sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Há coisas que não se devem dizer por inconvenientes ou até insultuosas

Há dias, recebi uma chamada telefónica por parte duma agente duma empresa prestadora de serviços a comunicar que um técnico de relações públicas estaria naquele dia na cidade sede do concelho a que pertence a minha área de residência para esclarecimento e propostas. E, talvez para concitar o meu interesse pela entrevista com o predito senhor, lançou-me a questão: O senhor não quer pagar menos na fatura mensal?
Confesso que a pergunta me irritou, porque a recebi como um insulto à minha inteligência. Obviamente todos querem serviços e bens mais baratos e melhores. Porém, quando operadores comerciais nos abordam com as suas propostas e começam por aí, estão a agir mal, em meu entender. Costuma ser a caça ao cliente para, daí a uns meses, se voltar ao custo anterior ou se agravar a oneração da fatura. Por isso, sem me explicar muito, só respondi: “Uma pergunta dessas não se faz por insultuosa”. E desligámos sem atritos visíveis ou audíveis.
Depois, fiquei a pensar que já tinha ouvido coisa do género. Com efeito, há uns oito anos, uma antiga aluna minha de Literatura Portuguesa, tocou à campainha e eu atendi. Queria demover-me de cliente duma determinada operadora telefónica e passar-me para outra por alegadamente prestar um serviço menos oneroso. Respondi agradecendo, mas afirmei que preferia continuar com a mesma operadora, ao que ela retorquiu: “Então prefere continuar a perder dinheiro”. E eu anuí laconicamente: “Pois”!
É lata de técnico de vendas, dir-se-á. Pois, mas também há a lata de políticos e de detentores de cargos públicos. E dou alguns exemplos entre os muitos que poderia referir.
Joacine Moreira, após o diferendo com o Livre, garantiu que iria continuar na Assembleia da República. Poderia aduzir o que todos sabemos: o mandato é do deputado e não do partido e seria deputada não inscrita, como prevê o Regimento da Assembleia da República. Mas foi mais categórica ao dizer que foi para estar no Parlamento que nasceu. Veremos se, nas próximas eleições legislativas, algum partido político se verá obrigado a candidatá-la a deputada e em lugar elegível ou se, em alternativa, será escolhida para assessora de deputado/a ou se será selecionada para o painel do pessoal técnico e administrativo do Parlamento. 
Vitalino Canas, um dos propostos pelo PS para juiz do Tribunal Constitucional (TC), já depois de ter sido o seu nome rejeitado na votação parlamentar, confessou que anda, há 40 anos, a sonhar ser juiz do TC. Sabe-se agora que foi rejeitada por votação a sua escolha, bem como a do outro candidato. Veremos de o PS insiste na sua candidatura, negoceia a sua eleição ou se espera o milagre. Sonhar faz bem, mas a realização do sonho não depende só de nós.
Jorge Sampaio, quando foi galardoado com o Prémio Príncipe das Astúrias, aos jornalistas que lhe perguntavam para quem era o montante em dinheiro do prémio respondeu que era para si, pois “isto está tão mal…”. E, a ver um jogo na Alemanha, já depois de ter deixado a presidência, disse que estava ali a ver futebol e a beber umas cervejas com os amigos, pois já estava nesta “cidadania banal”.
O mandato presidencial de Cavaco Silva ficou conhecido por discursos substanciosos, por avisos bastante assertivos, mas também por atoardas que não lhe ficavam bem, como o caso das vacas felizes ou sorridentes e a desvalorização por eventual saída da zona Euro por parte da Grécia, referindo que, tirando um dos 19 países do Euro, ainda ficavam 18. E, agora, a propósito do debate parlamentar sobre a despenalização da eutanásia, disse uma coisa lastimável, desnecessária e que não ajuda nada a credibilidade dos que “estamos contra a eutanásia e contra a distanásia ou obstinação terapêutica”: que os portugueses deviam tomar nota dos deputados que votassem a favor da eutanásia. Ora, os deputados não podem ser responsabilizados nominalmente pelas suas opiniões e posicionamentos parlamentares. Lá virá o tempo em que os portugueses terão a oportunidade de fazer o julgamento dos partidos, que não o dos deputados em si, aquando das novas eleições legislativas em 2023 ou antes, se a legislatura for encurtada por dissolução da Assembleia da República.
Também o Presidente Marcelo tem um mandato polvilhado de ditos a tempo e fora de tempo em que intervém em áreas cuja competência no tempo dificilmente lhe cabe. Agora, com a instalação do pânico generalizado do novo corona vírus, o Presidente dos afetos reagiu à insinuação de que os contactos podiam ocasionar o contágio, respondeu que não obrigava ninguém a cumprimentá-lo (Ainda não estamos na Coreia do Norte nem na República Popular da China – digo eu). É óbvio que os jornalistas, que são enervantes por vezes, não estavam a pedir-lhe quarentena. No entanto, já depois de a Diretora-Geral de Saúde ter posto a questão da epidemia nos termos corretos, nomeadamente quanto aos equipamentos disponíveis no SNS, aos planos de contingência por parte das empresas, à promessa de seguirem, dentro de dias, orientações para a industria hoteleira e às precauções que os portugueses devem tomar em termos preventivos e aquando dos sintomas, Marcelo Rebelo de Sousa admitiu adequar “a necessidade e a proporcionalidade” dos compromissos internacionais agendados e prometeu, na altura, decidir se é necessário “mudar tudo ou ajustar os planos”.
Ora, se Dom Pedro V tivesse feito tais cálculos, teria deixado de visitar doentes e não teria morrido de febre tifoide. Mas continua a ter razão a personagem Maria de “Frei Luís de Sousa”:
Em pestes e desgraças assim, eu entendia, se governasse, que o serviço de Deus e do rei me mandava ficar, até à última, onde a miséria fosse mais e o perigo maior, para atender com remédio e amparo aos necessitados. Pois, rei não quer dizer pai comum de todos?”.
Por fim, recordo uma entrevista dum juiz de instrução criminal em que referiu não ter amigos ricos, quando estava a supervisionar um processo em que um dos arguidos estava alegadamente envolvido por amigos que lhe pagavam as despesas astronómicas que lhe eram imputadas. E recordo, ainda, aquele juiz desembargador que redigiu um acórdão em que citava a Bíblia para justificar a redução de pena de violência doméstica a um condenado na 1.ª instância por a mulher ter praticado adultério.
Obviamente há muito mais coisas que não devem ser ditas nem escritas. Enfim, há coisas que nem deviam pensar-se, pelo que seria melhor não serem ditas nem escritas, por poderem vir a configurar inconveniência ou mesmo insulto. E se se pensasse antes de falar ou escrever? É que, depois, a palavra já deixa de ser de quem a proferiu e passa a ser de quem a recebe.
2020.02.28 – Louro de Carvalho

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