segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Do “Sede santos” ao “Sede perfeitos”


Uma passagem conhecida do Livro do Levítico (vd Lv 19,1-2.17-18) releva a ordem de Deus a Moisés no sentido de que diga ao Povo de Israel: “Sede santos porque Eu, o vosso Deus, sou santo”. Na verdade, a comunhão com o Deus santo postula o cultivo da santidade por parte dos membros do povo de Deus.
E, se a lei da santidade atinge as mais diversas vertentes da vida humana, a predita ordem de Deus pretende o comportamento “justo” para com os irmãos, membros da comunidade do Povo de Deus – que passa pela destruição das raízes do mal que se inculcam e desenvolvem no íntimo do homem – de modo que nos corações de ninguém haja ódio ou rancor contra os irmãos. Por outro lado, a expressão do convite à santidade na vertente fraterna é “amarás o teu próximo como a ti mesmo”. Ser santo ou amar o próximo é o princípio fundamental da Lei que Jesus retoma, aprofunda e expande, sobretudo na redefinição de quem é o nosso próximo.
Nesta linha de pensamento, o sacerdote que presidiu à celebração eucarística no dia 23, o 7.º domingo do Tempo Comum no Ano A, depois de perguntar quem foi batizado – questão a que responderam todos os presentes –, fez a seguinte pergunta: “Quem de vós é santo?”. E, apesar de o sacerdote manter o seu braço levantado, quase ninguém se apresentou como santo. Ele reagiu dizendo que ou lhe mentimos quando respondemos que éramos batizados ou agora que não nos reconhecemos como santos; e advertiu que não estava a perguntar se todas as nossas atitudes e ações eram santas, mas se nós éramos santos.
Depois, esclareceu que todos os batizados são santos porque Deus lhes colocou nos corações as raízes da santidade e lhes confiou a administração do dom da santidade, avisando que nem os que honramos como santos de altar foram perfeitos em tudo o que fizeram, mas que se esforçaram pela oração e pelas ações por serem um pouco melhores de dia para dia, pois a perfeição resulta dum processo contínuo de aperfeiçoamento, por vezes heroico.
E, apesar de não nos podermos arvorar em perfeitos ou melhores que os outros, como faziam os fariseus, a verdade é que o sacerdote tem razão. Com efeito, pelo Batismo, tornamo-nos filhos de Deus, herdeiros do Céu, templos do Espírito Santos e membros desta Igreja peregrina e santa (em Cristo, sua cabeça, totalmente santo, e em tantos dos seus membros), embora pecadora em muitos dos seus membros que incorrem, pelo menos, no pecado de omissão e de não busca da perfeição – o que os leva a reconhecerem-se pecadores e necessitados do perdão de Deus.
Tanto assim é que os seguidores de Cristo se autodenominavam de “santos”, passando a designar-se “cristãos” a partir do estabelecimento da Igreja em Antioquia.
É por isso que Paulo (1Cor 3,16-23) pergunta: “Não sabeis que sois Templo de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós?”. Na verdade, o Templo era considerado, no contexto veterotestamentário, o lugar por excelência da presença de Deus no meio do seu Povo, sendo aí que Israel se encontrava com o seu Deus e estabelecia comunhão com Ele. Porém, o verdadeiro Templo da nova aliança é a comunidade cristã e o coração de cada crente em Jesus Cristo. De facto, nós somos o palácio onde Deus habita. E onde dois ou três estiverem reunidos em nome de Cristo, Cristo estará no meio deles (cf Mt 18,20). Porém, ser Templo de Deus implica superar a preocupação de procurar a “sabedoria do mundo” que leva, tantas vezes, à emulação, ao ciúme, à rivalidade, ao confronto, ao conflito. Por isso, o Apóstolo exorta os coríntios a deixarem a “sabedoria do mundo” e a deixarem que seja “sabedoria de Deus” (amor até ao extremo, dom da vida) a orientar a vida de cada um e da comunidade, mesmo que seja alicerçada na loucura e no escândalo da cruz de Cristo, segundo judeus e gentios, mas salvação para os crentes.
Obviamente estas afirmações de Paulo não significam aversão a todos os valores humanos ou renúncia à ciência e ao conhecimento, mas apenas querem dizer que o segredo da felicidade e da realização do homem não está na ciência, na técnica, na eloquência, na definição dum esquema filosófico que explique cabalmente a vida do homem: está, antes, em Jesus que, em toda a sua vida e, de forma eminente na cruz, testemunhou que só o amor, a doação, a entrega, o serviço, geram vida plena e fazem nascer o Homem Novo. Assim, tudo é nosso, mas nós somos de Cristo e Cristo é de Deus. E, por Cristo, o mediador da salvação, chegaremos a Deus.
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Mais do que a santidade na ótica veterotestamentária, que implica destacar-se do mundo ou do contexto dos povos para se entregar à comunhão com o Deus da Aliança, Cristo (vd Mt 5,38-48) exorta à perfeição: “Sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito”. Ora, isto continua a ter como referência Deus, o Pai celeste, e afina, exigindo mais, os preceitos da Lei.
Assim, já não basta a lei de Talião, que tem forte respaldo veterotestamentário, mas que se limita a evitar vinganças excessivas e brutais. Jesus, ao invés, propõe uma lógica inteiramente nova: é preciso acabar, de uma vez por todas, com a espiral de violência; para isso, Jesus propõe que os seus seguidores e membros do Reino sejam capazes de interromper o curso da violência, assumindo uma atitude pacífica, de não resistência, de não resposta às provocações.
Em concreto, Jesus apela a que não se responda com a mesma moeda a quem nos agride fisicamente, mas que se desarme o violento oferecendo a outra face. Isto não cabe na lógica do mundo, mas é plausível na lógica do Reino de Deus. E há, graças a Deus, pessoas que encaixam esta lógica. Por exemplo, a freira que, andando na rua a pedir para os pobres, recebeu um escarro do interlocutor, nobremente disse: “Já tenho a recompensa, só falta a dos pobres”. E o interlocutor, vencido, deu-lhe uma avultada esmola. Pessoalmente, tive um caso em que, a um pedido de colaboração por parte dum editor de rádio para um determinado programa, o desanquei por atitudes que assumiu no passado, estando a minha pessoa e cargo em causa. E ele reagiu, humildemente, dizendo: “Já tenho a paga, só falta a colaboração para o programa”.   
Outra coisa que não cabe na lógica do mundo, mas cabe na do Reino, é a entrega da capa (que servia para proteger dos rigores da noite) a quem exigia a entrega da túnica (peça que não era tirada senão ao que era vendido como escravo). Igualmente Jesus cita o caso de quem exige o acompanhamento por uma milha e que, na ótica de Cristo, deve ser acompanhado por duas milhas – alusão à prática das patrulhas romanas que, desorientadas, requisitavam os habitantes palestinos para as guiarem durante algum tempo. Além disso, o Mestre recomenda que não se ignore, nem se deixe sem atender quem pede dinheiro emprestado.
Com isto, Mateus quer dizer que os membros da comunidade de Jesus manifestam a todos um amor sem medida, muito além daquilo que é humanamente exigido. E, assim, inauguram uma nova era de relações entre os homens.
Depois, o Evangelho propõe o amor aos inimigos. Alegadamente a Lei antiga manda “Ama o teu próximo e odeia o teu inimigo(ora, a Lei prescreve o amor ao próximo, mas não o ódio aos inimigos). O verbo “odiar”, nas línguas semitas, pode apenas significar “não amar”. No entanto, o amor ao próximo havia adquirido, na época de Jesus, um sentido muito restrito: era o amor aos mais chegados que incluía, quando muito, todos os israelitas, não atingindo, em caso algum, os não membros do Povo eleito. Por isso, a exortação de Jesus configura uma verdadeira novidade e postula uma autêntica revolução das mentalidades. Para o Mestre dos mestres, não basta amar aqueles a quem nos sentimos ligados por laços étnicos, sociais, familiares ou religiosos; pelo contrário, o amor deve atingir todos, sem exceção, incluindo os inimigos, o que implica rezar por aqueles que nos perseguem e caluniam. Esta impõe-se como a condição para a filiação divina, “para serdes filhos do vosso Pai que está nos Céus”, que “faz nascer o sol sobre bons e maus e chover sobre justos e injustos”.
Fica, assim, abolida qualquer forma de discriminação, bem como todo o tipo de barreiras que separam os homens. E o amor de Deus para todos e cada um é a razão do amor que os discípulos do Reino hão de dedicar a todos os homens e mulheres que Deus coloca no seu caminho. Ser filho de Deus é parecer-se com Deus na afeição e na ação.
Descendo à terra pela mão de Cristo, impõe-se que amemos como Ele nos amou, que façamos como Ele fez, que procedamos como Ele mandou – crendo, amando e servindo –, pois assim teremos a vida e a teremos em abundância.
Se na lógica veterotestamentária a ordem é a santidade porque Deus é santo, doravante o apelo é que sejamos perfeitos porque Ele é perfeito e quer que nós também o sejamos. Aqui temos a síntese do ensinamento que Mateus pretende apresentar catequeticamente à sua comunidade: viver na dinâmica do Reino exige a superação da perspetiva legalista e casuística, para viver em comunhão total com Deus, deixando que a vida de Deus, que nos enche o coração, se manifeste na vida quotidiana transformando as relações interpessoais em verdadeiras relações fraternas.
Para tanto, há um longo caminho a percorrer no aperfeiçoamento contínuo com a ajuda de Cristo, o fac totum em nome do Pai. Sem Ele nada podemos fazer e sem o Espírito Santo que o Pai e o Filho nos enviaram nem sequer sabemos o que devemos pedir. Mas com Ele tudo poderemos, tudo conseguiremos.
2020.02.24 – Louro de Carvalho

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