levou mais longe o princípio representativo em detrimento do princípio aristocrático, não havendo uma câmara de representação nobiliárquica, o que fez com que, apesar das limitações à universalidade do sufrágio, ela ficasse como a mais progressista das Constituições monárquicas.
O seu Título I continha os direitos e deveres dos cidadãos: a liberdade “de não fazer o que a lei não manda nem deixar de fazer o que ela não proíbe”; a inviolabilidade do domicílio e da correspondência; o direito de propriedade; a liberdade de expressão sem dependência de censura; a igualdade ante a lei; a abolição das penas cruéis ou infamantes; a igualdade na admissão a cargos públicos; o direito de petição. E o seu último capítulo previa, para todo o reino, a existência de escolas destinadas a ensinar os jovens de ambos os sexos a ler, escrever e contar, bem como de misericórdias e hospitais.
A sua vigência durou pouco tempo. A independência do Brasil, a crise económica, a oposição absolutista e a situação europeia reativa ao movimento liberal explicam a sua queda. Foi neste contexto que as forças absolutistas desencadearam, a 27 de maio de 1823, o movimento militar da Vilafrancada, que fez cessar a vigência da Constituição.
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Com a morte de D. João VI em 1826, o seu filho e sucessor, D. Pedro IV, outorgou uma Carta Constitucional redigida no Brasil sob a sua direção, a refletir a reação conservadora contra a promulgação de constituições populares. Não se tratava de rejeitar a ideia de Constituição e de representação nacional, mas de restaurar a legitimidade constituinte monárquica. Manteve a separação de poderes do liberalismo (legislativo, executivo e judicial), mas adicionou o “poder moderador” consagrando amplos poderes e prerrogativas do Rei que, na prática, anulavam o poder legislativo. Além disso, criou a Câmara dos Pares, vitalícia e hereditária, de nomeação real e sem número fixo de membros, reservada aos setores do clero e da nobreza, que haviam sido afastados pelo sistema unicameral de 1822. Restringiu-se o direito de voto para a Câmara dos Deputados à classe média alta, excluindo as classes populares. Assim, as eleições (que passaram a indiretas) interessavam apenas a uma pequena minoria. Os direitos foram relegados para o Título VIII, o fim. E oferecia como novidades, o princípio da não retroatividade das leis, a liberdade de trabalho e de empresa e a gratuitidade da instrução primária.
A Carta vigorou durante dois anos, até à restauração do absolutismo em 1828; por mais dois anos, entre o fim da guerra civil, em 1834, e a revolução de setembro de 1836; e por um longo período entre 1844 e 1910, tendo passado por várias revisões designadas por Atos Adicionais, que não alteraram as suas características essenciais.
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A 9 de setembro de 1936, os deputados eleitos pelo Porto foram apoteoticamente recebidos pela população lisboeta, originando um processo revolucionário que determinou a imediata reposição da Constituição de 1822 até à elaboração de nova Lei Fundamental por uma Assembleia Constituinte. O Governo saído da revolução de setembro era integrado por revoltosos oriundos da pequena e média burguesia ascendente, industrial, comercial e das profissões liberais. A Constituição de 1838, resultante da nova Assembleia Constituinte, procurou conciliar conteúdos da Constituição de 1822 e da Carta. Porém, aboliu o poder moderador, regressando à tripartição de poderes; manteve o bicameralismo, mas sem a natureza aristocrática da 2.ª Câmara, o Senado, que era eletiva e temporária. O direito de voto permaneceu censitário, embora a renda líquida anual exigida baixasse em 20%. A eleição, quer dos senadores quer dos deputados, passou a ser direta, embora as condições para ser eleito membro da 2.ª Câmara fossem exigentes. Novos direitos fundamentais surgiram desta vez: a liberdade de associação, a liberdade de reunião e o direito de resistência. Esta representou grande diferença em relação à Carta, refletindo a natureza das forças triunfantes na revolução de setembro.
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O regresso do Cartismo ao poder pela mão de Costa Cabral impôs a reposição da Carta Constitucional em 1844. Os anos subsequentes foram marcados por grandes revoltas populares – Maria da Fonte e Patuleia – somente superadas pela intervenção militar espanhola e inglesa, evidenciando a contradição entre os interesses de classe da burguesia liberal dominante e as camadas populares excluídas de qualquer participação no sistema político cartista.
A revolução republicana ergueu-se, pois, sobre os destroços dum regime desacreditado aos olhos do povo e incapaz de resolver as sucessivas crises do país. O Parlamento era repartido entre os aristocratas nomeados pelo Rei e os notáveis dos partidos do regime, que alternavam no exercício do poder para a execução das mesmas políticas (rotativismo). As eleições eram meras encenações legitimadoras das escolhas feitas pelos caciques partidários, sendo sempre ganhas pelos detentores do poder. Os últimos anos da monarquia foram assim marcados por alterações de leis eleitorais destinadas a impedir a eleição de deputados republicanos, pela manipulação de círculos eleitorais e por maiores restrições do direito de voto. As leis eleitorais de 1895 e 1896 (de Hintze Ribeiro e João Franco) restringiram o universo eleitoral a cerca de 9% da população.
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O povo de Lisboa, cujo apoio fora decisivo para o sucesso da revolução republicana de 1910, foi quase arredado da participação nas estruturas de poder resultantes dela, pois a legislação eleitoral republicana veio, em aspetos fundamentais, na continuidade da legislação anterior. Tinham capacidade eleitoral os cidadãos do sexo masculino maiores de 21 anos que soubessem ler e escrever ou fossem chefes de família. O recenseamento era facultativo. A Assembleia Constituinte eleita em maio de 1911 era formada deputados do Partido Republicano, três independentes e dois socialistas. A base social da implantação da República foi, em larga medida, traída por um poder exercido por uma elite de liberais hostis ao movimento operário.
Não obstante, a Constituição de 1911 trouxe progressos. No plano político, foi a abolição da monarquia, a extinção dos títulos de nobreza e das ordens honoríficas; no plano social e das liberdades individuais, veio a consagração da liberdade religiosa, a separação entre as Igrejas e o Estado, a abolição da pena de morte em quaisquer circunstâncias, o habeas corpus, o direito ao trabalho e à assistência social. A Constituição assentava no parlamentarismo absoluto, que se revelou inadequado e gerador de instabilidade política. O movimento operário, base social decisiva para o derrube da monarquia, não participou na elaboração da Constituição e viu recusada a constitucionalização do direito à greve. Mas, pela consagração de direitos essenciais, a Constituição refletia as contradições entre a elite liberal (dominante nas estruturas de poder) e a base social da revolução, que levaram à frustração das aspirações democráticas e progressistas do movimento operário e popular, explicando em larga medida o insucesso da I República.
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A institucionalização da ditadura nacional, na sequência do golpe militar de 1926 e da ascensão política de Salazar, fez-se com aprovação da Constituição de 1933 através duma farsa de plebiscito. O texto foi redigido sob égide de Salazar, publicado no Diário do Governo e afixado nas câmaras municipais e juntas de freguesia. O voto era obrigatório para os chefes de família que soubessem ler e escrever, sendo as ausências contadas como votos a favor. Os eleitores que votassem a favor entregavam o boletim em branco, mas os que quisessem votar contra teriam de lhe escrever a palavra “Não”. Num quadro de supressão das liberdades públicas e repressão de todos os opositores, o plebiscito e a Constituição de 1933 não passaram de expedientes destinados a formalizar juridicamente a ditadura, agora denominada “Estado Novo”.
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A Constituição de 1976, resultante da revolução de 25 de abril de 1974, marcou a diferença em relação às anteriores. Tal como as Constituições de 1822, de 1838 e de 1911 e, ao contrário da Carta Constitucional e da Constituição de 1933, teve origem em processo revolucionário e foi elaborada por Assembleia Constituinte eleita especificamente para o efeito. Porém, tanto a forma de eleição como a composição da Assembleia refletiram a distinta natureza de classe da revolução de abril. A eleição da Constituinte em 1975 foi a 1.ª eleição efetuada em Portugal por sufrágio direto e universal. Todos os cidadãos maiores de 18 anos obtiveram o direito de voto em eleições livres e democráticas, sendo a conversão de votos em mandatos efetuada pelo sistema de representação proporcional. As classes trabalhadoras obtiveram, pela 1.ª vez, representação nos órgãos do poder político, dando tradução institucional à sua ação política e social. Esta marca genética do processo (de cariz popular e revolucionário, assente na poderosa ação política e social dos trabalhadores) permitiu inscrever no texto constitucional o essencial das conquistas da revolução democrática. E, assim, mais de 4 décadas passadas sobre a sua aprovação e realizadas 7 revisões, a Constituição continua a ser a magna carta da nossa democracia.
O amplo conjunto de direitos económicos, sociais, políticos e culturais ora consagrados não tem paralelo em Constituições anteriores. Os direitos fundamentais foram inscritos na Parte I. O seu Título II, respeitante aos direitos, liberdades e garantias, consagra um vasto elenco de direitos, como o direito à vida e à integridade pessoal, a proibição da pena de morte, da tortura e de penas cruéis, infamantes ou desumanas; o direito à liberdade e à segurança; um amplo conjunto de garantias dos cidadãos em processo penal; a liberdade de expressão e informação; a liberdade de consciência, de religião e de culto; a liberdade de criação cultural; o direito de reunião, manifestação e associação; os direitos de participação na vida pública, incluindo os direitos de sufrágio, de acesso a cargos públicos, de petição e de ação popular; os direitos liberdades e garantias dos trabalhadores, incluindo a segurança no emprego, a liberdade sindical e a greve.
Além disso, consagra um amplo conjunto de direitos económicos, sociais e culturais: o direito ao trabalho, à segurança social, à saúde, à habitação, ao ambiente e qualidade de vida, à educação, à proteção na infância, na juventude, na deficiência, na terceira idade.
Politicamente, rompeu com a concentração de poderes da ditadura e quis evitar os erros da I República, promovendo a separação e a interdependência entre os órgãos de soberania. Assumiu a forma republicana de Governo como valor matricial e adotou um sistema misto parlamentar-presidencial (semipresidencialismo), em que a legitimidade do Presidente e do Parlamento eleitos democraticamente concorrem para a efetivação da responsabilidade política dos governos. Ademais, a criação das autonomias regionais, a afirmação do poder local e a independência do poder judicial, constituem também elementos identitários deste regime constitucional.
Como republicana e democrática deve ser defendida pela República para que dure e luza.

2017.02.08 – Louro de Carvalho

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